sábado, julho 25, 2020

Irritação e fúria

Não sei se a ti também te acontece, caríssimo leitor, não sei se te irritam profundamente os noticiários incendiários, literalmente incendiários, nos quais se fala do medo, da tragédia, do terror causados pelos fogos de Verão. De súbito um Portugal anónimo, perdido dentro de si próprio, surge em nossas casas na moldura da TV.

São aldeias esquecidas, habitadas por pessoas curtidas pelo sol e pelo frio; mulheres rijas e homens de boné com as faces semelhantes a cascas de árvore; aldeias invadidas pelo fumo, pelos bombeiros e por aqueles que me irritam à quinta casa: os repórteres de TV incumbidos de nos falar em directo. Não consigo aturá-los nem um bocadinho. Se tenho o comando na mão salto imediatamente para outro lado, se alguém insiste em assistir a esses directos, saio da sala o mais depressa que me é possível.

Os directos irritam-me, de um modo geral, mas os dos incêndios enfurecem-me. Sinto ali a marca do vampiro. As pessoas embasbacadas, atordoadas, tentando encontrar uma forma de combater a adversidade e um caramelo qualquer, de microfone em punho a fazer aquela excelente pergunta: como é que se sente? Foda-se! Isso é coisa que se pergunte, em directo, a uma pessoa desesperada?

Quando não estão a perseguir desgraçados fazem eles o papel de desgraçadinhos. Plantados defronte à câmara de filmar com fumo e fogo no enquadramento, ao fundo, debitam tolices e informação, as mais das vezes, redundante, desinteressante, caninos cravados na jugular da catástrofe a chupar, a chupar, a chupar. Não consigo aguentar tanta nojeira.

domingo, julho 19, 2020

Mitologia de taberna

A Dúvida é meia-irmã da Consciência, geradas na união da mesma mãe, a Verdade, com pais diferentes, ambos incógnitos e arredios, como tantas vezes acontece, pais que um dia foram comprar fósforos para acenderem o cigarro no fim da refeição nocturna e nunca mais voltaram. A Verdade é assim mesmo, enganada uma e outra vez por parceiros sedutores e pouco honestos. Cabrões aproveitadores.

E lá cresceram juntas, as miúdas, num lar problemático, discutindo amiúde, discordando por tudo e por nada. A Dúvida sempre insegura, a Consciência descobrindo a cada passo princípios orientadores do pensamento mas nunca capaz de os demonstrar de forma inequívoca. Pobre mãe, a Verdade, hesitante na educação das suas crias, amando-as por igual, eternamente.

Esta abstrusa mitologia de taberna é, toda ela, protagonizada por personagens femininas e quase sempre discutida e enriquecida por homens bêbados que se distraem e confundem, observando o Mundo através de lentes distorcidas, mais propensas a produzir cegueira que capazes de definir os contornos das coisas com um mínimo de rigor e clareza.

terça-feira, julho 14, 2020

O futuro até pode já ter acontecido

O futuro começa a tomar forma. O "sonho americano" revela-se "notícia falsa" e o "pesadelo chinês" parece ganhar força, alastrando no mapa planetário. Onde se encaixa a União Europeia nesta ordem mundial que se redesenha? Seja qual for o modelo onírico prevalecente será sempre o dinheiro a ditar os contornos definitivos da coisa social.

Deus reaparece em força. Ele sempre andou por aí. Já se sabe que os americanos confiam nele (afirmam-no nas notas de dólar), que os iranianos obedecem à sua lei, que os turcos são um povo devoto e os brasileiros acreditam que Deus é natural do Rio de Janeiro. Sabe-se também que Paulo Portas é confidente da Virgem Maria, que Putin se vem convertendo em ícone russo e que Israel é o povo escolhido e tudo o que faz é mero reflexo da vontade inquestionável e inatingível de Jeová. Esta acumulação patética de hipocrisia e agressividade moral tem muita influência na definição dos traços carregados que contornam o futuro.

