É diário, já se sabe, bate como um martelinho de São João, poing, poing, poing, nas nossas cabeças, no nosso juízo, no que resta do nosso espaço comum, poing, poing, poing, o martelinho a martelar os números da pandemia.
O pivô do noticiário debita os números de novos infectados, poing, internados, poing, recuperados, poing, poing, poing, e, raramente sinto as palavras tão vazias, o pivô afirma que "lamenta" os falecimentos da ordem. Diz aquilo com a mesma entoação que aplicaria se falasse da qualidade dos sapatos que tem calçados ou do arroz de pato que encomendou na tasca da esquina (talvez o arroz de pato o levasse a colocar alguma alma na fala). A banalização do discurso que relata a catástrofe em curso tem este efeito narcótico, este amerdalhamento emocional, deixa-nos à beira da desumanização.
Quando era miúdo sempre me impressionaram as palavras de circunstância. Não sei se sentias o mesmo, amável leitor, mas lembro-me de perceber o vazio do discurso quando o discurso era vazio e de ficar estúpido por não ser capaz de encaixar as coisas. Porque havia uma pessoa de dizer algo que não sentia de forma nenhuma? Porque havia alguma pessoa de fingir ser o que, obviamente, não era? Ah, santa inocência!
Regressado ao tempo presente ressoa na minha mona o poing-poing-poing acima descrito. As questões sobre a motivação de tanta palavra vazia obtêm respostas infelizes. A inocência perdida faz-me perceber que tudo roda à volta de interesses mesquinhos, manipulações mais ou menos evidentes, agendas políticas, campanhas comerciais em curso, dinheiro, dinheiro, dinheiro e poder... um buraco sem fundo, um vazio impossível de preencher.