sexta-feira, dezembro 25, 2009

O Sexo, o Natal e a economia



Hoje é dia de Natal. Em muitos lares por este Portugal adentro a televisão substitui a lareira e é para ela que se dirigem todos os olhares das famílias reunidas em seu torno. Mais logo a TVI irá transmitir o filme O Sexo e a Cidade. Não há Pai Natal naquele filme, nem Reis Magos nem Presépio, nem nada que se relacione com a quadra festiva que aquece os nossos corações. Este (in)significante fait-divers faz pensar nas distantes origens desse canal televisivo, originalmente atribuído à igreja católica, num processo mais milagroso que transparente. Lembram-se? Eram os primórdios dos canais independentes do poder político que prometiam um mundo novo no panorama televisivo. Com 4 canais, afiançavam-nos então, teríamos diversidade, variedade e competição, benesses do mercado livre. Volvidos todos estes anos o que podemos constatar? Que os canais, na sua luta insana para captarem investimento publicitário, se acotovelam com novelas, concursos imbecis e telejornais infindáveis, numa amálgama fedorenta, uma papa indistinta e massificadora. Fomos enganados?

Esta constatação pode alargar-se a outros domínios. O poder político, por exemplo. Também aqui ficamos com a sensação de que entre os chamados “partidos do arco do poder”, o PS e o PSD, há uma sobreposição absoluta de objectivos, comportamentos e discursos. A falência das ideologias tornou-os tão semelhantes que ninguém vê grande diferença entre um e outro quando ascendem ao cadeirão do poder. Uma vez aí sentados, os líderes destes partidos abrem os dossiês da roubalheira e ficam deslumbrados, como miúdos num hipermercado em vésperas de Natal. É a economia, dizem-nos, a economia obriga a fazer isto e a esquecer aquilo, garantem-nos. Estaremos a ser ludibriados?

Afinal de contas em que ficamos? A democracia sobrepõe-se à economia? O poder político pode orientar-se por princípios humanistas ou a frieza dos números tudo justifica? Fica a sensação de que a massificação boçal é o único caminho possível para a nossa sociedade. Sejamos boçais, se não nos resta outra opção. Pode ser que O Sexo e a Cidade não seja tão mau filme quanto isso e sempre constitui uma alternativa ao velho James Stewart franzindo a testa em Do Céu Caiu Uma Estrela.

domingo, dezembro 20, 2009

Outro planeta


Fui assistir a Avatar, o novo filme de James Cameron. Como sempre evitei ler as críticas e passei ao lado dos making of, tentando entrar na sala em condições de desfrutar ao máximo aquilo que o realizador tinha para me oferecer.

Apesar de tudo levava na cabeça algumas ideias feitas (não é possível evitar totalmente o bombardeamento de informação mediática à volta de uma das produções mais aguardadas de sempre que traz o título de "filme mais caro da história do cinema"); esperava uma experiência visual fora do comum (com óculos especiais para imagem 3D) e não tinha grandes expectativas em relação ao argumento. O que não esperava era um mergulho tão profundo na ilusão do planeta Pandora. Ao longo das mais de duas horas do filme, a sala esteve submersa no mais completo silêncio, como se o avatar nos transportasse a todos na superfície estonteante daquele planeta de sonho. O espectador participa da experiência visual como se a coisa funcionasse de facto.

Quanto ao argumento nada de mais (nem de menos). Uma história clássica embrulhada numa roupagem nova. Mas de tal modo nova que tudo ganha uma dimensão épica arrebatadora.

Caro leitor, se por acaso tens o espírito suficientemente limpo para acreditares num mundo surreal, não percas este filme. Se, pelo contrário, és céptico e pretendes algo mais que seres levado pela mão num passeio fantástico, deixa-te ficar em casa ou vai à sala do lado. Não entres em Pandora, a Terra é o teu lugar.

sábado, dezembro 19, 2009

O alecrim e a manjerona



Os machos portugas, conhecidos pela profundidade obscura das suas cavernas cranianas, têm agora mais um tema para debater entre duas imperiais, além dos jogos de futebol e as gajas boas que passam lá fora, iluminadas por este frio sol de Inverno. Mais, as gajas boas também podem discorrer sobre o tema, ultrapassando a banalidade das observações sobre as roupas de marca ou a musculatura depilada dos machos que estão encostados ao balcão da cervejaria, degustando as suas imperiais apesar da temperatura gélida que apressa o passo a aperta o casaco às curvas do corpinho lindo.

Tudo parece entrar numa nova ordem, mais calma, mais justa e abrangente. Parece? Engano nosso! De um lado e de outro caem bombas sobre os legisladores. Os homossexuais querem mais. Os outros (!?) queriam menos. Uns querem ter direito a adoptar crianças e que o contrato que venham a assinar seja visto como um casamento igual aos outros; do lado de lá recolhem-se assinaturas que levem o país a votar em referendo sobre tão íntimo assunto.

