sábado, fevereiro 27, 2010

Uma outra ilha

Leonardo Di Caprio cumpre com eficácia


Primeiro ponto: quanto menos o espectador souber sobre o argumento de Shutter Island maior será a possibilidade de vir a gostar de ter visto o filme.

Segundo ponto: este é um filme realizado com mestria. Se por acaso o espectador já tiver uma ou outra luz sobre as peripécias da acção e souber qual a "realidade" dos "factos", restará o prazer de ver cinema eficaz, cinema que funciona com a regularidade assombrosa de um relógio de cuco fabricado na Suiça, o que não é nada para desprezar.

Scorcese mostra que sabe perfeitamente o que faz e conta-nos uma história em traços fortes sobre um fundo entre o muito negro e o cinzento carregado. Uma espécie de viagem pelo mundo encantado da 7ª arte.

Não será uma obra-prima mas é um bom filme. A ver sem qualquer tipo de problemas... a não ser que o gajo sentado na cadeira ao lado esteja o tempo todo a mexer no telemóvel produzindo um clarãozinho irritante. Mas isso é uma questão de sorte ou azar, coisa que não tem nada a ver com o trabalho impecável do velho Martin Scorcese.

sexta-feira, fevereiro 26, 2010

Uma merda!


Muito se tem falado ultimamente de falta de liberdade de imprensa em Portugal. Supostamente, o primeiro ministro terá utilizado repetidamente meios pouco correctos tentando evitar a publicação de notícias pouco abonatórias da sua imagem pública. Os partidos da oposição, com o PSD à cabeça, clamam por justiça, eriçam-se na discussão e passam um atestado de torpeza democrática aos que estão actualmente no poder. Balelas.

O verdadeiro problema não está na atitude deste primeiro ministro, que está muito longe de ser flor que se cheire. O problema está na forma insidiosa como a comunicação social vai sendo, cada vez mais, apenas um outro negócio, comparável ao negócio da venda a retalho ou ao da criação de gado porcino. Os jornalistas são vistos como solícitos empregados de balcão cujo dever é manter um sorriso na face e fazer da felicidade dos clientes uma realidade lucrativa.

A profissão de jornalista está a descer vertiginosamente na consideração do público. Aparentemente, ser jornalista nos tempos que correm, é mais ou menos o mesmo que ter sido operário nos tempos fuliginosos da Revolução Industrial. Ou bem que cumprem as directivas dos capatazes de serviço ou arriscam ser atirados borda fora, pois há mais quem deseje ocupar os seus lugares apresentando o perfil de carneiro mal morto, tipo criado para todo o serviço.

Os meios de comunicação social são propriedade privada e respondem à voz do dono. Os grupos económicos que investem nos jornais, nas revistas, nas estações de rádio ou nas televisões têm o lucro como principal objectivo. É a economia e nós não somos estúpidos. Percebemos muito bem que certas notícias não saem em determinados meios de comunicação por não contribuírem para a imagem limpinha que os seus donos pretendem vender ou porque podem vir a embaraçar algum accionista maioritário com negócios pouco recomendáveis.

Aquilo a que temos assistido não é tanto a falência da liberdade de imprensa mas mais o lento definhar de todo o sistema democrático. A partidocracia reinante é sabuja e cheira muito mal da boca. Os meios de comunicação social, salvo raras e honrosas excepções, estão de cócoras, reféns da capacidade para atrair anunciantes e da necessidade vertiginosa de vender, vender, vender. Na ânsia de serem campeões de vendas chegam mesmo a negociar a própria alma e, depois, não resta nada que se aproveite. Uma merda!

quinta-feira, fevereiro 25, 2010

Sofreguidão


As tragédias mediatizadas despertam nas pessoas normais uma anormal sofreguidão pelo consumo de imagens a baixar o nível para perto de tenebroso. Tremores de terra, inundações, maremotos, incêndios ou "simples" surtos de doenças infecciosas, tudo é perfeito para nos encher os minutos mais vazios. Guerra, morte eminente, desgraça! Tudo isto é tão incómodamente perfeito e cabe tão bem nos écrãs de televisão que nós, cidadãos-consumidores do mundo Ocidental, habituámo-nos a conviver com as imagens mais escabrosas com absoluta tranquilidade.

