Crocodile Bambi
Pessoas passavam carregando as almas como se levassem
sacos de batatas. O túnel de metropolitano até nem estava infernal mas havia
qualquer coisa de estupidamente monótono naquele entardecer, lá debaixo da
terra. Levantei a testa e reparei num vulto que se movia com rapidez e
impaciência na escada inclinada, despachando os degraus furiosamente. Para ser
sincero, o que me chamou a atenção, assim à distância de uma escadaria (com
aquela inclinação absurda), foi a farta cabeleira que esvoaçava agarrada à
silhueta que ali vinha. Parei. O vulto cabeludo era escuro e leve, rápido na
descida. A cada passo ganhava mais luz e mais definição, até que se transformou
numa mulher magra: o queixo afiado ligado ao pescoço como um fio de esparguete.
Um arrepio incómodo percorreu-me a nuca. Havia algo de familiar naquela mulher
cada vez mais feia, aquela mulher já suficientemente próxima para meter medo, os
gestos bruscos, o esqueleto maldoso a ameaçar desabamento lá do alto dos sapatos. Quando aquela fealdade se revelou em todo o seu esplendor, fingi não
reparar. Baixei os olhos sem ver o chão. Fui seguindo o movimento dela,
tac-tac-tac-tac-tac, por ali fora, já não me lembro se com os olhos se com os
ouvidos.
De súbito o
sapateado estacou. Sentia a mulher ali especada. Atrevi-me a levantar a cabeça
com lentidão; lá estava ela, dois olhos verdes e baços
cravados nos meus, ao ponto de doer. “Porra”, decerto pensei qualquer coisa
assim, “ora porra, o que me quer esta gaja?” ou talvez tenha pensado: “o que me
quer esta puta de merda?”; sim, inclino-me mais para “esta puta de merda”. Definitivamente:
“esta puta de merda”! – foi o que pensei naquele terrível momento de revelação.
Ela tinha um sorriso malvado, logo abaixo do nariz,
a rasgar-lhe o focinho como uma navalhada. Um bâton vermelho esbodegava-lhe
ainda mais a figura: desastre complexo. Notei uma sombra de barba por fazer,
aquela gaja era um gajo. Feio. Um gajo patético. Olheiras profundas como fossas
e… “espera lá, eu conheço-te!” Eu sei quem tu és, meu grande cara de cu! “Olha
o betinho!” O gajo falava como se cuspisse as palavras. “Há quanto tempo não te
via, betinho do caralho.” Cuspia as palavras que lhe iam ficando presas nos
lábios. Continuava a ter aquela boca nojenta, sempre brilhante e babosa. Dentro
da boca dele tudo parecia em carne viva, uma boca que parecia um bicho esfolado
ou uma ave recém-nascida. Era como se dentro dele habitasse a Dor e ele não se
importasse com isso, antes pelo contrário. “O que tens feito? Tás muito
bonitinho!” Nem um gesto na minha direcção. Um abraço? Um aperto de mão? Não
querias mais nada; com o Zeca Punk nunca houvera lugar para o mínimo gesto de conforto,
a mínima afabilidade, nunca houve cá toques, o contacto físico com este gajo sempre
fora algo perigoso. Tá quieto!
Eu não conseguia dizer nada. O Zeca era agora uma
mulher. Fora um gajo horripilante, agressivo, intimidante. À minha frente
estava uma mulher assustadora, fria e repulsiva. Coçou o lugar dos tomates.
Parecia estar a medir-me qualquer coisa (a alma, talvez?), parecia avaliar
possibilidades, situações impossíveis que apenas ele era capaz de vislumbrar. Sempre
fora um tipo estranho, difícil de compreender. “Anda, vamos beber um copo.” -
disse-me ele… ela. Disse-o num tom que reconheci de imediato. Eu havia
esquecido aquela sensação, perdera-a algures no meu caminho para a idade
adulta, aquela sensação de impotência quando o Zeca Punk propunha alguma actividade
lúdica; ele falava e o pessoal obedecia sem pensar muito naquilo que estava a
aceitar fazer. “Onde vamos?” perguntei, a sentir regressar a adolescência. Foi assim
que começou.
Sem comentários:
Enviar um comentário