Sinceramente tudo isto me parecem guerras do alecrim e da manjerona, coisas de pessoal narigudo e sem outros afazeres que não sejam o de meter o proeminente apêndice onde não foram chamados. Os homoessexuais, sempre tão orgulhosos de serem gays, querem, afinal, ser iguais aos outros, a despeito da sua suposta diferença. Os outros pretendem manter a homossexualidade nessa redoma dourada em que vem crescendo a cada dia que passa, à vista de toda a gente mas bem fachadinha lá dentro, sem chatear por aí além.

Eu, que não sou casado e vivo com a minha mulher há mais de 20 saborosos anos, olho para esta questão com alguma indiferença. Não compreendo a importância nem a urgência do tema. Se podem assinar os papelitos e trocar alianças, parece-me suficiente para os homossexuais. Por extensão não vejo que problemas podem vir daí para os heterossexuais que, por enquanto, constituem a maioria da população.

Mas lá andam todos engalfinhados e possessos com tão corriqueira questão. Deixem casar quem quiser e continuar descasado que por isso optar. É assim tao difícil admitir a liberdade dos outros?

quarta-feira, dezembro 16, 2009

Saber coisas


Na sequência dos comentários ao post anterior surgiu uma questão que me parece importante colocar sem receio de obter respostas antipáticas.

Até que ponto é importante o conhecimento da História numa sociedade que baseia o seu modo de vida no consumo sistemático do presente?

Já decretaram a morte da História (tal como já houve quem passasse certidão de óbito a Deus), as novas gerações tendem a menosprezar a herança das gerações anteriores, numa tentativa de afirmação do presente pela negação do passado. Indiferente a estas ideias e declarações bombásticas, a nossa sociedade entrega-se ao consumo desenfreado como um cão que tenta morder o próprio rabo (ou um homem que tenta lamber o próprio cotovelo). Com História ou sem ela, com Deus ou na Sua ausência, nada parece abalar a inexorável autofagia do mundo em que vivemos.

O que interessa a um técnico de informática brasileiro saber quem foram os colonizadores do território onde ele tenta sobreviver no seu quotidiano? É isso que lhe põe comida no prato? E o que poderá significar para a sua fekicidade esse eventual desconhecimento?

Eu sei que a pergunta é falaciosa, mas não é a nossa sociedade global uma falácia?

terça-feira, dezembro 15, 2009

Quem colonizou o Brasil? Sei lá!


Quem colonizou o Brasil? Sei lá! (ler aqui) Depois de ler o texto da notícia fico com a sensação que há por estas bandas do Mar Oceano quem se incomode por ter sido esquecido do lado de lá. Vaidade? Interesse? Preocupação genuína com o estado do Conhecimento no mundo em geral e na América Latina em particular?

Esta notícia chamou-me a atenção porque há sempre alguém pronto a indignar-se com a ignorância dos outros no que diz respeito ao passado. Essas pessoas intrigam-me. Qual é o limite razoável para o desconhecimento? 200 anos, pelos vistos, já causa alguma perplexidade. E 300? 600? 1000 anos?

Quem colonizava o território português há mil anos atrás? Decerto muita gente saberá responder a esta questão. Para um por cento da população (ou menos), antes de este bocadito da Terra se chamar Portugal viviam por aqui uns gajos que não eram uns gajos quaisquer. Eram uns gajos específicos. Não tenho vergonha de afirmar que ignoro quem fossem esses ilustres gajos embora pudesse arriscar uma ou outra possibilidade e sorrir no fim. Acertando ou errando no meu cálculo.

Quem colonizou o Brasil? Bom, apesar de falarem português no Brasil talvez haja quem não relacione esse facto com Portugal. Ou então poderão imaginar que os portugueses falam essa língua por influência dos brasileiros, o que, no mundo actual, até faria mais sentido que o contrário. Pessoalmente não me espanto nem indigno que 57% dos brasileiros não saibam quem colonizou o território imenso que hoje se chama Brasil. Quantos de nós conhecem a sua árvore genealógica até mais de 4 ou 5 gerações atrás? Ora se nem a família mais chegada conhecemos bem quanto mais a mais afastada...

domingo, dezembro 13, 2009

O que é Pop?


Pode a mera pintura da fachada amenizar o significado daquilo que ela esconde?

A leitura da notícia do Público com o título "Bustos de Oliveira Salazar em estilo pop art" levou-me até aqui, ao atelierdofmf.blogspot.com e deixou-me a pensar no assunto.