O que está a acontecer no Haiti? O Iraque continua a ferro e fogo, não continua? Entretanto outras calamidades passaram para a ordem do dia. O Haiti cansou rapidamente, o Iraque já chateia pois o guião dos atentados-suicidas com carros-bomba já se banalizou ao ponto de não vender jornais nem preencher espaços informativos na TV entre blocos publicitários. 100 mortos num atentado? Pois sim, que tédio. O povão da aldeia global está sedento de novas emoções (ou então emoções velhas vestidas com novas roupagens mediáticas) e não se cansa de ver e rever a desgraça alheia. Estaremos a ficar insensíveis?

Todos os dias novas imagens assustadoras e situações de uma barbaridade inaudita inundam os nossos cérebros, preenchem-nos cada recanto da memória com coisas que não deveríamos sequer imaginar. Mas a desgraça vende muito mais que a felicidade. A desgraça é o verdadeiro motor da imaginação globalizada. Talvez seja uma forma de nos fazer aceitar mais facilmente o nosso quotidiano delirante e algo bolorento.

É a formatação mediática da dor e do desespero que nos desperta suaves sensações de felicidade mórbida. Nada de especial.

segunda-feira, fevereiro 22, 2010

Medo da chuva


A Natureza não é para brincadeiras. Os últimos dias têm feito muitos corações bater mais depressa do que o esperado e outros parar definitivamente. É a chuva que cai com a força de mil demónios e bate no chão como um baterista maluco a desfazer os tambores. Cada vez que o céu se fecha e desaba sobre nós nas mais variadas formas; água, granizo, neve, dispara a imaginação dos mortais, a tentarem perceber onde pretendem os deuses chegar com tal loucura e exagero.

A Madeira está destroçada. A ilha parece feita de plástico barato e os desmandos urbanísticos das últimas décadas têm a sua quota parte de responsabilidade na tragédia que sobre ela se abateu. As pessoas estão desorientadas. Os crentes dividem-se entre os que se agarram ainda mais à sua fé e aqueles que começam a questionar a bondade dos que habitam para lá do chumbo cinzento das nuvens.

As imagens que nos chegam da ilha põem à prova a nossa capacidade de sequenciação da realidade. A terra faz-se mar e não há mar que se faça terra. A ilha parece coisa de um episódio de Perdidos. Morreu muita gente, há dezenas de mortos que são desaparecidos. Cá no "contenente" as pessoas andam com medo da chuva. Lá na ilha não posso sequer imaginar.

sexta-feira, fevereiro 19, 2010

Esquecer a ignorância


A inteligência humana (a capacidade de observar e interpretar o mundo que circunda o cérebro) é potenciada pela rapidez com que nos é possível esquecer ou ignorar as coisas que vamos aprendendo. Se tivesse de processar continuamente toda a informação que recolhe e armazena o nosso cérebro haveria de fritar como ovo numa frigideira, ao ponto de ser incapaz de processar "eu" ou "tu". Muito menos seria capaz de processar o conceito de "nós" tantas haveriam de ser as exactidões e contradições a ultrapassar a cada microssegundo. Se não esquecêssemos o que é esquecível seríamos como máquinas. O esquecimento permite-nos preservar afectos e amar incondicionalmente. A ignorância selectiva ajuda-nos a sonhar mais longe, mais alto e mais forte, como um atleta olímpico dos sentidos.

quinta-feira, fevereiro 18, 2010

Macaquices


Uma vez li algures (ou terei sonhado?) que uma democracia é um sistema político em que até um macaco pode ser eleito presidente. Se não li, vi essa ideia reforçada com candidaturas de um marimbondo e de uma personagem de Banda Desenhada, entre mais exemplos espectaculares, em eleições locais no Brasil, se não estou em erro. Bom, seja como fôr, apesar de a minha memória não estar clara no que diz respeito a estas histórias, temos o exemplo máximo de um dirigente simiesco em George W Bush, eleito graças a um sistema de voto defeituoso e que veio a ser um dos principais responsáveis pelo miserável estado deste mundo e mesmo do outro, já que esta vida obriga os seres humanos a cometerem pecados terríveis e lhes enegrece a alma.

