O rapaz comporta-se como se estivesse sob vigilância constante de uma câmara de filmar manuseada por um grande realizador que fizesse um documentário sobre a sua vida. A vida daquele rapaz, aparentemente banal mas que, na realidade, poderia servir de argumento para todo o género de filmes. Desde filmes de acção a filmes de mistério e espionagem, por aí fora, até uma pungente comédia romântica que ainda não aconteceu na vida daquele rapaz mas que irá colorir a sua existência, mais dia menos dia. Fatal como o destino!
E vê-se tudo isto no seu olhar semicerrado, na sua postura arrogante, na cabeça atirada para trás, no gesto afectado do seu braço esquerdo que parece combater o direito na busca de uma expressão física que retrate toda a magnificência incógnita que o caracteriza mas que apenas pode ser captada pela tal câmara escondida, pela genialidade do tal realizador que discretamente o acompanha. Mas nem esse génio cinematográfico é capaz de compreender toda a grandeza desta personagem. Nada nem ninguém poderá alguma vez abarcar nem uma ínfima parte da complexidade do seu ser.
Como ele, todos os outros. Todos os rapazes são estrelas do seu próprio filme. Estrelas esquecidas na imensidão do firmamento que é a cidade e os que nela habitam as horas. E evitam os minutos.
terça-feira, maio 31, 2011
quinta-feira, maio 26, 2011
Abusos
A Democracia é vítima dos mais variados abusos. Abusam dela os que nela dizem acreditar e também aqueles que a desprezam. O seu nome é utilizado para defender uma determinada posição e a posição contrária. Os mais descarados déspotas usam-na para legitimar poderes intermináveis e os que são por esses déspotas oprimidos gritam por ela nas ruas ou no silêncio dos seus lares. A Democracia é uma Deusa.
Tal como o nome de Deus (qualquer um dos numerosíssimos nomes de Deus) é invocado para justificar crimes hediondos ou para patrocinar actos de amor e profunda compaixão, os valores democráticos são reclamados nas mais improváveis situações e pelos mais caricatos actores desta farsa a que chamamos Mundo Real.
Serve para ilustrar o que afirmo acima uma notícia que acabo de ler (ver aqui) e que tem por título: "FMI: China espera decisão democrática na sucessão de Strauss-Kahn". Por um lado parece-me extraordinário que um governo não-democrático invoque a Democracia nesta situação. Por outro lado parece-me fantástico que, numa instituição como o FMI, se possa utilizar o processo democrático para escolha de um líder que tem como missão principal ignorar os sistemas democráticos dos países onde leva a cabo as suas missões de inspiração apocalíptico-económica.
O nome da Deusa Democracia é constantemente invocado em vão. E não parece ser grande pecado.
domingo, maio 22, 2011
Democracia e pós-democracia
Manifestação em Madrid e manifestação em Lisboa, a Ibéria está a arder?
Depois da Avenida da Liberdade, as Portas do Sol. Os cidadãos manifestam-se abertamente contra o rumo que a sociedade ibérica vai tomando, esta coisa que teimamos em designar preguiçosamente por “democracia”. Os que se manifestam são, na sua esmagadora maioria, jovens que nasceram em sociedades onde a liberdade de expressão é, sem sombra de dúvidas, o maior de todos os bens. Para eles, para todos nós, a possibilidade de expressar abertamente a opinião é tudo o que resta já que o voto, essa utópica “arma do povo”, nos é constantemente usurpado pelos políticos que elegemos ciclicamente em eleições que mais se parecem com grotescas caricaturas daquilo em que acreditamos. O regime transformou os cidadãos em consumidores, prometendo o acesso global a bens de consumo que nos são impostos através de campanhas publicitárias totalitárias, em tudo semelhantes às campanhas eleitorais. Há quem se gabe de “vender” presidentes e primeiros-ministros como se vendesse sabonetes ou qualquer outro produto comercial. Vivemos tempos em que parecer é muito mais valioso do que ser.
Fala-se por aí em “pós-democracia”, um regime em que somos governados por grupos económicos que não se sujeitam ao escrutínio popular e se representam exclusivamente a si próprios e fazem prevalecer os seus interesses particulares em detrimento dos interesses colectivos. Observando o que se passa actualmente nos países da Zona Euro estupidamente caídos em desgraça, com as imposições draconianas ditadas por poderes económicos que praticam a usura como se ela fosse um direito divino, o conceito de “pós-democracia” não só faz todo o sentido como se mostra um retrato perfeito da realidade que vivemos.
