Esta manhã caminhei bastante. Deambulei por caminhos que normalmente não trilho. Entrei no metro de superfície quando cruzei a linha, saí do metro numa paragem mais ou menos ao acaso. Segui por aquela rua porque sim, podia ter perfeitamente enfiado pela outra, mas não.
Foi então que, numa rua iluminada pelo sol que brilhava no frio cortante, vi o sacana. Era o gajo, cuspido e escarrado, um vigaristazeco a quem um dia vendi um carro em 3ª ou 4ª mão. Papéis assinados, apertos de mão, o carro estava tão desgraçado que nem me lembro quanto custou ao escroque, mas lembro-me que foi praticamente oferecido.
Bem que desconfiei, o tipo falava pelos cotovelos, pelos pulsos, pelos tornozelos, o tipo era uma máquina de palavras absolutamente imparável; o aspecto dele: fato a duas cores, gravata colorida, anéis de ouro um pouco por todo o lado (o cachucho no mindinho)... porra! Precisava eu de mais alarmes para perceber o vígaro que tinha à minha frente? A minha natureza é muitas vezes contrária ao senso comum e devo ter pensado: "que se lixe, o aspecto não conta." Enganei-me.
Andei anos a receber multas e intimações da polícia, selos do carro para pagar, tudo porque o gajo, ao invés do prometido a mãos juntas com juras sobre a saúde da mãe, nunca mudou o registo de propriedade e o carro esteve sempre em meu nome. O número de telefone dele deixara de funcionar havia muito tempo.
Portanto, cada merdice relacionada com o malfadado veículo era da minha responsabilidade. Acabei por resolver o assunto após perder bastante tempo, algum dinheiro , toneladas de paciência e, sobretudo, após ter perdido alguma da confiança que tinha nos meus semelhantes.
Hoje, sob o sol matinal, lá estava ele, não havia dúvidas, o cabrãozeco; em carne e osso! Era como se o mundo me estivesse a oferecer uma oportunidade de colocar algumas cenas em pratos limpos. Aproximei-me com o intuito de falar com ele mas, quando estava mais perto, reparei no aspecto do homem.
Estava muito diferente do gajo que me enganou. Sujo, despenteado, roupa amarrotada. Olhou-me mas não me reconheceu (gajos como eu deve ele ter enganado às pázadas, devemos parecer-lhe todos iguais, não sei...). O olhar turvado (álcool?), passo titubeante, um farrapo humano. Passei por ele sem sorrir nem sentir nada de especial. O frio da manhã envolvia-me o coração.
Agradeci ao mundo a oferta que me fazia mas, não, obrigadinho, mundo, podes ficar com este gajo para ti, não o quero para nada. Já passou à condição de fantasma. Mais uns dias e torna-se completamente invisível.
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