Vem isto a propósito do que se vai passando em Portugal nos tempos mais recentes. Os nossos actuais dirigentes andam completamente malucos. Poderia estabelecer as mais variadas comparações entre as principais figuras do estado e os animais do jardim zoológico mas não seria justo com as bestas.

O primeiro ministro anda enfiado em confusões até ao pescoço, o presidente da república mal consegue articular duas ideias seguidas sem se esquecer da primeira o governo parece ter entrado em derrapagem irrecuperável.

Num sistema merdoso como o nosso, quando o Partido Socialista entra em crise logo avança o PSD para reclamar a sua vez de deitar as patas ao aparelho de estado. Não há 3ª escolha, temos merda ou temos caca e mais nada. Isto significa que o dirigente máximo do partido que calha em sorte governar salta para o poleiro de primeiro ministro num abrir e fechar de olhos.

Vem isto a propósito da disputa do lugar de boss do PSD. Se Pedro Passos Coelho for eleito presidente do partido e chgar a governar Portugal então poderemos mudar um pouco a frase que abriu este post: Uma democracia é um sistema político em que, por vezes, seria melhor que um macaco fosse eleito presidente.

quarta-feira, fevereiro 17, 2010

Ricochete

Caretos de Podence (ainda vai havendo alguns)



Lembro-me bem quando chegaram as telenovelas brasileiras. Tudo começou com "Gabriela cravo e canela". Era eu um rapazito e aquilo foi uma benção caída do céu aos trambolhões. Todos os dias úteis da semana, lá por volta da hora do jantar, a cidade parava para assistir enfeitiçada às tropelias da boa da Gabriela mais do Seu Nacib e do Sinhôzinho Não-Sei-Das-Quantas. Para mim e para os meus amigos era uma oportunidade dourada, já que as mães quase não davam por nós, a esgueirarmo-nos para a rua sem ter de inventar nenhuma desculpa especial. Na rua ouvia-se o som da novela que deslizava pelas janelas, todas as janelas, mas a aventura era outra.

Depois foi o que se sabe. Novelas e mais novelas, umas atrás e em cima das outras, initerruptamente, até à náusea. Nos dias que correm já são mais as novelas portuguesas que as brasileiras mas a coisa veio lá do outro Portugal, o Portugal grande que dança e canta e não quer saber de misérias.

Com o Carnaval dá-se um fenómeno vagamente semelhante. Aqui, deste lado do Atlântico, fazemos de conta que somos um Brasil pequenino e vamos esquecendo as tradições seculares do Entrudo. Desaparecem os caretos e aparecem as escolas de samba. Cada ano que passa são mais escolas a desfilar um pouco por todo o lado.
Mas há um pormenor que me deixa espantado. É o clima. Em Fevereiro Portugal passa um frio de congelador tresloucado (este ano então nem se fala!) enquanto que no Brasil está um calor "senegalesco" como li no blogue do Peri. É a diferença entre o Inverno e o Verão. Mete dó ver as sambistas em terra lusitana, com mais carne que roupa em cima do corpo, tentando manter o sorriso afivelado. Cá para mim aquilo são dentes cerrados para morder o frio, não são sorrisos.

A pergunta difícil é: Porquê?

Porque será que os portugas tentam copiar as "modas" dos brazucas? Estarão ensandecidos? Bom, parece-me justo. Afinal de contas nós mandámos lá para o Brasil carradas de portugueses. É justo agora levarmos com este ricochete cultural. Não é grave e só dói a quem anda de tanga numa rua chuvosa com temperaturas a rondarem os 0º (zero graus). Tá-se bem.

domingo, fevereiro 14, 2010

O filme que balança


Foi dose dupla. Não premeditada, dose dupla acidental, em dias consecutivos, do Sr. Nespresso No Martini No Party, o incontornável Mr. George Clooney. Ontem era um homem que matava cabras com o olhar, hoje um "desempregador" profissional em "Nas Nuvens" (o filme). Porque cometi eu tal imprudência? Por nada de especial. Apenas porque sou um vulgar consumidor e vou papando aquilo que me enfiam pelos olhos dentro, sem grandes problemas nem sombra de remorso. Afinal de contas, ir ao cinema tornou-se um gesto tão banal como comer um hamburger (vou mais vezes ao cinema) ou mijar atrás de uma árvore.