A “democracia” tal como nos ensinam nos bancos da escola, já se diluiu nesta coisa pastosa das agências de rating e dos bancos privados e do capitalismo selvagem. Diluiu-se, desapareceu, acabou, transformou-se noutra coisa. Transformou-se num lobo esfomeado vestido com a pele imaculada de um cordeiro oferecido em sacrifício aos deuses da economia, essas divindades canibais e insaciáveis que quanto mais carne humana comem com mais fome ficam.
Vivemos tempos de mudança, tempos de redefinição. E é nas ruas que o sinal está ser dado. São os mais jovens a despoletar o processo porque sentem na pele a injustiça pós-democrática que os coloca na prateleira, a amadurecer, enquanto os mais velhos vão sendo devorados.
Este estado de coisas está a chegar a um ponto extremo de saturação. Ou deixamos a coisa estoirar por si, o que será uma desgraça absoluta, ou tentamos provocar e controlar o seu estoiro e talvez tenhamos alguma esperança numa desgraça relativa. Não podemos continuar a olhar para os senhores “pós-democráticos” como se eles estivessem preocupados com o nosso modo de vida.
Alguma coisa tem de mudar para que tudo mude, de facto. É urgente refundar o conceito de Democracia. E, por muito que isso custe às luminárias do regime, essa refundação vai ter de ser feita nas ruas.
terça-feira, maio 17, 2011
O estranho caso do senhor DSK tem ocupado todos os noticiários e põe a cabeça a andar à roda aos socialistas franceses. Tem todos os ingredientes para proporcionar uma reflexão trepidante: sexo, dinheiro e muito poder. Mas não foi esse o assunto que hoje me fez pensar na vida. Não. O que me fez pensar na vida hoje foi um assunto de merda.
Leio no jornal uma notícia que fala de um movimento de cidadãos preocupados com a merda dos cães nos passeios das cidades portuguesas (ler aqui). Pedem os promotores desse movimento (que tem uma página no Facebook aqui) que lhes sejam enviadas fotos de poias abandonadas pelas ruas. Apresentam umas ideias curiosas, se bem que algo bizarras, relacionadas com a falta de civismo de muitos cidadãos, incapazes de recolher as caganitas deixadas pelos seus animais de estimação.
Mas o que me faz escrever estas linhas é outra coisa. Lembro-me bem, aqui há uns anos atrás havia muitos cães vadios, alguns deslocando-se em matilhas quase selvagens, deambulando por todo o lado. Em algumas situações chegavam mesmo a colocar as pessoas em situações embaraçosas. Quantas vezes não tive de me defender à pedrada ou ao pontapé ou tive mesmo de correr para me pôr ao fresco! Com a crescente organização dos serviços municipalizados essa bicharada foi desaparecendo de circulação, enfiada em canis. As ruas tornaram-se mais seguras.
Agora só há cães com dono, bichos fechados em casa que saem ao caír da tarde para fazerem os respectivos chichis e cócós, a maior parte das vezes seguros por trelas e com um ar pouco feliz.
Aconteceu algo semelhante com as crianças. Quero dizer, deixei de ver bandos de putos a correr ou a jogar à bola ou, simplesmente, aos pinotes e aos gritos pela rua. Agora jogam futebol em escolas especiais para aspirantes a Cristianos Ronaldos e jogam jogos de consola, enfiados nos seus quartos, com bonequinhos virtuais que correm por eles, saltam por eles e gritam por eles.
Nas ruas passam carros incessantemente, o vozear da petizada substituído pelo ronco dos motores, a cidade a deixar-se dominar pelo poder das máquinas. Mas, ao que parece, ainda com muita merda nos passeios.
domingo, maio 15, 2011
Contemplação
A pé ou de carro ou de autocarro (os que vão em meios de transporte subterrâneos representam o paradigma da situação que tento aqui expor) os olhares parecem não ser capazes de se fixar na paisagem urbana. As pessoas atiram os olhos para o fundo de telemóveis (ou aparelhos desse género) buscando constantemente imagens que não estão ali, à sua volta, como se o objectivo das suas vidas fosse, simplesmente, consumir imagens artificiais que lhes chegam constantemente, produzidas por outras pessoas.
É uma espécie de magia trecnológica que nos coloca em espaços virtuais alternativos e nos rouba ao lugar onde nos encontramos. É como na canção de António Variações que diz: "eu só estou bem, aonde não estou e eu só quero ir aonde não vou...", fugimos sempre do "aqui e agora" sem nos apercebermos que assim poderemos estar a fugir daquilo que somos, de quem somos. Qual é o problema? Também não sei bem.
