Muito se fala sobre ser adulto, ser infantil, ser adolescente, ser cão, ser avião ou, mais simplesmente, não ser nada de nada ou uma outra coisa qualquer. É tudo uma questão de identidade, uma forma de procurar a definição exacta de uma pessoa. Como se isto de ser ou não ser fosse questão com resposta objectiva, mensurável, catalogável e, finalmente, passível de arrumar na prateleira correcta, no lugar absoluto e inquestionável que cada um de nós ocupará, infalivelmente, no universo das coisas tangíveis.
Pois eu não estou nada de acordo. Nem com isso (com o quê, exactamente?) nem com o seu oposto, que é a mesma coisa vista ao contrário. Apesar de já levar umas quantas décadas a andar por aí, não posso afirmar com segurança que sou um adulto. Se o fizesse estaria a mentir-te, caríssimo e impagável leitor, e a enganar-me a mim próprio, autor meio desvairado destas linhas que, aparecendo aos nossos olhos na horizontal, são, na verdade, oblíquas, sinuosas e, acima de tudo, muito, mas mesmo muito, maldosas, benza-as Deus Nosso Senhor.
De cada vez que estou perto dos meus pais, mais da minha mãe, estou em crer, há qualquer coisa dentro de mim, penso que seja uma peça, que me faz sentir infantil. Na verdade é a sensação de ser filho, o que equivale a uma sólida sensação de infantilidade. Posso ter quase 50 anos, mas a proximidade dos meus progenitores devolve-me a doçura da infância. Garanto-te, leitor amigo, se não fosse o espelho implacável, poderia imaginar-me de novo com o cabelo todo no lugar e os pulmões mais limpos que o chão da cozinha após a passagem da esfregona com desinfectante, a cheirar a flores selvagens.
O dia virá em que os meus pais se irão. Talvez nesse dia eu me transforme, finalmente, nessa coisa que é ser um adulto. Até lá, juro a pés juntos, continuo a ser uma criança. Com barba e pouco cabelo, com barriga e demasiados vícios, mas criança. Uma criançola apenas. O que já não é pouco, diga-se de passagem.
7 comentários:
E os teus pais, como se sentem?
E como te sentes em casa, na família nuclear?
Essa é uma coisa curiosa, tão íntima e difícil de racionalizar, que, se calhar, ninguém te respondeu. Porque são coisas que se sentem mas não se explicam, pelo menos com facilidade.
Aconteceu-me a outra face da moeda, pensei em ser adulto o mais depressa que pudesse. Não é o mesmo que te referes, de modo nenhum, porque as circunstâncias são outras e refiro-me ao querer ser e a certa altura a ter de ser. Quando falo em adulto, falo na independência, não do sentimento da memória. No entanto, acho que te percebo.
Sentir isso quer dizer que vais sentindo o tempo desses tais 50 anos. Umas vezes parece que tudo foi já ali, outras que é mesmo muito tempo. E vamos oscilando entre essas sensações...
Sinceramente, tenho alguma dificuldade em perceber até que ponto me tornei adulto ou o que tem isso de diferente com o ser adolescente (ou que diferença há entre a adolescência e a infância). Talvez essa dificuldade tenha a ver com o facto de estarmos sempre dentro da nossa pele e ser complicado recordar exactamente o minuto anterior ao minuto que estamos a viver...
Rui se calhar não tem nada a ver, mas de repente este teu post fez-me viajar até ao universo de um dos maiores loucos de Portugal e porque não dizer, do mundo: Teixeira de Pascoaes. Não resisti e deixo aqui um trexo desse seu magistral " Livro de Memórias.
" O primeiro olhar é que vê. Uma estrela, ao recebê-lo, abre-lhe os seios de luz, como as árvores lhe mostram o coração primaveril.
Mas a primeira nódoa que o suja rouba-lhe o dom de ver. Perdemos bem cedo a vista e andamos na Terra como cegos. O mundo escurece e arrefece. Imita as paredes de um edifício, desamparadas, denegridas, a fumegar. É o que nos resta da Criação depois do primeiro desengano.
A infância é a luz perfeita, visão perfeita. As criaturas aparecem-lhe conforme Deus as fez. E vivemos encantados até à hora do pecado, que é o primeiro instante da nossa morte. Vivemos porque a vida é êxtase, espanto, enlevo, simpatia, impressão alada em que se volatiliza o nosso ser e vai através do espaço… "
E não ficaremos sempre crianças, apenas com medo de morrer?
Rui, quantos de nós não desejam recuperar essa visão, essa "luz perfeita"?
Jorge, espero que sim.
Como a pouco perdi minha mãe, agora me sinto orfã de pai e mãe e, infantil. Uma pena que não posso mais pedir colo :( Beijus,
Belo texto, tenho que concordar que também me vejo assim muitas vezes...
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