Se o filme de ontem me pareceu digno de nota já o que fui ver hoje, a despeito das melhores críticas e até de alguns rumores de poder chegar à conquista de um ou mais oscares, me deixou um pouco indiferente.

Não é que "Nas Nuvens" seja um mau filme. Longe disso. Mas também não anda assim tão perto de ser um bom filme, digamos que é um filme que balança.

O argumento tem por base uma ideia interessante, a aventura aérea do protagonista vai-se desenrolando de forma agradável, deixando o espectador curioso até que... bom, até que o velho moralismo americano entra a matar e não deixa alma que se aproveite. Na minha opinião o filme não merecia aquilo. Aquilo? Não merecia... bom, não merecia... afinal de contas, se tem aquele final é porque o merece. E se estou para aqui à procura de algo que justifique o facto de ter ido ver o filme ou qualquer coisa que me ajude a compreender o entusiasmo que tem gerado à sua volta é porque fiquei um pouco longe de perceber o que tem de tão extraordinário este "Nas Nuvens".

OK, a realização é escorreita e a montagem tem momentos muito bem apanhados. George Clooney vai naquele registo, igual a si próprio (isto é, nem bom nem mau nem mais ou menos), o filme corre como um riozinho afluente de algo muito maior. Tem a sua beleza mas também apresenta alguns lugares entediantes e acaba por se comprazer consigo próprio.

Chega de conversa da treta; "Nas Nuvens" parece-me um filme um pouco acima da banalidade. Dá para ver. Talvez depois de comer um hamburguer no McDonald´s. Ou então antes. É para consumir, sem problemas de consciência. Que raio!

sábado, fevereiro 13, 2010

E se...?


"Homens que matam cabras com o olhar" é um filme correcto. Em termos narrativos tem a limpeza dos clássicos, visualmente apresenta uma correcção formal assinalável e os actores representam estranhas personagens com a naturalidade de quem bebe um copo de água. Tudo no devido lugar, portanto. Fez-me pensar nas comédias desconchavadas dos irmãos Cohen mas com mais sentido.

Uma espécie de comédia, diria, com mais pontos de contacto com uma triste realidade do que seria de esperar. E se houvesse algo mais do que aquilo que estamos formatados para acreditar? Uma questão velha como o mundo, para a qual é quase impossível encontrar uma resposta satisfatória. Sim, porque se desvendarmos o impossível e o maravilhoso o mundo perderá a capacidade de nos fazer sonhar.

A ver, sem problemas.

quarta-feira, fevereiro 10, 2010

O grande filme


Um gajo entra num centro comercial e olha em volta, discretamente. As pessoas circulam com as suas caras no lugar. Parecem saber exactamente o que fazer, seguras na direcção dos seus passos.

Um gajo entra numa loja de roupas, só para dar um exemplo. Há pessoas olhando, mexendo, experimentando. Parecem absortas, como se vogassem numa outra dimensão. Um som agressivo enche o ambiente. É música. Os empregados andam afadigados de um lado para o outro. A música continua a bater. Bate com força. Incomoda. As pessoas parecem não dar pelo som que as submerge como se estivessem numa piscina. Sinto-me ansioso. Quero saír dali rapidamente e é o que faço.


Cá fora as coisas estão mais calmas. Ouve-se apenas aquele ruído branco que ecoa pelas galerias. Vozes? Passos? Restos das músicas que infernizam cada uma das lojas? Não sei dizer ao certo. Noto que não há um momento de silêncio (de que estava eu à espera?).