É aqui que entra aquilo que chamamos de "street art". Os gajos que pintam as paredes das ruas criam momentos específicos na monotonia da paisagem urbana, roubam-nos a atenção para fora de nós próprios, devolvem-nos o olhar particular e individual que nos caracteriza e distingue uns dos outros e dos bichos que connosco convivem nos esgotos. Tornam possível o acto de contemplar o mundo artificial em que nos movemos como autómatos. "Sujam-no", fazem dele um espaço imperfeito e, como tal, humanizam esse espaço.
segunda-feira, maio 09, 2011
Olhos que não vêem...
Como em qualquer bom filme de terror, é mais interessante aquilo que não vemos do que o sangue expressamente representado. O terror pode ser dado pela expressão de uma personagem e não pela navalha a perfurar a pele. Assim ficamos a "ver" a morte de Bin Laden pelas expressões das personagens que assistiam à função em plena "situation room". O espectáculo foi exclusivo para os grandes semhores da guerra norte-americanos. O que eles viram dificilmente viremos a saber.
"O mundo de cada um é os olhos é que tem" e o que os olhos vêem é o que nos vai construindo a personagem que somos. Diz o povo que "olhos que não vêem, coração que não sente". Talvez... talvez...
domingo, maio 08, 2011
Ver ou não ver, eis a questão
O mundo mediático é visual. A ausência de imagem cria a dúvida, mesmo sabendo da facilidade com que as imagens são manipuladas e se criam falsos testemunhos fotográficos.
O recente caso do assassinato de Bin Laden vem mostrar como as coisas funcionam. Por um lado, a criação quase imediata de um "documento" fotográfico que mostrava o célebre terrorista morto e deformado; por outro a ausência estratégica de imagens que pudessem criar uma situação incendiária no mundo árabe, declarada pela administração norte-americana, que não quis fornecer um ícone profano aos fundamentalistas islâmicos com provas do sucesso da sua acção exterminadora.
Se passearmos pelo Facebook notamos a prevalência esmagadora da imagem sobre a palavra. Os utilizadores dessa rede social mostram fotos e vídeos às toneladas e restringem o texto ao mínimo necessário para sublinharem o que pretendem mostrar com as imagens que colocam nos respectivos murais. O feedback a essas "colocações" não ultrapassa muito o célebre "gosto-não gosto" ou pequenas frases de comentário. Cada vez mais emprenhamos pelos olhos e comemos com os olhos e cada vez menos nos questionamos utilizando a palavra como veículo de comunicação.
Nos dias de hoje, escreveria Shakespeare uma frase como "ver ou não ver, eis a questão"?
O recente caso do assassinato de Bin Laden vem mostrar como as coisas funcionam. Por um lado, a criação quase imediata de um "documento" fotográfico que mostrava o célebre terrorista morto e deformado; por outro a ausência estratégica de imagens que pudessem criar uma situação incendiária no mundo árabe, declarada pela administração norte-americana, que não quis fornecer um ícone profano aos fundamentalistas islâmicos com provas do sucesso da sua acção exterminadora.
Se passearmos pelo Facebook notamos a prevalência esmagadora da imagem sobre a palavra. Os utilizadores dessa rede social mostram fotos e vídeos às toneladas e restringem o texto ao mínimo necessário para sublinharem o que pretendem mostrar com as imagens que colocam nos respectivos murais. O feedback a essas "colocações" não ultrapassa muito o célebre "gosto-não gosto" ou pequenas frases de comentário. Cada vez mais emprenhamos pelos olhos e comemos com os olhos e cada vez menos nos questionamos utilizando a palavra como veículo de comunicação.
Nos dias de hoje, escreveria Shakespeare uma frase como "ver ou não ver, eis a questão"?
(este post não é acompanhado de qualquer imagem que o suporte. Já tinhas reparado?)
sexta-feira, maio 06, 2011
Fábula para os tempos que correm em Portugal
Era uma vez um rato.
O rato fugia desesperado de um gato grande e gordo e muito mau.
Fugia às cegas, num bosquezinho entalado entre prédios cinzentos e estradas movimentadas, corria como o vento, sem saber muito bem para onde se dirigia. Fugia a 100 à hora mas não conseguia desorientar o gato que, apesar de muito gordo, era um caçador diabólico.
O gato tinha muitos anos de prática e já caçara milhentos ratinhos como aquele que agora corria à sua frente. O gato sabia que o rato haveria de cansar-se. Era uma questão de tempo.
Na sua correria destemperada, o rato entrou num imenso prado verdejante onde havia apenas uma vaca a pastar. Olhando em volta o rato percebeu que estava perdido, não descortinava um único esconderijo onde pudesse sonhar com a salvação. Arfando, aproximou-se da vaca e disse.
-Dona Vaca, por favor, esconda-me. Vem aí um gato grande e gordo e muito mau que me vai comer sem dó nem piedade.
