sexta-feira, outubro 29, 2021

Fome e sede

    Continuamos a necessitar de alguém que exija o impossível. Se ficarmos pela reivindicação daquilo que o mundo está disposto a oferecer-nos, se nos conformarmos a esperar a benevolência dos coiotes sociais, então estamos fritos, amigo leitor. Estamos fritos.

    Há muito que aprendi a pedir 1000 se espero obter 100 ou mesmo 10. Lutar pela mais tremenda das utopias é a única forma que temos de nos abeirarmos de um mínimo de justiça social. Ser modesto na exigência é coisa de católico alienado, é coisa de quem espera retribuição na outra vida, quem espera recompensa depois da morte. Eu estou vivo e interessado em viver o melhor que possa.

    Peço desculpa, senhor, mas não acredito na bondade dos ricos, não acredito na magnanimidade dos poderosos. Acredito apenas na fome e na sede de justiça.

terça-feira, outubro 26, 2021

Tempestade

    A alegria é uma tempestade na alma que quando amaina fica um mar chão de tristeza.

    Então atiramos o olhar lá para a linha de horizonte na esperança do regresso de um relâmpago seguido de eufórico trovão.

    Lá vem, de novo, tempestade. É a alegria que regressa.

quinta-feira, outubro 21, 2021

As ruas do meu sonho

Não vejo ninguém passeando nas ruas do meu sonho. Longas sombras marcam o fim do dia, fronteira nocturna. Pairamos na penumbra. Ruas vazias, solitários cães à sorte abandonados. Comboio que ecoa no esquecimento. Espaço metálico, melancólico vidro sujo sobre alcatrão infinito. Estão vazias, as ruas do meu sonho. E tu não voltas, o regresso é impossível. Nunca mais serei o que já fui. Nem mesmo nas ruas do meu sonho.

sexta-feira, outubro 15, 2021

O pedido

     Agora via como fora ridículo ao puxar o lustro aos galões por serem galões tão modestos; o latão não tem o esplendor brilhante da pepita de ouro. Imaginava o constrangimento do outro que, quando o olhou, parecia ter vontade de chorar - decerto não o imaginara  tão mesquinho nos sonhos, tão servil no momento de pedir - via-lhe agora nos olhos o choro a transformar-se em riso. Entre a compaixão e o gozo a distância de um momento.

    Arrependeu-se tanto de ter aberto em si aquela janela debruçada sobre o horizonte de quem é. Caíra-lhe o céu, ficou-lhe a sombra. Pediu ao chão que se lhe abrisse debaixo dos pés mas o chão, indiferente, permaneceu. Há coisas que nunca mudam. Quando nascemos no meio do estrume dificilmente nos habituaremos às discretas nuances do perfume.

     Não sabia se havia de chorar, gargalhar ou fugir dali para fora. Ficou o silêncio, especado no soalho que brilhava como louco batido pelo sol do meio-dia.

    

sábado, outubro 09, 2021

Fugir

     Todos nós sentimos uma ou outra vez um certo fastio em sermos quem somos. Quem nunca se cansou de viver consigo próprio que atire a primeira pedra! Falando por mim: não é raro querer fugir da minha própria companhia. O problema reside em que estratagema experimentar na tentativa de evasão.

    Os truques disponíveis não são assim tantos nem particularmente eficazes e insistir na fuga poderá ter resultados catastróficos. O melhor será fazer tentativas esporádicas.

    Quando, por vezes, a fuga é coroada de sucesso sentimo-nos reis do mundo, por um momento que seja. Mas há um problema irresolúvel: acabamos sempre por regressar. Ao nosso corpo, à nossa vida, enfim, é impossível fugirmos daquilo que somos.

    Parece-me insofismável afirmar que o corpo acaba sempre por triunfar sobre a mente. Mesmo quando alguns de nós perdem a noção do Ser acabam a vegetar dentro de si próprios, como cães perdidos a farejar num cemitério; não é fuga, é esquecimento.

    Resta-nos então a morte, esse imenso mistério.

Nota: tenho andado a ler Nada a Temer de Julian Barnes, uma longa reflexão sobre a morte.

sexta-feira, outubro 08, 2021

Matar a fome

     É possível uma pessoa ter baixas expectativas em relação a um certo acontecimento e, ainda assim, ficar desapontada com o seu desfecho? Sim, claro! Porque não? É aquela cena da Lei de Murphy ou lá o que é. Estás lixado? Espera e verás o que é bom e o que é bonito.

    É possível sentir desapontamento e, ainda assim, fingir que está tudo a correr da melhor forma possível? Também. Será uma espécie de ironia positiva, o sarcasmo ao serviço das coisas boas. E das bonitas. É um gajo a torcer o volante durante o despiste na tentativa de evitar aquilo que já está a acontecer naquele momento. Deve uma pessoa desistir perante o inevitável? Nunca! Jamais!

    Resumindo: podemos viver em simultâneo o pior e o seu contrário? Depende de ti, acho eu. Depende da tua capacidade para engolires sapos imaginando-os príncipes encantados (no caso da Lei de Murphy) ou imaginando-os belos frangos assados. Tudo depende da tua capacidade te enganares a ti próprio, enganando o mundo que te rodeia.

