domingo, janeiro 31, 2021

Ociosidade

Porque sim, porque não, ora porra, porque não talvez!? Procurar a razão, encontrar a mentira, acreditar na verdade improvável, um gajo vai por aí fora, aos tropeções, a marrar nos muros, a encostar cotovelos às paredes, perdidinho que nem sabe. Mas vai; prá frente é que é o caminho! 

Será assim tão importante um gajo ter razão? Quero dizer, ter sempre razão!? Por vezes, isso sei eu bem, é preferível viver uma mentira. Uma certa pobreza de espírito protege-nos do mal... ou faz de nós presas mais fáceis... sei lá, isso que importa? Também não me parece saudável não ter nunca razão. Há quem diga que no meio está a virtude.

Esta reflexão ociosa é própria de um dia em confinamento, sai-me da cabeça por ter pouco mais que fazer que não seja coisa nenhuma.

sexta-feira, janeiro 29, 2021

Abstracção

Ele trazia vozes dentro da cabeça. De onde vinham, de quem eram? Mistério. Primeiro apareceu aquela voz aflautada que falava do tempo e da chuva e do sol; depois uma outra, arrastada e afectada, decididamente uma voz de mulher, que não parava de o corrigir, de comparar os seus modos com os modos de outras pessoas que ele não conhecia, nunca vira nem imaginava como pudessem viver. Havia também aquela voz de barítono que gostava de contar anedotas porcas e aquele miúdo chato que pedia constantemente um copo de água, um copo de leite, uma coca-cola; cada dia chegava, pelo menos, uma nova voz. Ele trazia uma multidão dentro da cabeça.

Sentado com uma chávena de café fumegante sobre a mesa, olhava em frente, concentrado num lugar geométrico algures entre este mundo e o outro. As vozes conversavam  entre si, ele ouvia-as atentamente. O empregado aproximou-se; máscara respiratória, luvas de látex, fato de borracha. Deixou a máquina de pagamento e foi à sua vida. Aquele cliente não aparentava nada de diferente, era exactamente igual aos outros.

A esplanada espalhava-se por toda a praça. Dezenas de mesas, cada uma com um cliente sentado na única cadeira. Empregados rolando, em pé, sobre veículos especiais. Enfiados em pequenos ecrãs, os clientes permaneciam estáticos,  concentrados, alheados do ambiente circundante. Todos eles algures, entre este mundo e o outro.

terça-feira, janeiro 26, 2021

Uma fome

Ler os sinais que nos são enviados pelo mundo circundante pode ser um exercício ingrato para a inteligência de cada um. É uma leitura propícia à emersão dos preconceitos que trazemos arrumadinhos dentro das nossas cabeças. Se queremos acreditar, acreditamos, se não queremos acreditar, negamos.

Se a leitura dos sinais tem a ver com as convicções que nos animam procuramos ratificação e não esclarecimento. É difícil aceitar que estamos enganados quando reflectimos sobre aquilo que, em certa medida, faz de nós o que nós somos, mesmo quando os dados que recolhemos tendem a provar-nos que estamos muito distantes da verdade.

Disse Mário Soares, saudoso pai de Democracia portuguesa, que "só os burros não mudam de opinião". É bem verdade que, em muitas ocasiões, mantemos a nossa opinião por pura e refinada burrice, contrariando o Universo inteiro, se preciso for. Ter razão é alimento necessário à alma humana. Dê lá por onde der. E a nossa alma parece estar sempre esfomeada com uma fome impossível de saciar.

segunda-feira, janeiro 25, 2021

Regresso à gaiola

Regressado ao confinamento (quase) absoluto debato-me com os problemas que se tornam habituais: o espaço da casa transforma-se em mundo, a cidade fica lá fora, toda ela enquadrada por janelas, começo a cirandar pelas divisões à procura de motivação para fazer algo.