Uma passagem do relato da conversa entre a jornalista e o autor dos bustos coloridos captou-me particularmente a atenção, quando Francisco Mota Ferreira afirma: "Nasci em 1972, no Estado Novo, mas obviamente não me lembro de nada. E para quem tem a minha idade ou 20 anos, Salazar é um ícone pop. Não serão os nostálgicos - que os há e muitos - a comprar estes bustos." Salazar como ícone pop... pessoalmente nunca tinha olhado o ditador de Santa Comba por este prisma.

Sou um pouco mais velho que Francisco Ferreira (nasci em 1963) e, para mim, Salazar representa, desde há muito tempo, uma parte importante daquilo que considero desprezível num ser humano. Apesar de afirmar que não é movido por intenções políticas, Francisco Ferreira criou um Salazar como porta-lápis azuis, o símbolo da censura salazrista, e um outro como porta-salazares, o nome dado há décadas aos instrumentos culinários que servem para rapar o fundo aos tachos, duas peças que não abonam grande coisa a favor da imagem de ícone pop do dito cujo.

Mas, a reflexão e a dúvida que quero aqui expor, é a seguinte; podem o tempo e umas quantas pinceladas transformar um ditador abjecto em algo tão soft e, até, vazio, como um ícone pop?

Andy Warhol transformou Mao Zedong em ícone pop, ao nível de Marilyn Monroe, Elvis Presley ou Judy Garland, por exemplo. Esse nivelamento foi alcançado através de uma opção estética uniforme e uniformizadora no tratamento das imagens fotográficas de base. À partida, as figuras esvaziar-se-iam de significado para se tornarem em formas plásticas puras. A leitura destas formas passaria a fazer-se, apenas, em termos superficiais. Sendo assim, os crimes contra a humanidade perpetrados pelo ditador chinês estariam ao nível das performances melosas de Marilyn ou das canções rock do King, tudo por força da magia das cores.

Realmente, o Salazar pop parece-me uma boa ideia quando olhada como atitude estética e projecto comercial mas, na minha retorcida cabeça, a estética não pode dissociar-se da ética e, aí, a coisa fica esquisita e desagradável.

Resumindo, para mim, o ditador de Santa Comba não presta nem pintado. Como atitude pop valorizo muito mais a célebre "Merda de artista" de Manzoni. Merda por merda...

sexta-feira, dezembro 11, 2009

Da invisibilidade

Pintura monumental de Richard Wright na exposição deste ano do Prémio Turner, na Tate Gallery


É sempre a mesma conversa, o mesmo espanto, algo entre a irritação invejosa e a vertigem do deslumbramento. Obras de Rafael, Rembrandt e Il Domenichino batem recordes em Londres, noticiam com alguma pompa as agências internacionais. Logo a notícia se espalha, mais eficaz que o H1N1, para infectar a imaginação dos mortais comuns, um pouco por todo o lado.

Os números das transacções, como sempre, escapam à compreensão, 28,8 milhões de euros por um mero desenho de Rafael! O que significa essa quantia? "Uma perna do Cristiano Ronaldo", segundo o meu irmão. Ficamos então a saber que uma perna do Cristiano Ronaldo equivale à Cabeça de Uma Musa, o que acaba por fazer algum sentido, dependendo de quem observa e é inspirado pelas imagens.

Aquele desenho, agora tão valioso, não passa de um vulgar e ranhoso esboço saído da mão do mestre em preparação de um dos frescos da Sala da Assinatura. Ora aqui está qualquer de interessante que se pode retirar desta mundanidade entediante. A "Stanza della Signatura" é o local onde se encontra a celebérrima "Escola de Atenas", uma das obras mais reproduzidas e famosas do dulcíssimo pintor de Urbino. É um gabinete coberto do chão ao tecto por formas e imagens, a maioria delas da autoria de Rafael. A fama da "Escola de Atenas" é tão grande que as restantes pinturas da "Stanza" quase se tornaram invisíveis (a sala onde está a Mona Lisa...), o que poderá explicar em parte o sucesso de Richard Wright, vencedor do Prémio Turner deste ano.

Nestas voltas do raciocínio uma pessoa até se perde e quase se esquece de formular a outra pergunta que a tal notícia nos atira à cabeça: Domeni quê? Domenichino! Ah, pois, vamos lá a googlar isso e ver o que nos diz a Wikipédia. Desta vez saíu-me na rifa um texto em italiano, o que não deixa de ser interessante se bem que um pouco cansativo. Por isso aqui fica uma entrada em português.