    Pela conversa vejo que já te perdeste há um bom bocado e que aquilo que dizes deixou de fazer sentido logo no primeiro parágrafo.

    Porra! Nunca te deixas enganar!

    A tua capacidade para te enganares a ti próprio não é particularmente brilhante.

   Estou com fome. Vou comer qualquer coisa.

quinta-feira, outubro 07, 2021

Robots

    Muito raramente lá aparece um comentário neste blogue. Abro a caixinha e... é mensagem de um robot. Não fico desiludido, nem desalentado, nem acabrunhado, nem antes pelo contrário. Estou habituado ao eco silencioso da zumbisfera, sei que poucos humanos se deslocam nesta ruína abandonada. Dou por mim a sorrir e a pensar como será quando o mundo "real" ficar assim, semelhante à zumbisfera, um habitante aqui, outro ali, sobrevivendo de memórias e ténues esperanças. Quando encontrar um robot na rua for tão reconfortante como encontrar a nossa tia velhinha que já não víamos há um ror de tempo.

    Estes robots que habitam as caixas de comentários têm dois tipos diferentes de personalidades (a expressão aplica-se a robots?): uns tentam convencer-te de que ficaram agradados com o teu blogue e teriam todo o prazer em que retribuísses a visita; outros atacam logo com um lugar virtual, sem conversas prévias nem qualquer tipo de simpatia artificial, impõem-se sem rebuço. Sim, porque neste mundo tudo corre o risco de se tornar artificial, mesmo nós.

    Seja como for podes apenas ignorar o robot, não é relevante. Por enquanto podemos virar-lhes as costas, fingir que não existem. Será assim para todo o sempre?

quarta-feira, outubro 06, 2021

Na fronteira

Sinto-me a existir cada vez mais próximo de uma fronteira que separa aquilo que sou daquilo que esperam que eu seja. Essa fronteira sempre esteve lá mas o longe vai-se fazendo perto. O passar dos anos é caminho que vai sendo feito e parece-me que avisto já a guarita do guarda alfandegário.

Estar mais velho provoca-me situações de alguma vertigem, algum desconforto. Principalmente quando estou com pessoas mais jovens e conversamos. Seja qual for o tema há sempre uma história a propósito que posso contar. A sério? Que seca! Talvez devesse calar a boca, mas não, dou por mim e já avanço em passo de corrida história adentro. Arrependo-me sempre tarde de mais.

Depois começa a acontecer-me não ter a certeza se já contei aquela história àquela pessoa.

O guarda alfandegário tem uma farda cinzenta (ou será azul clara?) e está a ler um jornal enorme, com folhas que parecem lençóis. Uma ligeira brisa dificulta-lhe a leitura e ele parece irritado. Acho que me vou sentar um pouco e esperar que tudo passe ou, pelo menos, que tudo acalme. Então será tempo de avançar.

segunda-feira, outubro 04, 2021

Cínico

Estava para aqui a pensar que o exotismo é algo exageradamente valorizado e que a banalidade nem sempre merece o desprezo que lhe atiram à cara. Pensava também que nem a riqueza é assim tão apetecível. Por cada rico que se pavoneia neste mundo há milhares (ou milhões) de miseráveis que lhe enchem a peida. Estava para aqui a pensar que muito do glamour que nos preenche o imaginário tem o brilho de lixo polido com luva branca. E muito do lixo que atiramos ao rio acaba a flutuar.

Não estou a fazer grande sentido, e depois? Fazer sentido não depende de mim. Depende de ti, depende de nós.

Estava para aqui a pensar que a vida não tem assim tanto valor porque se tivesse havíamos de olhar uns para os outros com olhos mais límpidos e coração mais aberto. Se a bondade verdadeiramente importasse não seríamos tão cínicos.

Talvez o problema resida na certeza de que um dia vamos todos morrer.

Caramba! Que coisa, que conversa tão banal. Que pobreza, que discurso tão sujo! Quanto cinismo, benza-me Deus!!!

sexta-feira, outubro 01, 2021

Ser zombie

Ser um zombie e saber o que se é custa e dói. Nem sempre me apercebo dessa minha condição de morto-vivo (umas vezes mais morto outras nem por isso) mas a sensação está lá, alojada nalguma prega do meu cérebro. Zomzomzomzomzom, a moer, a moer, a moer, zom, zomb, zombi, zombie!

Quando a coisa bate, olho em volta e vejo. Vejo os outros que, como eu, arrastam os pés, caminhando todos na mesma direcção, olhares vazios, caras pálidas uns, apáticas outros, narizes a apontar ao peito, muitos. Raspamos a plataforma com as solas dos sapatos, dos ténis, das botas, das sandálias, a variedade dos trapinhos dá-nos uma falsa sensação de individualidade.

Não! Somos todos iguais perante a morte, na putrefacção e na morte. Aquele já não tem nariz, o outro perdeu parte do couro cabeludo, a senhora do vestido vermelho precisa de encontrar umas pernas ou então nunca mais vai sair dali. 

Talvez até fosse divertido.