quinta-feira, agosto 29, 2019

Casamento falhado

Poderá a nossa espécie alguma vez recuperar o rumo que, aparentemente, havia tomado quando a Democracia se assemelhou a algo justo? O casamento da Democracia com o Capitalismo já corria mal, o pior foi quando o casal pariu a estirpe de governantes democraticamente eleitos, com merda no lugar dos miolos, que se vão assumindo os cadeirões do poder.

Percebia-se que Trump e Bolsonaro (e Duterte e Órban, etc.) eram coisas más mas estava-se longe de imaginar que fossem uma infecção tão radicalmente mortífera. O resultado será, inevitavelmente, a morte do sistema económico-social que ainda se vai aguentando no mundo global. Isto será dramático para o mundo ocidental e, estou em crer, para o mundo inteiro.

Um mundo desregrado, governado ao sabor dos caprichos destas alimárias, será ainda mais injusto e perigoso do que já era. Talvez seja necessário passar por uma fase de terrível agitação para que, no futuro, algo diferente (para melhor) possa surgir. Para ser sincero, este desejo não me desperta qualquer entusiasmo.

Não consigo acreditar que depois da tempestade que estamos a viver venha bonança capaz de nos reconciliar com a vida humana. Mas isso sou eu a imaginar o Futuro com a minha cabeça limitada. Talvez Deus exista...

terça-feira, agosto 27, 2019

Civilidade virtual

Pretender que uma comunidade humana se paute por princípios de respeito mútuo absoluto entre os seus membros é um desejo situado nas margens do ridículo.

O insulto gratuito e soez ganhou foros de cidadania nos fóruns virtuais. Imaginar que coisas como o Facebook, o Twitter ou as caixas de comentários nos jornais online seriam espaços de debate e iluminação do pensamento revelou-se algo do domínio do absurdo.

Resta-nos fingir que somos civilizados.

domingo, agosto 25, 2019

O Grande Dada

Fui, de súbito, iluminado por um relâmpago que me atingiu em cheio no meio das trombas: Deus é dadaísta! Ou, melhor: o Grande Dada é Deus! Resumindo, para explicar a coisa às almas mais simples e aos que não têm a tromba toda fo... toda chamuscada por terem sido atingidos pelo raio que os parta: Dada é Deus, Deus é Dada.

Um gajo pode andar a vida toda sem perceber patavina e, quando menos espera, ser submetido à mais arrasadora das revelações. Imagino que, para muitos de nós, a Revelação seja o fim da linha. Quantos não irão parar ao hospício da paróquia logo após a visita do Anjo? No meu caso a coisa foi, mais ou menos, pacífica. Mantive-me em casa e fui preparar um cafézinho.

Posso garantir-te, amável leitor, que saber que Deus é o Grande Dada e vice-versa, explica tudo e a vida continua, fazendo muito mais sentido. Experimenta e vais ver.

sexta-feira, agosto 23, 2019

Graal

Quando me deparei conscientemente com a questão da liberdade individual, aí pelos meus doze ou treze anos, deixei de acreditar em Deus. Era para mim impossível aceitar a ideia da Sua existência enquanto polícia, juíz e carrasco da Humanidade. Um ser omnipresente metediço e repressor omnipotente não encaixava com o ideal libertário que começava a tomar forma na minha mente.

Passei a adolescência convicto da superioridade absoluta dos meus pontos de vista apesar da fragilidade dos seus alicerces e da ignorância característica dessa idade. Apercebo-me agora que estava apenas preocupado em viver cada dia como se fosse uma promessa de algo que, então, não me passava pela cabeça, algo que viria no dia seguinte ou no outro, algo bom e completo que fizesse sentido e me permitisse uma sensação de plenitude.

Continuo à espera de perceber que coisa era essa.

Hoje já não acredito tanto que chegue a encontrar esse meu Graal pessoal e particular, ficaria satisfeito se conseguisse perceber, mesmo que apenas vagamente, os seus contornos, quanto mais a sua essência!

Chego à conclusão de que, de certo modo, nunca ultrapassei a adolescência (terei ultrapassado a infância?) e que a idade adulta é uma abstracção absoluta. Ou será a idade adulta esse tal Graal?

domingo, agosto 18, 2019

Eternidade

Demasiado ocupado a fingir não saber quem era, a fingir não pensar na morte, tropeçou numa frase imprudente e caiu numa poça de infelicidade movediça.

A lama infeliz era densa mas puxava-o para baixo. Cada nova palavra, cada gesto que imaginava redentor, só agravavam a situação e ele sentia-se engolido, desconfortável, por vezes irritado. Ficar quieto e calado afigurava-se a solução ideal, ainda que isso significasse o esquecimento absoluto, uma tristeza infinita.

Hirto como um prego, deixou-se ficar. Foi afundando, afundando... encontrara a Eternidade.

terça-feira, agosto 13, 2019

Muros

Um muro implica com a nossa posição neste mundo. Existindo, encontramo-nos de um lado ou do outro. Havendo um muro já não temos todo o espaço à nossa disposição de modo a podermos circular livremente, podemos evitá-lo, podemos ignorá-lo, não olhar para ele mas não é por isso que desaparece. O muro está lá.