De facto, no fim de contas (e descontando o Rembrandt), a notícia dos valores astronómicos atingidos nos leilões de obras de arte já não impressiona por aí além. Já cansa. Cansa tentar perceber a irracionalidade de certas coisas que acontecem na sociedade de consumo capitalista. Richard Wright talvez esteja a tentar perceber a lógica disto. Como vencedor do maior prémio de artes plásticas do Reino Unido vai receber vinte e tal mil euros em reconhecimento do valor da sua obra. Isso não pagava nem as aparas do lápis de Rafael se fossem postas à venda no e-bay.

terça-feira, dezembro 08, 2009

Luta de Titãs






"Vêem-se um pouco por todo o país. São estandartes de pano. De um fundo grená emerge a imagem de um Menino Jesus barroco, de braços abertos. Para os cristãos, este é o verdadeiro símbolo do Natal e por isso pode ser lembrado e assinalado deste modo, nas janelas, varandas ou portas daqueles que acreditam. (ler tudo aqui)"

Cansados e até mesmo desgostosos por verem o Pai Natal a sorrir sem concorrência, os cristãos mais convictos decidiram contra atacar e criaram um novo símbolo ilustrativo da quadra natalícia. É o Menino Jesus a tentar ganhar protagonismo.

Se o verdadeiro espírito natalício e cristão se desvirtua todos os anos, acabando por se confundir com uma descabelada fúria consumista corporizada na figura do Pai Natal, só resta aos verdadeiros cristãos recuperar a solidariedade humanista de cariz místico que deveria reinar nos dias que correm.

Aqui há dois anos, mais coisa menos coisa, houve uma invasão de terríveis pais Natal que amarinhavam pelas fachadas de Portugal inteiro, numa exibição de mau gosto infantilóide sem precendentes. Agora, tímidamente, surge o Menino saído da manjedoura directamente para as janelas e varandas dos portugueses. Vá lá, convenhamos que, em termos estéticos, vai bem melhor que os tais pais Natal.

Não deixa de ser uma competição curiosa e uma chamada de atenção para a forma como vivemos o Natal. Qual é a nossa equipa; somos do Menino Jesus ou somos do Pai Natal? Eu não digo.

sábado, dezembro 05, 2009

Chicha sintética


Já tinha ouvido falar do sonho cor-de-rosa dos patrões da McDonald's: um frango sem cabeça nem patas, só chicha mais coxas e asinhas, que se pudesse aproveitar a 100% para a alimentação do pessoal. Uma monstruosidade saborosa tanto em termos culinários quanto económicos.

Olhando para as condições de vida dos porcos criados em cativeiro e de outros animais destinados às prateleiras dos supermercados já me tinha ocorrido que não são bem aquilo que se pode designar por "animais" mas sim coisas parecidas, com uma vida tão triste que até dá gosto vê-los morrer e virem parar aos nossos fornos, grelhadores e demais instrumentos de tortura para carne morta.

Mas a notícia de que daqui a cinco anos poderá estar à venda nos supermercados carne artificial (ler aqui) caíu-me em cima que nem uma bomba. Carne artificial, bifes clonados, isto sim, é coisa que nem Deus estava a imaginar quando fechou a loja ao sétimo dia!

Os amigos dos animais da PETA batem palmas à ideia. Já os tipos da Vegeterian Society levantam algumas objecções mas também não parecem torcer-lhe muito os respectivos narizes. Enfim, não se pode dizer que seja uma iniciativa com pernas para andar mas lá que tem fortes probabilidades de vir a cair-nos prato, disso não restam dúvidas.

Os promotores do projecto, o Governo holandês e uma marca de enchidos lá da terra, garantem que este produto será bom para o ambiente e irá reduzir o sofrimento animal. Imaginem o que será tirar a carne a um animal e criar o volume de carne anteriormente fornecido por um milhão de animais!!! Caramba, parece magia.

Resta saber se os porcos correrão o risco de entrar para a lista de animais em vias de extinção. É que, se não for para lhes espetar uma faca, não estou a ver muita gente a criá-los só pelos seus lindos olhos.

quinta-feira, dezembro 03, 2009

Profecia




Qerem fazer-nos acreditar que depois de Cristo e Maomé terá passado o tempo dos profetas. Estou em crer que isso não é puto verdade! Ao visitar o Photomelomanias dei com este post e o primeiro clic deixou-me deslumbrado. É uma palestra extraordinária de Aldous Huxley que mostra como se constrói uma profecia: com atenção aos pormenores do mundo que nos rodeia e uma grande dose de inteligência que, nestes casos (será apenas nestes casos?), é o mesmo que imaginação.


