sábado, março 30, 2019

Dignidade republicana


Andamos todos a olhar para o dedo que nos aponta a lua. O problema dos laços familiares entre membros do actual governo será o da diminuição da capacidade de decisão independente e ponderada que um cargo governativo deveria implicar. 

Imagina-se o pai a dizer à filha: “faz assim”, e ela a fazer; o marido a dizer à mulher (afinal de contas vivemos numa sociedade patriarcal): “quero assim”, e ela a obedecer. Como já alguém sugeriu por aí, as coisas resolver-se-ão à mesa durante um jantar de família e isto não é maneira digna de se gerir a República! 

Pessoalmente, há muito que me incomoda a forma como funcionam os grupos parlamentares na Assembleia da República. Ali, apesar de não existir essa promiscuidade familiar, os deputados obedecem com grande naturalidade à direcção da bancada a que pertencem. Não é tanto a relação pai-filha ou marido-mulher que orienta as decisões, é mais um tipo de relação senhor-vassalo ou dono-escravo: "faz assim" e o deputado faz; "quero assado", e o deputado obedece. 

Se não obedece é penalizado, muitas das vezes, se insiste em ter opinião diversa, é simplesmente corrido. 

Neste universo as coisas resolver-se-ão durante um jantar entre líderes. Os deputados menores sentam-se em redor de outra mesa, como se faz com os putos nos tais jantares de família. Esta sim, é a forma digna de se gerir a República. 

A quem poderá interessar que o poder seja entregue a pessoas que pensem pela sua própria cabeça, pessoas que tenham sido eleitas pelo povo de acordo com o credo democrático?

Carta enviada ao director do Público

quarta-feira, março 27, 2019

Poeira

Tenho tanta saudade de milhentas coisas que esqueci que nem me apercebo do que sofro por isso. Bem que tomo apontamentos (ando sempre com um caderninho daqueles enfiado no bolso e caneta acompanhante), releio escritos antigos, experimento inventar menemónicas complicadíssimas que, como seria de esperar, esqueço no momento seguinte.

Não consigo manter o passado actualizado, constato que a sua relação com o presente é de tal modo misteriosa que nem parecem membros da mesma família.

Mais uma vez tenho esta sensação: o momento que vivemos é como uma nuvem de poeira que levantamos no caminho, uma nuvem que transporta ainda um pouco dos passos anteriores e já nos vai envolvendo com algo semelhante ao terreno que viremos a pisar. Não existe diferença significativa entre o que foi, o que é e o que será, é tudo tempo.

Isto pareceu-me simples mas sei que, daqui a nada já terei esquecido a razão porque me pareceu tão claro, tão evidente, tão esplêndido. No meio da poeirada perco-me todos os dias e, todos os dias, me volto a encontrar.


domingo, março 24, 2019

Marcha lenta

Não sei bem o que fazer desta manhã que me entra pela janela feita brisa suave. Posso fazer o que quiser? Talvez não me apeteça fazer nada. E fazer nada, é fazer alguma coisa?

Vivemos este tempo pacífico num espaço morno, batido por um sol que pretende vestir o fatinho leve da Primavera. Por cá andamos envolvidos nas nossas guerras do Alecrim e da Manjerona.

Ontem desfilei descendo a Avenida em manifestação de professores supostamente encolerizados. Mas era tudo tão pacífico, tão suave, era tudo aparentemente tão leve... milhares de professores caminhando em quase silêncio apesar dos apelos dos "speakers" incitando, na medida do possível, ao grito e à palavra de ordem.

Quase nada. A sensação que fica é a de quase nada se ter passado. Apenas mais uma tarde soalheira nesta capital do império da modorra que é a magnífica cidade de Lisboa, submersa por vagas de turistas com os quais, nós, os professores, nos confundimos ontem, descendo a Avenida pela enésima vez.

Até mais ver, camaradas!

quarta-feira, março 20, 2019

Brilho no olhar

A minha memória é como um campo de minas após a passagem de uma manada de gnus em correria. Por vezes esforço-me por recordar algo, sinto a coisa mesmo ali, a surgir um bocadinho, a quase ganhar forma, mas... caraças, lá se vai outra vez, ralo abaixo, a esconder-se num daqueles buracos de mina rebentada, impossível descortinar qual.

Preciso ser paciente comigo próprio.

