segunda-feira, novembro 16, 2009

Tempo que não é dinheiro


Basta chover um bocadinho e a cidade tranforma-se numa espécie de caos. O trânsito entope, ouvem-se sirenes e buzinas, sente-se um stress arrasador na atmosfera. As pessoas agarradas aos volantes têm caras fechadas. Nos bancos de trás muitos levam criancinhas sentadas nas suas cadeiras especiais, com cintozinhos de segurança. Ora comem uma bolachinha, ora dormem um soninho suplementar que o papá (ou a mãmã) nunca mais consegue chegar à escola e já está a ficar atrasado pra caralho!

Sente-se a angústia dos que lutam constantemente contra o relógio, como se fossem coelhos brancos e enormes, a correrem desvairados pelos relvados do jardim de Alice. Mas estes coelhos, agarrados aos volantes, não correm, nem andam, estão parados. Fechados na sua gaiola com rodas individual e exclusiva.
Noto nos olhares destes condutores parados uma vaga expressão de nostalgia, talvez um reflexo sub-subconsciente, do tempo em que os avós se deslocavam a pé ou em carros de bois para irem plantar a horta. Uma criancinha olha para mim e parece estabelecer comigo um contacto telepático. "O que andamos nós a fazer neste mundo de merda?", pergunta-me ela com uma voz finiinha dentro da minha cabeça. Sorrio-lhe mas a criancinha não está para sorrisos.

Desde que passei a vir a pé para o trabalho que o mundozinho das redondezas da minha casa se está a transformar perante os meus olhos. Recupero muito do tempo que tinha perdido sentado dentro do carro a pensar que se tivesse ido a pé chegava lá mais depressa. E o tempo que levo "a mais" no cumprimento do trajecto não é tempo perdido, antes pelo contrário. Todo o tempo que ocupamos a olhar uns para os outros é tempo bem aplicado, tempo ganho. Tempo bom, tempo que não é dinheiro.

10 comentários:

Lina Faria disse...

O que vemos e aprendemos é nosso grande patrimônio.
Concordo com você. Essa "grande invenção do homem", que é o automóvel, virou sua própria prisão.
Como diz Jaime Lerner, um conceituado urbanista,"o carro é a sogra mecânica."
Crônica gostosa.

Jorge Pinheiro disse...

Não só virou prisão, como é factor de guerras pelo petróleo, de investimentos disparatados em auto-estradas que ficarão para pagar quando já houver outros meios de transporte. Acima de tudo, factor de exclusão social. Bela reflexão a deste post.

Luma Rosa disse...

Que triste! O homem sai de sua casa (uma caixinha), entra no carro (outra caixinha), vai para o trabalho (outra caixinha)... Que vida encaixotada!! Jogada fora, por assim dizer! Coelhinhos de olhos vermelhos, nostalgicos na caixa! Beijus,

Rui Sousa disse...

Rui
este teu post faz-me lembrar um documentário muito bom que vi, faz um tempo:

http://www.archive.org/details/automobile_society

( acho que foi um trabalho feito por estudantes finalistas de S. Paulo )

São quase 40 minutos mas acho que é um "tempo" bem gasto.

the dear Zé disse...

Bem aventurados os que moram a 100 metros do trabalho, que deles será o reino dos céus,

jugioli disse...

Concordo plenamente. E você conhece S.P.???? isso sim que é trânsito. Fiz uma mudança de endereço do meu ateliê, para mais ou menos os 100 metros que o Caçador disse, e minha vida mudou.
Conhecer as coisas na sua lentidão e precioside é o que falta no mundo, além de mais silêncio e reflexão.


Ops: fiquei curiosa para saber qual aquarela que você escolheu, e obrigado pela escolha, uma honra participar de tão importante projeto.

bjs.

jugioli disse...

ops: "leia preciosidade"

Anónimo disse...

Silvares,

depois dos comentarios acima, resta pouca coisa a dizer sobre a qualidade das suas reflexões deste post! Concordo com TUDO. E gosto muito da forma como foi dito!

Parabéns!

Beto Canales disse...

e eu concordo com o Eduardo!

gaijin dame disse...

conehça: http://gaijindame.blogspot.com/