Caramba, apeteceu-me mesmo correr para casa e abrir a minha edição de Admirável Mundo Novo. Já nem me lembro quando li aquilo mas tenho a vaga impressão de que foi um dos livros que ajudou a alicerçar a minha personalidade. (para compreender alguma coisa do que acima fica registado é imprescindível ir ao post do Photomelomanias experimentar aquele tal (este) 1º click)

quarta-feira, dezembro 02, 2009

Sonho de uma manhã de Outono


Não sei se percebo alguma coisa do que se passa à minha volta. Os dados e respectivas coordenadas são de tal modo variados e contraditórios que me perco constantemente sem sequer mexer um pé para saír deste lugar. A leitura dos jornais só piora a situação, já de si a tender para o caótico. A busca de informação revela-se penosa e dolorosa. Tentar construir uma perspectiva personalizada sobre o estado das coisas que assentam no mundo é pecado mortal, não sei se o da soberba se o da inveja que é o que por vezes sinto em relação aos ignorantes e, quase sempre, em relação aos analfabetos. Se vivesse no Afeganistão decerto seria membro dos talibã que é a maneira certa de se estar por aquelas bandas.

Hoje de manhã o espelho tinha um tipo estranho a olhar para mim. Fiz-lhe a barba e aspergi-o com um perfuminho que costumo usar para disfarçar o cheiro da minha alma. Saímos juntos para a rua mas logo nos separámos, próximos do caixote de lixo.

Há uma comandita de enfatuados com cabeças de porco "large white" que orientam os destinos do Olimpo. Os deuses comem couves e bebem sumo de beterraba, estão mais tristes que avestruzes assustadas. O mundo não vai na direcção certa, mas o verdadeiro problema é que não há uma direcção errada!

domingo, novembro 29, 2009

Presentes, passados e futuros


Li hoje uma notícia na secção de economia do Público que dá conta que no topo da lista dos presentes de Natal mais populares na Europa estão... os livros! Ainda anteontem aqui deixava um post sobre a razão da não-leitura que uma aluna minha me havia apresentado e sobre as dúvidas que sinto a respeito da sobrevivência futura da literatura e, catrapumbas, aqui está uma notícia que contradiz os meus receios. "Ora toma que é para aprenderes a não seres pessimista" pensei eu, rindo de mim próprio, sentindo até um pouco de desdém pela minha pessoa por ter sido capaz de imaginar semelhante bizarria. A literatura pode lá sucumbir à indiferença das novas gerações!

Assim reconfortado continuei a vaguear preguiçosamente pelas páginas do jornal mas havia qualquer coisa que continuava a barafustar lá ao fundo da minha caverna craniana. Voltei atrás para perceber o motivo de tal desassossego e lá estava eu, teimoso como uma mula, a não me deixar descansar sobre este assunto.

"Claro que os livros são os presentes mais populares na Europa!" dizia eu, "Enquanto for a nossa geração a deter o poder de compra vamos continuar a investir nessas relíquias mas estamos a cavar a sepultura dos livros quando oferecemos jogos de computador e DVD's como complemento. Os livros vão direitinhos para a prateleira e os putos vão colar os olhinhos nos écrãs horas a fio, consumindo o tempo e a inteligência em gestos e rotinas maquinais... um inferno!!!". Abanei a cabeça por perceber que não desisto de ser pessimista. Virei-me as costas e saí dali, enfadado, fartinho de me aturar.

Pousei o jornal e regressei ao livro que estou a ler: "O Natal do Senhor Scrooge e Os Sinos do Ano Novo" de um tal Charles Dickens. É nestas ocasiões que penso como seria bom se conseguisse ler os textos no seu inglês original.

sábado, novembro 28, 2009

4 anos


Passam hoje 4 anos sobre o 1º post do 100 Cabeças. Este é o post nº 974. Quando os números se arredondam temos tendência para olhar em volta tentando compreender se o mundo continua cheio de arestas vivas tal como se encontarava antes de começarmos a contar. É como acreditar que o mundo acabava no ano 1000. Não acabou. Depois dizia-se "de 1000 passarás a 2000 não chegarás". Estamos quase em 2010 e não se adivinha o fim do mundo. Pelo menos por enquanto. É extraordinário haver quem acredite que os números redondos do calendário possam encerrar alguma magia devastadora. Ainda por cima há diferentes calendários que ordenam a marcha do tempo conforme os acontecimentos marcantes de cada cultura. Acreditar que o nosso calendário determina algo de especial é sinal de uma imbecil sobranceria apenas possível a mentes mais ignorantes e incapazes que as de uma galinha do mato. Enfim, números redondos ou quadrados ou triangulares não passam disso mesmo: são números.

Seja como for, os números redondos costumam servir para estabelecer balanços e efectuar reflexões sobre aquilo que se fez e poderia ter feito, o que se pensou, o que se esqueceu, o que se ganhou, emprestou e perdeu. Nada disto serve para o 100 Cabeças porque o 100 Cabeças não serve para nada disto.

