quinta-feira, abril 18, 2019

Tripa mole

A manhã estava límpida. Eu atravessava o Bairro Alto em passo sossegado, pouquinha gente, aquele sol que só há em Lisboa e duas meninas, pequeninas, talvez seis anos, por aí assim, a serem levadas, imaginei, para a escola.

Uma levada pela mãe que, na outra mão, segurava a trela de um cão branco. O cão e o modo como a senhora o orientava fez-me lembrar um aspirador a limpar as pedras irregulares do chão do Bairro. A segunda menina, lenço cor-de-laranja amarrado no topo da cabeça a fazer de conta que era um grande laçarote, vinha trazida por uma outra senhora, esta de cara enrugada, óculos escuros, semblante duro, senhora que não transparecia qualquer emoção.

As meninas ficam felizes pelo encontro. Sorriem. Aproximam-se. O cão resolve cagar. A menina que vai com a mãe nem repara no cócó, a outra menina tampouco. A senhora da cara fechada manteve-se impassível enquanto a dona do bicho se debruçou, saquinho de plástico na mão e "bom dia." A caca do cão é pouco consistente, quase liquída, de tom esverdeado.

Já passei pelo grupo e a cena deixa de estar no meu campo visual. Imagino a velha a responder um seco "b'dia", as meninas a sorrirem e a dizerem coisinhas, a senhora do cão a ter muita dificuldade no ensacamento da merda. Ser cidadã exemplar custa muito caso se tenha um cão. E custa muito mais caso o cão tenha a tripa avariada.

1 comentário:

Anónimo disse...

Umas delícias de crônicas e títulos. " Tripa mole", "Cotidiano delirante".