Há milhões de muros por esse mundo fora. Pequenos muros, murinhos, muretes, simples cercas de madeira, barreiras com arame farpado, muros altos, muros baixos, a variedade é imensa. O território fica todo recortadinho, marcam-se itinerários em volta de muros ou através deles. Todos os muros têm portas, portões ou meras passagens que podem, ou não ser, guardadas

Além dos muros físicos, como era, por exemplo, aquele que dividia Berlim, há muros psicológicos, muros culturais, muros religiosos, há muros de todas as formas e consistências que ultrapassamos de acordo com a nossa vontade ou a nossa capacidade. Podemos desprezar um muro, não lhe darmos a mínima importância; isso acontece quando a existência da barreira não interfere directamente com a nossa vida nem ofende as nossas convicções. É fácil ignora-se um muro que incomode apenas o vizinho.

A existência dos muros justifica-se ou não: esse é o "tal" debate que não pode fazer-se em abstracto, pois cada muro é coisa demasiado concreta.

domingo, agosto 11, 2019

Barrigas simbólicas

Devo andar a passar por uma cena daquelas que têm a ver com a idade, uma crise qualquer, decerto já estudada e registada em revistas da especialidade e em revistas de curiosidades. Esta manhã dei por mim a reparar nas barrigas dos homens que iam passando. Grandes barrigas!

A minha atenção para as referidas barrigas foi atraída, decerto, por ter reparado na minha própria pança logo após a banhoca matinal. Está a ficar insistentemente proeminente, uma redondeza balofa a querer marcar posição no meu corpo. Vejo-a, penso nela, não gosto de a transportar mas, verdade seja dita, não faço nada de especial que a contrarie e a barriga vai ficando.

Voltando atrás, reparava eu nas barrigas. Contas arriscadas e feitas por alto, anotei mentalmente aí uns 80% de barrigudos. Isto entre novos e velhos e mais ou menos, a barriga não parece escolher idades. Ali estava eu, com a minha barrigota, a reparar nas dos outros. Burgueses como eu, pessoas sem aparentes problemas de subsistência, produtos acabados de um certo modo de vida que assenta no consumo, muito para lá da satisfação das necessidades básicas.

Dei por mim a pensar que estas nossas barrigas são imagem, ícone e reflexo da forma como vamos exaurindo o planeta. As barrigas simbolizam a morte lenta da Terra?

sexta-feira, agosto 09, 2019

Dor fantasma

O mundo revela, por vezes, uma capacidade surpreendente de amarfanhar o coração a um gajo. Não tem de haver nada de especial, não tem de acontecer nada de extraordinário, basta não sei o quê, uma coisinha indistinta... alguma coisa deverá acontecer para que, de repente, aquela sensação incómoda desaconchegue o coração e o ponha fora do sítio.

Um gajo põe-se a magicar: que raio aconteceu? Mas não encontra resposta, não vislumbra razão nenhuma para ter ficado assim, bisonho, meditabundo, a descortinar bolor em cada canto e tristeza em todos os sorrisos. É como uma pedrada na testa, uma coisa de fantasmas.

Não há remédio para esta sensação pois não se percebe o que seja, não há estratégia que reponha o coração no sítio. Resta esperar que passe. Um gajo tem esperança que, tal como surgiu, a coisa se vá e não volte tão depressa.

terça-feira, agosto 06, 2019

Números redondos

Ando a ler um livrinho intitulado As 10 invenções de Picasso. É interessante e dinâmico, bastante razoável... mas, o que me leva a escrever este texto não é o livro, em si, é o número "10".

É aquela suposta magia do número redondo. Porquê 10 invenções? Não terá havido mais uma? Ou menos outra? Ou duas para trás e quatro para a frente da fronteira mítica do número 10? Que raio, estará a autora a torcer os números por forma a chegar ao redondinho que faz o título da obra?

Os números redondos infectam a informação e lixam-nos o imaginário. Ele são os 100 dias de governação que servem para medir o sucesso ou a popularidade de um governo recém-empossado, o Top 10, 30, 50, o Top 100 das músicas mais ouvidas, os 500 filmes que fazem a felicidade de uma vida de cinéfilo, etc. Os exemplos de arredondamento numérico são mais que muitos.

Quantos filmes de merda foram enfiados à força na tal lista para termos 500? Que autores interessantes ficaram fora da lista de best-sellers de modo a não estragar a redondeza numérica? Qual o problema dos números angulosos e agudos, que mal poderá vir ao mundo se uma lista de excelência for composta por 11 títulos ou 23 ideias geniais?

Assim se constrói um mundo artificial.

segunda-feira, agosto 05, 2019

Ler

Ler não é remédio mas alivia a solidão e pode ajudar a manter a estupidez à distância.

Sou um leitor muito lento, quase um caracol, tal o ritmo a que leio. Este ano resolvi fazer uma lista do títulos que vou lendo. Constato que não são mais nem menos do que imaginava. Os temas e os autores são tão díspares que nem eu compreendo qual a lógica das minhas escolhas. Melhor, ao passar os olhos pela lista percebo que não há qualquer lógica nas escolhas.

Romances, crónicas, ensaios, temas históricos, contos, novelas, passa tudo. A única regra é ter sempre um livro para ler. É essa a lógica!

O meu avô materno tinha um pequeno azulejo na parede da cozinha que dizia "Livros e amigos, poucos e escolhidos", nunca esqueci essa frase mas, sinceramente, não oriento a minha vida por ela. Principalmente no que diz respeito aos livros.

Apesar da lentidão com que avanço nas páginas impressas, acumulei centenas de livros nas estantes e recorro com frequência a bibliotecas públicas, muitas vezes por questões de racionalidade económica e de espaço físico. E o meu cérebro? Estarão todos os livros que li guardados nele?