Passam hoje 4 anos sobre o 1º post e amanhã terá passado mais um dia. Para o 100 Cabeças talvez isto signifique alguma coisa, não tenho a certeza, mas para os milhões de Blogues que enxameiam o espaço virtual não quererá dizer nada de muito extraordinário. Ainda assim, a coisa mais extraordinária é poder escrever: até amanhã. E pensar que isso possa acontecer. O dia de amanhã.

sexta-feira, novembro 27, 2009

Um vazio infinito



Na 3ª feira passada ouvi uma das mais extraordinárias ideias acerca da leitura; da razão para a não-leitura, para ser mais exacto. Tentando motivar uma aluna minha, na aula de Desenho, para a execução de uma ilustração, pedi-lhe que tomasse como ponto de partida o livro que estivesse a ler neste momento. Ela respondeu-me que não estava a ler livro nenhum.

Então que recorresse à memória de algum dos livros que lera anteriormente, algum que a tivesse marcado, que escolhesse uma passagem qualquer, a descrição de uma personagem, de um local, qualquer coisa serviria de pretexto para arrancar com o trabalho de desenho. Respondeu-me que não tem o costume da leitura, que não se lembrava de ter lido livro nenhum. Como!!?? Que nesta situação não podia recorrer à memória porque, simplesmente, não havia memória nenhuma.

Mas porquê? Que razão a afastava assim dos prazeres da leitura? Respondeu-me que quando olha para uma página impressa aquilo lhe parece de tal modo fastidioso que, em vez de juntar as letras e ler as palavras, repara apenas nos espaços entre elas, que se formam no seu olhar linhas brancas e sinuosas pela página abaixo, como riozinhos de indiferença que vão desaguar no mar imenso do tédio mais absoluto, imaginei eu.

Desisti e procurei outra orientação para o trabalho. Na verdade o que importa principalmente neste nível de aprendizagem do desenho são o manuseamento dos materiais e questões de composição visual. A leitura era uma questão lateral.

Apercebi-me depois que a grande maioria dos meus alunos do 12º ano não lê com regularidade (isso é que era bom!) e que essa actividade lhes exige um esforço tremendo, algo próximo do sacrifício. Isto deixou-me a matutar sobre o futuro da literatura. Formou-se-me no espírito um vazio infinito.

segunda-feira, novembro 23, 2009

Eterna sedução


O encontro entre Bento XVI e um grupo de artistas (muitíssimo maioritariamente italianos) numa tentativa de reaproximar a igreja católica do universo estético tem muito que se lhe diga. Por um lado mostra como a hierarquia da igreja parece ter, finalmente, acordado, dando consigo em pleno século XXI sem influência nos centros de poder, sem capacidade de recolher "impostos" devidos pelos serviços prestados tendo em conta a salvação das almas do pessoalzinho, enfim, a igreja católica começou a olhar-se no espelho. O reflexo mostra uma velha vaidosa mas incapaz de comprar todos os vestidos e de pagar todas as operações plásticas que lhe garantiriam mais um ou outro pretendente de última hora.

O que a igreja parece estar a esquecer é que os maiores artistas da actualidade determinam os seus próprios programas iconológicos (e iconográficos) por serem normalmente livres de corpo e de espírito. Dificilmente a igreja conseguirá encomendar obras em que imponha um rigoroso controlo sobre a produção artística. A menos que o artista seja de tal maneira devoto que aceite tornar-se o "pincel de deus" (esta expressão é demais!) como se afirmavam os artistas medievais, de tal modo crentes, humildes e dependentes da igreja que nem sequer assinavm as suas obras. Elas eram, na verdade, obra de deus e eles meros instrumentos dos insondáveis desígnios da divindade.

A igreja parece vir agora com um sorriso nos lábios e uma voz mansinha aliciar os artistas com a necessidade de criarem beleza e demonstrarem fé e tudo o mais, para glória de deus (?). Pessoalmente e cá no fundo, olhando para Bento XVI, tenho a sensação de que o homenzinho está com esta coisa toda a tentar recuperar o velho hábito dos papas-mecenas. Quantos papas não deixaram os seus nomes associados a grandes artistas e a incomparáveis obras de arte? A dúvida que se me coloca é se este desejo de deixar nome associado a obra não configurará o mortal pecado da vaidade? Náááá, não deve ser. O papa é santo!

domingo, novembro 22, 2009

O regresso da realidade


"Un de ces longs bras se glissa par l'ouverture"
João Fonte Santa
acrílico sobre tela
190X146cm
The Return of the Real é o título genérico da exposição de pintura de João Fonte Santa, patente ao público no Museu do Neo-Realismo em Vila Franca de Xira. Um conjunto de telas de grande formato realizadas num esplendoroso preto/branco/cinzas e mais qualquer coisa, mostram bem o universo de maravilhosa decadência que o autor encontra no mundo que nos rodeia.

Além da excelência técnica, há uma dimensão ética que nos espreita por detrás de cada trabalho e espera ser percebida pelo nosso olhar. O texto de David Santos no folheto da exposição (ler aqui um pequeno excerto) contextualiza estes trabalhos no percurso do artista e no mundo real que lhes impõe a fronteira entre lá e cá.

