sexta-feira, janeiro 29, 2021

Abstracção

Ele trazia vozes dentro da cabeça. De onde vinham, de quem eram? Mistério. Primeiro apareceu aquela voz aflautada que falava do tempo e da chuva e do sol; depois uma outra, arrastada e afectada, decididamente uma voz de mulher, que não parava de o corrigir, de comparar os seus modos com os modos de outras pessoas que ele não conhecia, nunca vira nem imaginava como pudessem viver. Havia também aquela voz de barítono que gostava de contar anedotas porcas e aquele miúdo chato que pedia constantemente um copo de água, um copo de leite, uma coca-cola; cada dia chegava, pelo menos, uma nova voz. Ele trazia uma multidão dentro da cabeça.

Sentado com uma chávena de café fumegante sobre a mesa, olhava em frente, concentrado num lugar geométrico algures entre este mundo e o outro. As vozes conversavam  entre si, ele ouvia-as atentamente. O empregado aproximou-se; máscara respiratória, luvas de látex, fato de borracha. Deixou a máquina de pagamento e foi à sua vida. Aquele cliente não aparentava nada de diferente, era exactamente igual aos outros.

A esplanada espalhava-se por toda a praça. Dezenas de mesas, cada uma com um cliente sentado na única cadeira. Empregados rolando, em pé, sobre veículos especiais. Enfiados em pequenos ecrãs, os clientes permaneciam estáticos,  concentrados, alheados do ambiente circundante. Todos eles algures, entre este mundo e o outro.

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