Há coisas extraordinárias. Chamamos essas coisas de coincidências. Serão coincidências, mas, quando nos apercebemos delas, são coisas extraordinárias.
Há pouco, durante uma aula de desenho, uma aluna folheava um livro de História da Arte. Parou numa página que reproduzia A Última Ceia, de Leonardo da Vinci. Comentário para aqui, comentário para ali, lembrei-me de que, na minha infância, era muito comum haver reproduções dessa imagem. Todas as casas ou, pelo menos, a maioria dos lares, tinham uma dessas reproduções pendurada na parede da sala onde se tomavam as refeições.
Na minha memória formou-se a imagem de uma reprodução em baixo relevo, de latão. Não me recordo exactamente onde estava o quadro dessa minha memória (seria em casa dos meus avós paternos?) mas senti uma certa nostalgia. Apesar da sua singeleza extrema e absoluta vulgaridade, recordei o objecto com alguma saudade. Apercebi-me de que terei passado muitos minutos, horas, decerto, a contemplá-lo.
A conversa derivou para outros temas, a aula terminou. Quando saí da escola desci a rua, como faço quase todos os dias. Lá mais ao fundo, no passeio do outro lado da estrada, um casal debruçava-se sobre um objecto rectangular de razoáveis dimensões. Apercebi-me que se tratava de um quadro.
O homem arranjou maneira de lhe pegar e o casal retomou o passo, dirigindo-se para a passadeira. Eu vinha do outro lado, em direcção ao mesmo local de atravessamento e, quando finalmente consegui estabelecer contacto visual com o pesado objecto que o homem transportava, caraças, era uma daquelas últimas ceias, como a da conversa e da minha memória!!!
Tantos anos sem me lembrar daquilo e, logo hoje... estas coisas acontecem, são parte da banalidade, eu sei. Mas, quando acontecem, a banalidade transforma-se em algo extraordinário deixando de ser o que era, passando a ser outra coisa. Só não sei que coisa é essa.
Senti um arrepio e uma leve vertigem, quando me cruzei com o casal e a sua última ceia, a meio da estrada. Agora a coisa já perdeu o significado. Mas, penso, perdeu-o porque não fui capaz de perceber o que significa uma situação deste género. O mais certo é não significar nada de especial, ou então... não.
13 comentários:
Bem, não resisto e vou contar uma dessas que também aconteceu comigo muito recentemente. Tenho aqui em casa um livro do José Luís Peixoto ( A Casa na Escuridão ), que comprei há muito tempo mas que acabei por nunca o ler ( nem ter sequer vontade para). Mais recentemente por causa de uns trabalhos que fiz com umas escolas e em conversa com o coordenador das actividades onde participei, fiquei a saber que o J. L.Peixoto tinha lá estado a falar do seu trabalho. Dessa conversa ficou a minha enorme curiosidade para ler o “Livro” ( um dos livros dele ). Alguns dias depois estava eu na biblioteca municipal de Oeiras e qual não é o meu espanto reparo que o livro da semana na biblioteca é o .....” Livro “. Requisito o livro que leio em 3 dias e que adorei. No dia seguinte de manhã estou eu a sair de casa, ainda às voltas com o “Livro” na minha cabeça, e quem é que eu vejo a subir o mesmo passeio na minha direcção? José Luís Peixoto. Fiquei parado a tentar perceber o que é que estava a acontecer. Gostava de ter partilhado esta história ali com ele, mas não consegui.
Tenho pena porque acho que ele também iria gostar de saber isto, quer dizer, eu no lugar dele teria gostado.
Por vezes fico a pensar que este sistema Ocidental em que vivemos é muito racional no seu ADN e deixa-nos muito pouca margem para os mistérios da vida. Tudo é estudado, trinchado e analisado. Somos educados a ser racionais, tudo tem que ter uma explicação e com isso começa a sobrar muito pouco espaço para o mistério. Neste aspecto tenho imensa inveja das culturas indígenas ( africanas por exemplo ), onde tudo se perpetua no mundo das histórias, e eles acabam por viver uma vida inteira embalados por esse mundo.
Gostei desta tua história. Está repleta de mistério e isso é mais do que suficiente para acabar bem a semana.
