segunda-feira, outubro 28, 2019

Batalha final

É um rumor, um som distante, uma batida, tum-tum-tum, uma batida que se aproxima, tum-tum-tum, cada vez mais próxima, marcial, uma batida que marca o presente, obstinada na marcação do futuro, tum-tum-tum...

Impossível ignorar esta marcha implacável. Os marchantes não se vislumbram ainda mas é com angústia (e talvez algum terror) que se adivinham. Já vejo a poeira que levantam erguendo-se acima da linha do horizonte, eles estão aí. Tum-tum-tum, são tambores guerreiros anunciadores dos exércitos que se aproximam.

Do lado contrário chega-me aos ouvidos um outro rumor, ban-ban-ban, outra batida, não menos marcial, se vai afirmando e se aproxima. Inexoravelmente. Ban-ban-ban, de um lado, tum-tum-tum do outro. Dois exércitos em marcha sincopada movimentam-se na direcção exacta do local onde me encontro.

Olho o pulso. O relógio está parado. É hora.

quinta-feira, outubro 24, 2019

Trípticos

Nascer, crescer, morrer. Este é o ciclo de vida para tudo o que existe. Sejam animais, estrelas ou nações; tudo nasce, tudo cresce, tudo acaba por morrer. Talvez mesmo o Universo esteja sujeito a este tríptico existencial.

Veio esta reflexão a reboque de estar eu a relembrar o ciclo dos "estilos artísticos" tendo por modelo o estudo da arte grega que é habitualmente dividido em três períodos: arcaico, clássico e helenístico.

Sendo o período arcaico o do nascimento e aprendizagem, a busca de uma linguagem própria (com forte influência egípcia); o período clássico o do estabelecimento dos cânones que representa o apogeu da arte grega, a afirmação das características distintivas e grandiosas que irão perdurar na memória histórica; finalmente o período helenístico, marcado pela degradação dos cânones, pela ultrapassagem dos dogmas, pela inventividade individual em oposição às regras uniformizadoras estabelecidas no período clássico.

É interessante comparar este ciclo dos estilos à vida e desenvolvimento de um ser humano: a infância e a adolescência como períodos de aprendizagem mais intensa; a idade adulta como período de afirmação e convencimento de se ter chegado a algum lado, de sermos capazes de encontrar conclusões convincentes para a definição daquilo que somos; finalmente a 3ª idade.

Aqui, a comparação da recta final da nossa vida com o período helenístico talvez não seja a coisa mais óbvia mas não deixa de ser uma proposta aliciante: fazermos dos nossos últimos tempos tempos de rebeldia e transgressão relativamente àquilo que imaginámos ser anteriormente. 

terça-feira, outubro 22, 2019

O Canibalismo Cósmico

Reagindo à hipocrisia dos cultivadores da bondade industrial enlatada que a vendem à semelhança das antigas bulas papais, suportados em esmagadoras campanhas publicitárias, surge uma nova vontade sinuosa que emana lentamente do lixo gorduroso das cidades, do lixo tecnológico indestrutível, que se eleva serpenteante dos ambientes anormais dos micro-climas poluídos e das mutações genéticas aberrantes por eles provocadas. É uma vontade quente que envolve os objectos em auras luminosas semelhantes a auréolas divinas, retirando-lhes frieza, enquanto renova o seu sentido mágico valorizando mensagens simbólicas que lhes são inerentes.

No aspecto criativo essa vontade manifesta-se numa iconologia caótica que decorre naturalmente do súbito crescimento desmesurado dos dados disponíveis e captáveis, produzidos freneticamente pelo mundo tecnológico moderno. Trata-se da procura constante da reconstrução de processos simbólicos e narrativos. Reinventam-se métodos e objectivos.

Os criadores do actual fim-de-século que habitam  a sociedade tecno-industrial não aguardam o futuro, vivem-no tão intensamente no dia-a-dia que este se embrenha no passado, formando um tempo único e compacto. Assim é perfeitamente possível hibridizar na arte contemporânea sinais temporalmente tão distantes como as obras de Jheronimus Bosch e Jackson Pollock ou Mozart e Frank Zappa. É um método criativo que mistura e adapta todos os tipos de técnicas e informações extraordinariamente variadas.

Gera-se uma arte subversora do Belo que se metamorfoseia até ao infinito na busca do objectivo primordial: a Universalidade Mágica.

O Canibalismo Cósmico é um ritual criativo baseado na libertação dos dogmas e na crença de que a hibridização anárquica é a suprema forma organizativa.

Rui Silvares
Novembro 1989

sexta-feira, outubro 18, 2019

Uma coisa na ponta dos dedos

Olhar para um écran de televisão e ver o que se vai passando na Catalunha deixa-me uma estranha sensação alojada no peito. Ontem dei por mim a pensar baixinho que, se estivesse em Barcelona, decerto seria um dos muitos milhares que povoavam as ruas. Mesmo não sendo catalão, decerto estaria ali.