As coisas acontecem num determinado momento, o ponto exacto da quebra, da transformação de algo numa outra coisa. Pode ser amanhã, daqui a dez anos, pode ter sido agora mesmo ou até, algures, no passado sem que nos tenhamos apercebido da importância radical de um qualquer acontecimento que desviou o futuro daquilo que imaginávamos que viria a ser. O tempo do comboio a vapor acabou há muito. Hoje dirigimo-nos para o nosso destino a bordo de um comboio-bala desenfreado. A chegada à estação não se adivinha auspiciosa.

À medida que vou escrevendo estas palavras uma pergunta vai-se formando no meu espírito inquieto: e se o futuro já tiver acontecido?

quarta-feira, julho 08, 2020

Pretensão e água-benta

Ai, as palavras (suspiro). Como podem elas enredar-nos o entendimento e pescá-lo como se fosse carapau do gato! A comunicação feita assim, à distância de um teclado, na solidão de um ecrã, ganha muitas vezes a rigidez de uma estátua de mármore plantada num jardim, a imitar vagos ecos de uma antiguidade desconhecida.

A frase anterior, por exemplo, que coisa pomposa e, temo bem, confusa como o caraças. Na minha cabeça faz sentido, a metáfora até funciona, mas tenho a sensação que para ti, amigo leitor, possa não se parecer com nada. Ou talvez ganhe um significado inesperado, o seu sentido a escorregar-me da ponta dos dedos como uma enguia furtiva. São palavras.

Queria eu dizer que a comunicação a distância, sem presença física, se presta a parecer algo que não passa de cópia farsola de uma conversa verdadeira e que, ainda por cima, quando rebuscamos as palavras, poderá tornar-se pretensiosa.

Lá no fundo é o que este post é: pretensioso. Mas não era para ser, garanto-te, quando comecei a escrever o texto não fazia a mínima ideia de que iria acabar, precisamente, aqui.

terça-feira, julho 07, 2020

A Fé e as máscaras

Estou confuso. Não sei se estou confinado ou antes pelo contrário. Saio de casa com a máscara sempre à mão, esguicho gel na entrada das lojas (já me caiu num pé, já por várias vezes falhei o alvo) e também à saída. Chego a casa e descalço-me, lavo as mãos e pronto. É tudo. Novas rotinas.

Fico sempre com a sensação de que estes hábitos que se vão entranhando têm uma eficácia limitada mas, seja como for, evito ignorá-los. É como aquele dito de quem não acredita em bruxas.

O distanciamento social vai funcionando. Agora há em todo o lado marcas no chão. "X" vermelho - não passar; seta verde - avançar por aqui; linhas amarelas - stop, é fronteira intransponível, muro imaginário, limite a respeitar. Tudo isto me parece um tanto apatetado mas respeito. Socialmente sou um tipo atreito a regras, mesmo aquelas que me deixam na dúvida.

Acredito piamente que tudo isto irá acabar um dia. Tenho fé.


quarta-feira, julho 01, 2020

Complexo da avestruz

Enquanto os sinais de desmoronamento civilizacional se adensam à nossa volta nós ansiamos regressar à normalidade, um novo "Ó tempo, volta pra trás" sem a Severa na história mas com o desejo de que o sol nos ilumine a paisagem que se estende para o lado de lá da janela. É o "novo normal".

Mas, para um "novo normal" terá de existir uma nova anormalidade, como é óbvio. É o Yin e o Yang, o Tom e o Jerry, Deus e o Diabo, a velha história da beleza do mundo, o equilíbrio entre luz e treva, o risco de habitar na penumbra. Será a existência da vida enformada naquela merdice do "eterno retorno"?

Resta-nos a velha táctica da "fuga para a frente"? Fugir para trás, ao que parece, está fora de questão. Há ainda imensos areais com muito espaço para enterrarmos as nossas cabeças.