A vaca olhou o ratinho com aquele olhar que as vacas têm e repondeu-lhe:
-Ratinho, não há tempo a perder. Põe-te aí atrás e vai rezando.
Mal acabou a frase cagou abundantemente sobre o pequeno roedor, escondendo-o sob uma imensa bosta no meio daquele prado verdejante. Um monte de esterco castanho, combinando na perfeição com a paisagem.
O gato entrou no prado em passo de corrida e estranhou não ver o rato. O monte de merda chamou a atenção do felino que reparou no rabinho do rato que ficara de fora e tremia de medo e nojo por estar tão profundamente enfiado na merda. Sem dizer uma palavra o gato esticou as garras e cuidadosamente retirou o rato que esperneava desesperado. Abanou-o com um refinado gesto de grande classe, soltando pedacinhos de caca em todas as direcções e, sem hesitações, engoliu-o de uma só vez.
Adeus ratinho.
Moral da história: nem sempre quem te põe na merda te quer mal, nem quem te tira dela te quer bem.
terça-feira, maio 03, 2011
1º de Maio de 2011
Estranho dia este em que se comemorou mais um aniversário do Dia do Trabalhador, o Dia da Mãe, a beatificação de João Paulo II e, a partir de agora, principalmente nos Estados Unidos da América ou em Nova Iorque, em particular, comemorar-se-á também a morte de Osama Bin Laden.
Para os que acreditam no martírio dos guerreiros do Islão, esta data marcará uma espécie de beatificação de Bin Laden.
Se Deus for um único qual dos santos estará neste momento a receber a luz divina na sua fronte impassível: João Paulo II ou Bin Laden? Qual deles será o verdadeiro santo? Algum deles será santo?
Vou pensar no assunto e depois esquecê-lo.
domingo, maio 01, 2011
Música portuguesa que ouço com prazer (desmedido) -2
Continuando a postar músicas que muito prazer me dão ouvir aqui deixo um vídeo dos Oquestrada, um grupo da minha terra de adopção, a cidade de Almada, aquela cidade que está do lado certo do rio Tejo. Chamo particularmente a atenção para a extraordinária guitarra portuguesa que nas mãos do meu amigo Lima (o maior guitarrista de toda a nação, o gajo mede para aí quase dois metros!), a guitarra portuguesa que nas mãos do Lima, dizia eu, parece um objecto extraterrestre, pelo menos. Uma festa!
Subitamente... santo!
Não tenho nada contra a mitificação de certas personagens, promovida por determinados grupos, com o objectivo de consolidar as fundações das suas crenças e da sua razão de existir. O Benfica tem o Eusébio, Portugal tem Dom Afonso Henriques, a igreja católica tem uma galeria infindável de santas e de santos que ajudam a manter a fé de multidões de crentes. Por mim está perfeito, cada macaco no seu galho, parece-me bem e de acordo com a lei divina.
A beatificação de João Paulo, aclamado "santo subito" pela populaça, é algo absolutamente legítimo. É uma das muitas situações que me ajudam a compreender com clareza porque razão é para mim impossível ser católico. Lá que declarem santo quem muito bem entendam, já o disse e repito, parece-me absolutamente legítimo, mas que o façam recorrendo à certificação de milagres comprovados com carimbo e assinatura divina, isso já ultrapassa as fronteiras do aceitável.
Eusébio foi um dos maiores jogadores de futebol de todos os tempos, tem uma estátua à porta do estádio do Benfica e é, ainda, adorado por multidões de devotos da biqueirada na chincha. Os seus feitos extraordinários estão registados e podem ser comprovados com a maior das lisuras.
Dom Afonso Henriques fundou a nacionalidade desta coisa que temos por baixo dos pés e a que chamamos Portugal, a pátria muito amada e isso. Tem também uma estátua em Guimarães e, talvez, mais umas quantas por esse país fora, não sei se tem ou não, mas se tivesse não seria nada de mais. Foi guerreiro de méritos comprovados e espertalhão q.b., tudo isto é verdade verdadinha. Não é?
João Paulo II até pode ter sido um gajo porreiro, um daqueles bonzões adoráveis, capazes de fazer derreter os corações mais empedernidos. Mas, daí a ter realizado milagres... custa-me a engolir. Aliás, foi ele e mais uns milhares de santos da igreja, o que mostra como este mudo é um lugar de incontáveis acontecimentos muito para lá do maravilhoso e do fantástico.
Que seja santo. Ok. Mas que a santidade seja reconhecida pela correcção e pela bondade da personagem e nao por razões que a razão não pode reconhecer sem incorrer na mais negra das mentiras.
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