Um gajo entra no supermercado e, lá no alto, há mais música. Discreta, quase indistinta. Só se lhe percebem os contornos quando nos concentramos nela. É uma música horrorosa mas, cá em baixo, os cidadãos consumidores como eu parecem não lhe dar a mínima importância, caso contrário haviam de estar parados a olhar para o ar com cara de poucos amigos. Que é o que eu estou a fazer.

Reparo na minha atitude e sinto um certo embaraço, como se alguém estivesse a olhar para mim. Como se a minha insignificância neste planeta do consumo pudesse ter interesse particular para algum ser invisível pronto a avaliar o meu comportamento. Que ridículo! Tudo isto é ridículo. E eu também. E depois? Qual é o problema? Um gajo é como se vivesse num filme e desempenhasse o papel principal (como diz a canção dos Talking Heads: "I'm the star of my own movie...").

Será assim que Deus nos vê? Eternamente sentado numa sala repleta com biliões de triliões de écrãs onde se desenrolam ininterruptamente os nossos filmes particulares que Ele vê, todos em simultâneo, omnipresente, retocando os argumentos de cada um, tomando notas sobre a qualidade dos nossos desempenhos para depois, chegado o momento, nos ler a crítica final antes de decidir o futuro da nossa eternidade?

Um gajo não devia ir a um centro comercial logo pela manhã.

domingo, fevereiro 07, 2010

Longe da vista


Uma notícia curiosa: Ministros das Finanças do G7 reúnem no Canadá
Os sete do "Ocidente" reúnem à lareira no Canadá gelado hoje e amanhã. Não se conhece a agenda, e consta que não haverá comunicado final.

É sintomático que os representantes do grande capital se reunam num sítio como Iqaluit, "lugar de muitos peixes", longe de tudo e de todos os que gostariam de aproveitar mais esta cimeira para atirar uns tijolos e queimar uns carros enquanto a polícia de choque faz os seus números habituais. Desta vez não há pão pra malucos!

Ao que parece os ministros das finanças dos países que pertencem a este restrito clube de abomináveis homens das neves estão preocupados com a ascenção económica da China que começa a reclamar um papel principal no filme da actualidade mundial. Talvez esta reunião lá para as bandas do círculo polar árctico marque com nitidez a anunciada volta da História que fará da China uma superpotência, relegando as potências europeias para embaraçosos papeis secundários.

Estados Unidos da América, China e, segundo dizem os oráculos mais respeitados, a Índia e o Brasil formarão o próximo clube especial (com a Rússia à espreita). Quando as coisas forem assim poderão sempre reunir algures na China, até mesmo em Pequim (ou será Beijing?) que ali o poder tem mais músculo que o próprio Yeti.

Esta cimeira com o horizonte gelado de Iqaluit como pano de fundo só pode significar que alguma está a mudar... e a mudar muito!

sexta-feira, fevereiro 05, 2010

Vidas


"A Vida Que Não Vivi" é um livro de contos da autoria de Beto Canales, um bloguista que podemos encontrar aqui, no Cinema e Bobagens. São dezoito histórias curtas onde se cruzam dezenas de personagens o que faz com que essas dezoito se multipliquem em centenas, milhares, milhões de outras histórias cruzadas, paralelas, oblíquas, perpendiculares entre si e em relação ao plano da imaginação do leitor.

Beto oferece-nos uma visão algo desencantada, parece-me haver sempre uma certa melancolia na forma como a acção se desenrola e se concretiza. O mundo onde aquelas vidas são vividas não é para velhos nem para meninos de colo. É para personagens que fogem sempre em frente e acabam por chegar ao seu destino demasiado depressa, ficando quase sempre suspensas na beira do abismo. O leitor ou as segura ou as deixa ir.

Talvez Beto não tenha vivido aquela(s) vida(s). Decerto não as viveu nesta dimensão da realidade. Mas ele esteve lá, daquele lado onde tudo aconteceu. Só pode ter estado!