O ecrã  da televisão ganha uma importância que, em tempos normais, não teria. O computador parece-me aborrecido, os dias tendem a misturar-se uns nos outros, num rodopio estático e sensaborão. Espero sentir o apelo das artes. Por enquanto... nada!

Por enquanto sinto apenas alguma angústia por não poder viver a vida em liberdade. Imagino que seja este o sentimento do canário na gaiola, caso tenha inteligência para se aperceber da sua condição de cativo, saltando livremente de um poleiro para outro.

quarta-feira, janeiro 20, 2021

Oh, happy day!

Hoje tenho um espaço mental dedicado à partida de Trump. Abre-se finalmente uma pequena brecha na ascenção da extrema-direita que chegou a ser considerada imparável. Continuam alguns gnomos em lugares importantes: Bolsonaro, Netanyhau, Órban, Putin, a lista de malandros ainda mete medo mas, espero bem, a saída de Trump deixa-os um pouco menos fortes e poderá marcar o início do declínio das políticas de ódio.

20 de Janeiro de 2021, um dia para a História, um dia feliz.


sexta-feira, janeiro 15, 2021

Confinamento - parte dois

Começou o segundo confinamento geral. Desta vez as escolas mantêm-se abertas. Saí para comprar o jornal e tabaco, uma actividade que não é reprovada pelas normas em vigor. Apesar do encerramento das lojas, o movimento nas ruas pareceu-me muito semelhante ao dos últimos dias, não notei os efeitos do dever de recolhimento imposto aos cidadãos. 

Será que a propalada banalização do estado de emergência deixa as pessoas menos receptivas à ideia de se manterem em casa? Haverá algum relaxamento generalizado apesar dos números alarmantes de novos contágios e de ocupação de camas nos hospitais? Temo bem que seja isso que está a acontecer.


quarta-feira, janeiro 13, 2021

A normalidade

O novo confinamento geral está a chegar. É um soco na testa. Imagino que muita gente se sinta como eu me sinto, sinto-me acabrunhado. A verdade é que, apesar de tudo, não estava à espera disto. Medidas restritivas, sim, mas confinamento geral... outra vez...

Discute-se a possibilidade de fechar de novo as escolas, por outro lado coloca-se a hipótese de as manter em funcionamento. Não sei se volto para casa ou continuo a contactar directamente com os meus alunos. Fala-se nos vários riscos que pairam sobre toda uma geração de crianças e jovens, desde a saúde mental ao desenvolvimento intelectual e escolar.

Isto deixa-me a pensar nos riscos idênticos que afectaram as gerações de crianças e jovens que cresceram durante o salazarismo. Crescemos, estamos aqui, construímos a nossa vida a cada dia que passa.

A normalidade não existe, de facto. A existência humana, individual ou colectiva, é o resultado da conjugação de uma série de factores que mudam constantemente, é uma hibridização anárquica que flutua nos nossos corações e nas nossas mentes. Com confinamento ou sem ele temos o dever de continuar com as nossas vidas moldando o nosso Ser de acordo com as convicções que nos animam. 

Por mim continuo a acreditar que posso contribuir para construir um mundo melhor para as gerações que se seguem ou, pelo menos, evitar que o mundo se desagregue à nossa volta.


segunda-feira, janeiro 11, 2021

Viver

As portas voltam a fechar-se. Somos todos crianças que não compreendem bem as regras de convivência adequadas, fazemos asneira, somos castigados. Parece ser esta a nova ordem natural das coisas: crianças mal comportadas são confinadas. Não é brincadeira,  é a vida que temos para viver a ser posta à prova e nós a a não sermos capazes de o fazer como imaginamos que gostaríamos.


domingo, janeiro 10, 2021

Luta eterna

Por vezes saem-me da cabeça umas frases que, depois de escritas, ficam como frases feitas. Aqui há dias, comentando um texto do Eduardo Lunardelli no Facebook,escrevi: "quem assina pactos com o Diabo acaba ardendo no inferno".

