quarta-feira, abril 06, 2011

Uma parábola


 À liberdade inicial foram impostas regras restritivas

Nem de propósito. Logo após ter escrito o post anterior dou de caras com a notícia da detenção e subsequente desaparecimento em parte incerta do artista chinês Ai Weiwei.

Conhecido no Ocidente como co-autor do "Ninho de Pássaro", o estranhamente espantoso Estádio Nacional de Pequim, e de uma abstrusa instalação escultórica de milhões de sementes de girassol feitas de porcelana em exibição na Tate Modern em Londres, Weiwei é um crítico público e notório do actual regime "social capitalista" chinês.

O artista foi surripiado por agentes policiais e engavetado em local indeterminado. O crime dele? Nenhum, aos olhos de um regime democrático, algo grave, decerto, segundo os parâmetros dos poderosos chineses. Como podemos aceitar uma coisa destas? Ou encolher os ombros ou desviar o olhar? Como podemos partilhar um mundo global com regimes que não respeitam a dignidade humana nem compreendem o que sejam direitos de cidadania? Como podemos competir no processo de globalização com países que jogam o mesmo jogo que nós mas com regras completamente diferentes? Neste jogo estamos em nítida desvantagem e derrotados logo à partida.

Como tenho vindo a explicar nos últimos tempos, tenho a sensação de que a nossa sociedade deu início a um processo de "sinificação" irreversível (transformação do nosso sistema sociopolítico ocidental em algo próximo do sistema sociopolítico chinês). Este processo é confuso porque é composto de sinais contraditórios. Por um lado Xiaogang, o grande pintor, triunfa. Por outro Weiwei, o artista contestatário, esfuma-se. Por um lado os trabalhadores ocidentais reclamam condições de trabalho que consideram decentes e salários correspondentes ao que imaginam ser justo para eles, por outro os trabalhadores chineses dão o exemplo do que teremos num futuro muito próximo: mais horas de trabalho, menores salários e boquinha calada se não quisermos ir fazer companhia a Ai Weiwei.

Weiwei torna-se um símbolo deste estranho fenómeno de fusão sociopolítica à escala planetária.

O "Ninho de Pássaro" será adaptado para se tornar, preferencialmente, uma espécie de gigantesco centro comercial. Sintomático!

A instalação na Tate Modern, que Weiwei concebeu como um imenso tapete para ser pisado pelos visitantes, que também se poderiam submergir nas sementes de girassol de porcelana, acabou por ser declarada potencialmente prejudicial para a saúde dos visitantes. Ao que parece, a coisa liberta um pózinho que, se inalado repetidamente e durante um período de tempo alargado, poderá ter consequências nefastas.
Por isso, a Tate e o artista decidiram “não permitir membros do público a andar por cima da escultura”.(vale a pena ler aqui).

A instalação de Weiwei torna-se, assim, uma inquietante parábola do processo de "sinificação" do ocidente. É coisa para se ver ao longe por ser potencialmente perigosa para a saúde se por ela nos deixamos seduzir ao ponto de nela nos embrenhamos.

8 comentários:

rui sousa disse...

Karl Marx profetizou que o capitalismo iria devorar-se a si próprio e o capitalismo deve ter profetizado que um dia limparia o sarampo ao comunismo da face do planeta. Como nem um nem outro caiu por terra, decidiram juntar os trapinhos e tratar-nos da saúde. O chamado dois em um. Os dois maiores fundamentalismos juntos num hino ao progresso e à modernidade.

Lais Castro disse...

Olá, gostei do seu post e também de ter aprendido uma nova palavra do nosso querido vernáculo: abstrusa.
Obrigada!

luisM disse...

Mestre Silvares, contra mim falo obviamente, que deixei o regular acompanhamento bloguista de alguns apontamentos interessantes que passaram por aqui e por outros lados. Sem pretender ser desculpado, os livros têm ocupado o tempo que poderia ter usado em conversa. Mas tenho reparado que outra gente tem deixado de falar. Será a depressão acompanhando esta crise (passe a ironia, mas que tem muito de verdade, vejo por variadas pessoas, ensimesmando a pouco e pouco), que nos deixa mudos? Será que os limites da bloguite se apresentam? Será que as conversas secaram o interesse e não passam para outro lado? Será que os umbigos põem as pessoas a falarem sozinhas? Será que a dispersão leva a que o círculo e o ciclo de conversas se alargou de tal modo que as pessoas se perderam pelas viagens?
Curioso verificar. E eu que não tenho blogue, logo não sou suspeito nem me estou queixando, fiquei surpreendido com as águas mornas que apanho nos blogues que visito.

Já te apercebeste é claro e o que contas?

Silvares disse...

Rui, estamos entregues à bicharada.

Lais, grato pelas suas palavras. A língua portuguesa é um oceano sem fundo.

Silvares disse...

Luis, parece que há uma certa infecção do espaço de debate com um alastramento da linguagem "facebookica" que é uma coisa próxima do gutural ("gosto", "não gosto" e pouco mais). Talvez seja como dizes, talvez haja demasiada informação... mais olhos que barriga ou então não. Isso não me impede de ir registando aqui as coisas que me vão passando pela cabeça. É uma coisa ao nível dos pintores rupestres, no fundo das cavernas?

luisM disse...

Pois é, o assunto deva uma boa conversa ao vivo, daquelas que avançam pela noite.

Embora não pratique muito, penso que este processo de encontro tem muitas potencialidades, quanto mais não seja porque torna a comunicação mais horizontal e direta, logo, evitando os filtros institucionais que tendem a distorcer inevitavelmente o conteúdo do pensamento original.

Mas tem o reverso da dispersão, da urgência sintética do discurso e da leitura, que retira alcance e pensamento mais elaborado. Que pode deixar cair o interesse, porque... Afinal tanto faz, nada de verdadeiramente interessante se passa...

Mas pode passar...

Silvares disse...

Aqui sempre se pode esticar um pouco o cérebro...

luisM disse...

Então, apura um pouco a "salvação da alma". Acho que se encontram parceiros interessados.