Silvares e Rui Sousa,
tanto o post como o comentário são deliciosos! E o curioso é que tenho "uma" em bronze, assinada e datada do início do século passado, e que esta na família a mais de 100 anos. Ver foto aqui: http://cimitan.blogspot.com.br/2010/04/ultima-ceia.html
Sempre nutri por ela esse mesmo sentimento descrito pelo Silvares. Cheguei a tirar a moldura de época, mantive-a chumbada na cozinha da Piacaba, e há dois anos retirei-a da parede e mantenho-a encostada numa lareira! Como é de bronze, e das boas fundições da itália de antigamente, deve valer o quanto pesa....
Rui, Eduardo, imaginemos as coisas que não somos, sequer, capazes de imaginar! Impossível, não é? E no entanto...
O valor simbólica da última Ceia é muito relevante. Somos nós que ali estamos antes de um qq sacrifífio. E pão e o vinho é o sacrifício de viver.
"O sacrifício é deixar de comer o pão e o vinho, para não engordar!" srsr
(;-))
Agora sério: João, o simbolismo dado a certas coisas ( como aqui no caso, à Santa Ceia ) é posterior ao ato do seu criador! Leonardo da Vinci certamente ao pintar essa cena, só pensava em retratar a cena biblica, muito antes narrada, também sem nenhuma intensão simbólica! Nós, espectadores da pintura, ou leitores da biblia, é que vamos interpretando ao nosso bel prazer. Vamos "vendo" ou "lendo", com "nossos" olhos e angústias, e dando a elas 'simbolismos" que não tem, ou não tiveram intensão de dar, seus criadores!Concorda?
Como pendo que sabem, Leonardo demorou três anos a pintar o fresco e esgotou a adega da capela. Talvez por isso fosse a última ceia!
Não tenho por hábito acreditar em coincidências.
Fatos assim você acertadamente denominou; são coisas extraordinárias.
Também não acho que a coisa já perdeu o significado.
O que você escreveu aqui deu o sentido todo especial e merecido que ela teve naquele momento e agora também.
É bom ser capaz de perceber um pouco de tudo ou muito de quase nada. Mas perceber!
Se é certo? Não importa.
;)
Li
Concincidência nunca é mera.
Também gostava de perceber.
Há 20 anos (+ ou -)estava eu e uma amiga a ouvir rádio e a fazer a revisão de texto do manual escolar que ela tinha escrito. Muito caladinhas a trabalhar. Quando encontrei as palavras "impacte meteorítico" não resisti e li alto com tom de crítica negativa pois incomodava-me a moda de optar por "impacte" em vez do habitual impacto.
Ela imediatamente disse:
- Engraçado, estava mesmo agora a ler aqui "impacte ambiental".
O locutor da rádio que estava calado há horas interrompe a música e diz:
-Impacte RFM... e mais umas coisas que nós já não ouvimos tal foi o choque.
Foi agradável.:)
Sinto estas situações (já vivi + 2 ou 3) como uma comunhão, mas com quê?
São como se fossem arco-íris e eu ainda não soubesse como se formam.
Banalidades como dizes.
Beijos
Alice R.
Há coisas extraordinárias nessa vida, Rui, é como epifania. E é por essas coisas e outras que a nossa vida vale a pena. A aula, a aluna, o livro, a tela , a memória, a infância, seus avós... e por aí vai. Que lindo seu texto: da aula, depois surgiu a conversa que derivou noutros caminhos cheios de significados pra vc, pra mim e outros leitores seus. É extraordinário.
Beijo
madoka
Caríssimas e caríssimos, tenho andado tão soterrado em trabalhos vários que nem as 100 Cabeças me bastam.
Li todos os vossos comentários com um sorrisinho nos lábios.
Banalidades destas acontecem um pouco a toda a gente, só precisamos de estar atentos para nos apercebermos delas E haverá, decerto, todas as outras de que não nos apercebemos e nos passam ao lado sem as vermos.
Há pessoas que acham e pensam que tudo isto tem uma explicação, não sei se lhe posso chamar lógica, mas isso já é uma outra história.
Grato pelos comentários e visitas.
em verdade te digo meu filho, viste a luz e, pobre pecador empedernido, não a soubeste reconhecer pois é mais fácil uma agulha passar pelo buraco de um camelo do que 100 cabeças reconhecerem um milagre quando este lhes passa pelo nariz.
Ó cidadão, agulhas a passar em buracos de camelo é coisa do mais trivial que imaginar se possa!
:-)
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