Um pormenor numa outra história. Beto enviou-me um exemplar com dedicatória pelo correio. Tive direito a esse privilégio por ter servido de intermediário entre o escritor e o autor da imagem que faz capa do livro. Beto viu aquele trabalho num post do 100 Cabeças (aqui) e pensou que era da minha autoria. Mas não, o autor era David Castanheira, um ex-aluno meu com quem participei numa exposição em 2008. Como pus o David em contacto com o Beto tive direito a tratamento VIP e recebi "A Vida Que Não Vivi" em minha casa. Um daqueles casos em que a NET anula o espaço.

Obrigado Beto, pelo exemplar e, sobretudo, pela tua escrita.

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

Para onde vai ele?


É oficial, público e notório; apesar da crise económica internacional, numa conjuntura em que costumam ser magras as vacas no mundo da arte (porque a arte não ter um valor patrimonial estável), eis que é batido o record mundial da loucura. A quantia, 74 milhões de euros; a obra, Homem Caminhando; o artista, Alberto Giacometti. Absolutamente inesperado.

Apesar de se tratar de um homem razoavelmente alto (1,83m) não deixa de ser tão magrinho que mete impressão a uma pessoa normal. Nada fazia prever que esta imagem de uma humanidade meio perdida à procura de um bife (ou da sombra de si própria) viesse a ser comercializada por mais do triplo do valor que a leiloeira sonhava, deixando o fantasma de Picasso a roer-se de inveja por ter sido ultrapassado nesta inesperada curva da História.

Não adianta tentar compreender o incompreensível.

Ainda assim ficou bastante aquém do balúrdio que o Real Madrid pagou pelo Cristiano Ronaldo quando o foi buscar a Manchester.

terça-feira, fevereiro 02, 2010

Neoqualquercoisa


Nos comentários ao post anterior Madoka colocou uma questão: "Para onde vamos?" Pois quer-me parecer que já lá estamos a chegar e dali não iremos para muito mais longe.
Entre as "elites" "liberais" ou "conservadoras" ou "neoliberais" ou "neoconservadoras", (é estranho como estes dois conceitos, aparentemente antagónicos, começam a misturar-se como um peido se mistura com o fedor de um cadáver putrefacto até ser impossível discernir qual o incómodo causado por um e o pivete procedente do outro) vai ganhando forma a ideia de que o Estado deve ocupar-se de um número muito reduzido de campos de actuação na coisa pública. Defendem os mais visionários destes "neoqualquercoisa" que o Estado deve investir e tutelar apenas a Justiça e a Defesa. Ou seja, o dinheiro dos nossos impostos deverá ser investido exclusivamente nos tribunais, nas polícias e nos exércitos. Ah, e nos ordenados dos governantes, é evidente. As restantes áreas sociais deverão ser entregues à iniciativa privada por configurarem zonas de negócio mais do que apetecíveis. Educação, saúde, transportes, tudo o que que resta tem, segundo estes pensadores, um peso insuportável nas contas públicas. OK, compreendo. Os "neoqualquercoisa" pretendem um estado policial onde os poderosos controlem a criação e a aplicação das leis através dos parlamentos e dos tribunais, bem como a possibilidade de evitar qualquer gesto de revolta mais ou menos organizado mantendo o exército e a polícia em permanente prevenção. É tão simples que chega a ter a sua beleza.

Resumindo; pagamos impostos que nos são devolvidos em esquemas repressores dos nossos direitos (que se vão esbatendo no pano de fundo da História a cada dia que passa). Neste universo maravilhoso falta apenas estabelecer a nova Santa Aliança em que a relação privilegiada que o estado tinha com a igreja é substituída pelo concubinato com a Comunicação Social, como forma de amaciar as mentes mais cépticas. Perfeito não? Se os lobos fossem animais um pouco mais inteligentes haviam de investir na criação de carneiros em redis bem vigiados ali, ao pé da porta.

Como esta coisa monstruosa ainda é bébé e se vai contorcendo na sombra com dores de crescimento, ganhando forma a cada dia que passa, não estamos muito preocupados com ela. Por enquanto. Quando crescer mais um palmo e tiver dentes e apetite definido já será demasiado tarde. Irá cumprir o seu destino que é alimentar-se de nós próprios. Um bocadinho cada dia, um nadinha de cada vez.