Quantos livros li, quanta informação admiti no meu cérebro!? Quantos filmes, músicas, quadros, obras de arte, paisagens, rostos, sensações tácteis, olfactivas, quantas vezes esforcei os meus defeituosos ouvidos na tentativa de perceber melhor uma melodia, um ruído, um riso!?

O mundo pode não ter fim.

Apercebo-me que sei imensas coisas das quais é virtualmente impossível que me lembre.

Por vezes surgem-me informações e memórias inesperadas ao virar de alguma esquina viscosa do meu cérebro. Imagino que esses encontros inesperados sejam pequenos acidentes neuronais, uma luzita ou outra que me ilumina a caverna craniana por um nanossegundo.

É isso o que nos faz brilhar os olhos?

sábado, março 16, 2019

Artistas invisíveis

Ouvi dizer que, em Portugal, para alguém ser artista, na maior parte dos casos, precisa de ser  outra coisa em simultâneo. Qualquer coisa que lhe garanta o sustento. A arte, pelos vistos, não se transmuta em casa-pão-e-roupa-lavada.

Para lá de uma mão-cheia de consagrados e outra mão-cheia de personagens corajosas, o resto dos artistas situar-se-à entre o amador e o curioso. Cá se vai andando...

Fica a sensação e o desejo de que a arte se confunda com a vida, que sejam uma só coisa, uma espécie de milagre ético. Se for assim podem viver mais convictamente os artistas invisíveis, aqueles que nunca passarão da adolescência no mundo da validação artística mediática.

Seremos felizes quando, durante o dia de trabalho, imaginarmos o passo seguinte da obra que ficou em suspenso, aguardando o momento em que a ela possamos regressar. O amor tem destas coisas.

terça-feira, março 12, 2019

Errático

De vez em quando é necessário olhar o espelho com alguma atenção. Será? Parece que sim.

Reparar nos pormenores do nosso rosto, perceber os contornos do corpo que arrastamos connosco e que nos arrasta também sobre a crosta deste mundo; bem vistas as coisas é a imagem que exportamos, aquilo que os outros vêem quando orientam os olhos na nossa direcção.

Mas, aí está uma questão pertinente: vemo-nos com os nossos olhos, somos incapazes de compreender o olhar alheio ("o mundo de cada um é os olhos que tem"), entrar na pele de alguém e calçar-lhe os sapatos é tarefa digna de fantasmas, coisa própria de espíritos errantes.

O espelho é uma superfície, aquilo que nele vemos é superficial. A coisa pode ganhar outros contornos se focarmos a atenção nos olhos. Os olhos são como portas, entras e e sais da alma que te anima. Tens a certeza que é por aí que queres ir?

Temos o corpo e o espelho (a superfície) e temos os olhos e alma (o profundo interno), no meio de tudo isto o cérebro, a tentar compreender, a tentar ver, a tentar ser. Temos o mundo (superfície e profundo interno em simultâneo) sobre ele, dentro dele, em seu redor, milhões de milhões de cérebros de todas as espécies; vida.

Tempos houve em que pensava na Vida como sendo uma permanência, algo infinito, eterno, uma coisa assim. Agora não tenho a certeza disso. Bastante pelo contrário.

sexta-feira, março 01, 2019

Notícia falsa (?)

Os cientistas do Belo, os Estetas, descobriram que a Arte Contemporânea se esconde dentro de cada um de nós.

Uns pensam que se trata de uma espécie de entidade esquiva, algo vagamente semelhante a um parasita que se nos aloja no cérebro alimentando-se da nossa imaginação, outros sustentam a tese de que é como um algoritmo que é activado quando nos deparamos com um objecto artístico.

Outros ainda, menos dados a prescindir da sua autoridade científica, consideram-se detentores das chaves de interpretação correctas, chaves essas que não estarão assim tão disponíveis a qualquer um; para estes apenas a sua opinião poderá validar a natureza artística (ou não) seja lá de que objecto for.

A notícia desta descoberta não tem sido suficientemente divulgada. Continua a haver milhões de seres humanos que desconhecem esta sua capacidade inata e se julgam incapazes de compreender algo que depende em larga escala deles próprios para ser compreendido.

Seja uma entidade (um fantasma ou génio particular) ou um conjunto de dados combináveis (como se fôssemos máquinas que se limitam a computar), a verdade é que todos os seres humanos nascem e morrem com a coisa alojada no cérebro.