O texto em questão versava o tema do momento, o assalto ao Capitólio, em Washington. Neste caso o Diabo era Trump mas há muitos mais diabos a ter em consideração, logo à partida o Bolsonaro, outro diabrete de segunda categoria.

Já por várias vezes escrevi textos aqui, no 100 Cabeças, sobre estes dois palhaços maus, não me parece necessário voltar a malhar em ferro tão frio. O que importa sublinhar é que, agora, passados alguns anos em que estes animais exerceram o poder nos respectivos países, começa a tornar-se evidente que os receios de que viessem a revelar-se em toda a sua monstruosidade eram, infelizmente, fundados.

Trump, espero bem, já lá vai. Se houver Justiça irá sentar-se no banco dos réus e, sonho com isso, baterá com os ossos na prisão. Mas há muitos mais diabos por esse mundo fora, ateando as chamas dos infernos onde habitam com os respectivos povos. É a luta eterna entre a luz e a treva, o bem e o mal, a justiça e a mentira soez.

Nos contos infantis o bem acaba sempre por prevalecer.

sexta-feira, janeiro 08, 2021

Trampa

Assisti o assalto do Capitólio via TV, sentado no sofá, confortado pela presença da minha filha e da minha esposa. Talvez tenha sido isso, o conforto acolhedor, que provocou em mim a sensação de que aquilo era merecido. Hordas de bárbaros, incitados por um demente narcisista, invadiam o símbolo da democracia norte americana com um desplante de imbecis ininputáveis; os EUA a colherem a tempestade por eles semeada.

Aquilo foi uma tentativa de golpe de estado. Trump assumiu-se como terrorista de extrema-direita embora me pareça que ele não compreende muito bem o que isso possa ser. O homem é um caso clínico que caminha. Agora começa a ficar isolado nos corredores do poder. Aqueles que lhe alimentaram a demência começam a recuar, assustados pela dimensão monstruosa do animal que apaparicaram.

Fico com a sensação de ter assistido ao princípio do fim do império americano em declínio acelerado. Não sei bem o que esperar dos tempos futuros mas temo que Biden não seja capaz de colar os cacos. A Democracia está gravemente ferida. Resta-nos a União Europeia, os Estados Unidos da América perderam o pé.

domingo, janeiro 03, 2021

Tudo bem o caraças!

"Vai ficar tudo bem" é uma das frases com que se tenta motivar o pessoalzinho no sentido de ajudar à superação da pandemia e de todos os problemas que adicionou ao nosso quotidiano delirante. No meu enviesado entendimento é uma frase de merda.

Antes da pandemia estava muita coisa mal. Demasiada coisa. Como é possível acreditar que, após uma confusão absoluta como aquela que vivemos, vá ficar tudo bem!? A verdade é que tudo isto apenas tem acentuado aquilo que já estava mal. "Quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão".

Acredito que é tempo de reconsiderarmos as nossas prioridades enquanto sociedade.

sábado, janeiro 02, 2021

Revisão

Um dia inteiro bem aquecido e a dormitar deu-me as forças necessárias para (re)ver "Os 7 Samurais" de Akira Kurosawa na RTP 2, um pouco madrugada adentro. Não me lembro quando havia visto o filme, penso que em criança, talvez adolescente? A verdade é que, esta noite, vi-o como se fosse a primeira vez. Lembrava uma ou outra cena, uma ou outra personagem, coisas vagas, quase nem recordações.

Enquanto assistia ao filme pensei várias vezes "que grande cena","grande filme", coisas do género. O cinema quando é bom não perde o encanto e "Os 7 Samurais" (1954) mantém-se intacto em todo o seu esplendor. 

Este é daqueles filmes capazes de fazer o mais sisudo dos críticos de cinema, um daqueles que parecem não gostar de quase nada, riscar 5 estrelinhas a sublinhar uma recensão cheia de sabedoria e provas inequívocas de extraordinária cinefilia. Ainda que não goste, de facto, não pode deixar de considerar esta uma obra clássica. Há coisas assim... que grande cena, grande filme!