Partindo de ilustrações de obras de Júlio Verne ou de vinhetas de Banda Desenhada de Hal Foster e Jack Kirby, Fonte Santa cria imagens com fortíssima presença, capazes de seduzir o olhar com uma delicadeza inesperada. A técnica utilizada é estonteante, os resultados espectaculares. Quem tem o gosto pela pintura encontrará aqui motivos de regozijo.

sábado, novembro 21, 2009

Em busca do tempo perdido



Pela primeira vez desde há décadas, o Vaticano experimenta uma reaproximação ao mundo das artes, tentando encontrar no diálogo com os seus protagonistas o tempo perdido num ou dois séculos de progressivo afastamento. Esse desencontro ter-se-á alargado com o tempo em que a sociedade se foi dessacralizando à medida que o discurso científico se foi afirmando num espaço democrático, em contraponto a um discurso religioso demasiado rígido e dogmático, incapaz de alargar as fronteiras do seu pensamento de modo a ajustá-las à liberdade de expressão individual.

A coisa começou a dar-se há muito, muito tempo, quando a Igreja católica deixou de ser a principal fonte de encomendas para o mundo das artes, coincidindo com o surgimento de uma sociedade de contornos cada vez mais nítidamente capitalistas. Nos dias que correm a produção artística é encarada mais como uma actividade económica do que como forma de expressão de narrativas globais e de síntese de um pensamento humanista que se pretenda que seja a matriz principal das sociedades ocidentais. A arte centrou-se em si própria, discursando sobre questões de índole estética e com contornos individualistas, cortando o cordão umbilical que a liga à sociedade que lhe dá a vida.

Até aqui, a igreja estava-se bem a borrifar para tudo isto, acreditando talvez que a fé dos homens poderia passar sem a muleta da imagem artística para a sustentar. Na verdade, num mundo mediático onde a imagem reina sobre todas as coisas, mesmo a fé não pode ignorar a força ciclópica da produção artística.

O Papa, que não é parvo nenhum (pode ser muitas coisas pouco recomendáveis mas parvo não é uma delas) procura agora recuperar uma aliança que em tempos (estou a lembrar-me da Contra Reforma) deu frutos mais do que apetitosos mesmo que alguns tenham nascido em árvores proibidas.

É um facto que o universo religioso é um dos campos mais férteis para a criação artística, pelo espaço maravilhoso e transcendente que propõe à reflexão dos seres humanos. É com agrado que registo este reaproximar entre dois universos que andavam alheados um do outro. Pessoalmente nunca deixei de acreditar na salvação da alma através da arte.

quinta-feira, novembro 19, 2009

Ciência irracional


Dizer que o futebol desperta paixões é um lugar comum. Tentar explicar essas paixões enrola-nos o raciocínio de tal forma que acabamos a debitar tolices e deixamos de fazer sentido fora das nossas cabeças.

Nos últimos tempos há a lesão de Cristiano Ronaldo que terá sido provocada por um bruxo espanhol, Pepe de sua graça, que afirma ter sido contratado para arruinar a vida do rapaz-maravilha. Bizarro, sem dúvida, mas um grupo de fanáticos argentinos veio introduzir uma nova dimensão à bizarria futebolística.

Pretendem estes magos da ciência do pontapé na chincha que o craque Lionel Messi adopte o penteado artístico do mítico Diego Armando Maradona, agora treinador da selecção das Pampas cujo feito mais notável nesta sua nova ocupação foi ter mandado "chupar" todos os que disseram mal da sua pobre prestação como técnico. Uma grosseria que, vinda de quem vem, o deus da mãozinha, só pode espantar quem não vive o fenómeno futebolístico.

Argumentam que o penteado em causa foi a razão para a genialidade de Maradona. Que confere aerodinamismo e estabilidade e que, caso Messi lhes faça a vontade, a vitória da Argentina na Taça do Mundo a disputar na África do Sul serão favas contadas.

No site criado para recolher assinaturas que levem Messi ao cabeleireiro da esquina explicam a infalibilidade da coisa argumentando com razões científicas e razões mitológicas. Não há que duvidar.

Um dia houve um árbitro de futebol português que disse que desde que tinha visto um porco a andar de bicicleta já nada neste mundo o podia espantar. Talvez agora esteja a reconsiderar a sua posição.

segunda-feira, novembro 16, 2009

Tempo que não é dinheiro


Basta chover um bocadinho e a cidade tranforma-se numa espécie de caos. O trânsito entope, ouvem-se sirenes e buzinas, sente-se um stress arrasador na atmosfera. As pessoas agarradas aos volantes têm caras fechadas. Nos bancos de trás muitos levam criancinhas sentadas nas suas cadeiras especiais, com cintozinhos de segurança. Ora comem uma bolachinha, ora dormem um soninho suplementar que o papá (ou a mãmã) nunca mais consegue chegar à escola e já está a ficar atrasado pra caralho!