A questão não é legal, a questão é política. É uma questão de Liberdade para decidir. Escrevo estas palavras e percebo que tenho o coração na ponta dos dedos, que, se calhar, as coisas são muito mais complicadas, que não percebo nada do que se passa, que haverá explicações racionais capazes de desarmar os meus sentimentos com a facilidade de quem rouba um chupa-chupa a uma criança. Mas não há nada a fazer. Coração é coração.

Em miúdo, li o Spartacus, de Howard Fast. O livro marcou-me para a vida. Mais do que A Ilha do Tesouro ou As aventuras de Huckleberry Finn, outras das obras que me aconchegaram a adolescência. A luta dos escravos pelo direito de serem livres impressionou-me, mas o que mais me deixou a pensar foi a sua derrota e o castigo absoluto que sofreram.

Na minha mente juvenil formou-se uma coisa que nunca mais me abandonou. Não sei explicar bem o que é mas sei que é essa coisa que me leva o coração para a ponta dos dedos quando escrevo que a questão catalã é uma questão de Liberdade.

quinta-feira, outubro 17, 2019

Comunistas? Fascistas?

Podemos nós olhar para Kim Jong-un, o príncipe coreano,  montado no seu cavalo branco, rodeado por neves místicas e ver nele um comunista? 

Podemos nós olhar para a China de Xi Jinping e ver um país comunista?

Porque ficam tão indignados os militantes do Partido Comunista Português sempre que alguém põe em dúvida a bondade de Vladimir Putin, esse ser que resulta do cruzamento entre um czar e um ogre? 

E Maduro, lá na sua gaiola dourada venezuelana, a esbracejar desesperado, governando ao sabor de paixões pessoais, a sobreviver muito mais do que a deixar viver? É ele o rosto da utopia comunista?

São todos personagens tão diferentes, com orientações políticas tão personalizadas e patrióticas que, a meu ver, nada os une. Vejo-os tão semelhantes uns aos outros como vejo Trump e Bolsonaro semelhantes a Órban e a Kaczinsky. Vejo homenzinhos perdidos nos seus labirintos individuais. 

Não vejo comunistas, nem fascistas, vejo apenas gente que não compreende os outros, gente que não ama, muito menos é amada, gente que imagina a sua loucura como sendo a expressão máxima do Ser Humano. 

Vejo neles escumalha, ausência de expressão do Ser Humano.

terça-feira, outubro 15, 2019

Memória de passarinho

Afiar as navalhas pareceu-lhe uma boa ideia. Abriu a gaveta e percebeu que já lá não estavam. Lembrou-se que tinha mudado as navalhas de lugar mas não conseguiu recordar o novo poiso. Caramba, e agora? Olhou pela janela. As nuvens cinzentas iam avançando lentamente na direcção do horizonte. Onde estavam as navalhas!? Um cão ladrou lá fora (ou teria sido uma gaivota?) e ele, sem as suas queridas navalhas por perto, sentiu-se triste, um pouco desamparado. As nuvens estavam cada vez mais longe, pareciam puxar lentamente o cobertor da noite que vinha para cobrir a cidade. Os candeeiros da rua ligaram-se. Pensando bem as navalhas não lhe faziam falta. Pelo menos por enquanto.

domingo, outubro 13, 2019

Dúvida

Pode um cristão ser cristão sem acreditar em Deus?
É complicado mas vale a pena tentar.

segunda-feira, outubro 07, 2019

Sonho de uma manhã de Outono

Será possível a um país sobreviver no mundo globalizado sem obedecer de forma canina às (pouco) subtis orientações economicistas que orientam  a generalidade das opções políticas e sociais tomadas pelos vários governos? Será possível organizar as nossas vidas tendo como foco central o ser-se humano? Talvez...

Não será fácil pensar nas pessoas e no meio ambiente antes de pensarmos no consumo ou pensarmos no consumo em função das pessoas e do meio ambiente. A relação directa entre consumismo e riqueza monetária é o cancro que corrói as nossas vidas e faz um inferno do espaço que habitamos. Temos uma tendência doentia para valorizarmos o enriquecimento sem olharmos às consequências por ele potenciadas.

Segundo o senso comum instalado é melhor possuir do que ser, impingem-nos essa perspectiva a toda a hora e nós acreditamos porque, quando funcionamos em manada, somos estúpidos. Se cada um de nós parar para pensar um pouco sobre aquilo que está a fazer, se cada um de nós compreender a compulsão que o impele a ser um destruidor e não um construtor, decerto ficará apreensivo com as conclusões a que chegou. Agarremos essa apreensão e façamos com ela uma ideia nova.

Uma ideia nova é algo completamente diferente.


sexta-feira, outubro 04, 2019

A sombra

"Já nem sequer me assusto" disse ele para o botão das calças, o único que lhe restava capaz de ter uma conversa, "sinto-o aqui atrás, parece-me estar mesmo sobre o meu ombro, mas já nem sequer me assusto". Continuou concentrado no jornal sem registar com grande rigor a informação que ia ingerindo juntamente com o ar que respirava misturado num café amargo como a vida.