Sente-se a angústia dos que lutam constantemente contra o relógio, como se fossem coelhos brancos e enormes, a correrem desvairados pelos relvados do jardim de Alice. Mas estes coelhos, agarrados aos volantes, não correm, nem andam, estão parados. Fechados na sua gaiola com rodas individual e exclusiva.
Noto nos olhares destes condutores parados uma vaga expressão de nostalgia, talvez um reflexo sub-subconsciente, do tempo em que os avós se deslocavam a pé ou em carros de bois para irem plantar a horta. Uma criancinha olha para mim e parece estabelecer comigo um contacto telepático. "O que andamos nós a fazer neste mundo de merda?", pergunta-me ela com uma voz finiinha dentro da minha cabeça. Sorrio-lhe mas a criancinha não está para sorrisos.

Desde que passei a vir a pé para o trabalho que o mundozinho das redondezas da minha casa se está a transformar perante os meus olhos. Recupero muito do tempo que tinha perdido sentado dentro do carro a pensar que se tivesse ido a pé chegava lá mais depressa. E o tempo que levo "a mais" no cumprimento do trajecto não é tempo perdido, antes pelo contrário. Todo o tempo que ocupamos a olhar uns para os outros é tempo bem aplicado, tempo ganho. Tempo bom, tempo que não é dinheiro.

quarta-feira, novembro 11, 2009

Onde é que já vimos isto?


Anteontem cometi um erro o que é uma coisa tão habitual como apertar a camisa ou lavar os dentes pela manhã. Tinha uma marcação no dentista e apresentei-me no consultório às 14h 30m exacta e pontualmente. Tudo perfeito excepto o horário. A marcação era para as 17h 30m. De súbito ali estava eu com 3 horas sem programa previsto. Saí para a rua sem saber muito bem o que fazer. Mas não levei muito tempo até perceber qual a melhor forma de remediar a situação; cinema! Evidentemente.

Depois de uma curtíssima consulta ao jornal optei por ir ver Substitutos, um filme de ficção com Bruce Willis no papel mais espêsso.

Sentei-me no escurinho do cinema com mais dois ou três espectadores e lá fui, filme dentro. A coisa até poderia funcionar a 100% mas fica-se aí por volta dos 50, 60%, vá lá. O filme é certinho, a realização competente, o velho Bruce faz o que dele se espera com aquela eficácia do costume. A fotografia é interessante, o argumento ronda a questão da anulação da personalidade individual por intromissão da tecnologia no quotidiano dos seres humanos que se deixam substituir por máquinas em todas a dimensões da sua existência. No fim, quando os maus são abafados e os bonzinhos mais ou menos premiados, fica a pergunta: mas onde é que eu já vi isto? Sinceramente já não sei bem onde foi, mas sei que já vi este filme noutro filme qualquer.

terça-feira, novembro 10, 2009

Inquilinos a prazo


Esta manhã, ao fazer o caminho de casa para o trabalho, dei por mim a olhar as nuvens que passeavam calmamente sobre os prédios recortados no azul celeste. Cá em baixo a cidade comportava-se com a monotonia habitual, um jogo de rotinas e trajectos definidos pelas existências humanas que, tal qual a minha, se vão espreguiçando na linha do tempo. Intervalos entre o nascimento e a morte, coisas dignas do mais profundo esquecimento. A frase de Lévi-Strauss regressou como uma imagem que se torna nítida no meio do nevoeiro quando o penetramos.

Esta ideia de que a humanidade é apenas um intervalo (entre o seu nascimento e a morte anunciada) na vida do planeta Terra já me assombrou noutros tempos. Estava apenas esquecida. É um pensamento algo deprimente. Olhar as crianças e os velhos que se deslocam perto de mim iluminados por esta evidência devastadora não é coisa que me abra o apetite para o pequeno-almoço. Apesar disso comi um folhado misto e bebi o café habitual enquanto ia folheando o jornal matutino.

A humanidade não é mais que um inquilino desleixado que alugou partes significativas do planeta durante um determinado espaço de tempo. Um dia abandona o condomínio e não vai deixar grandes saudades aos que por cá ficarem.
É triste?
Será.
Mas, o que se há-de fazer?
A resposta é tão evidente que provoca um sorriso: viver!

domingo, novembro 08, 2009

Divindades (ou nem por isso)





Nos regimes comunistas havia sempre(continua a haver) um Big Brother a zelar pelos cidadãos, noite e dia, sem descanso nem férias repartidas. O Estado, o Chefe, o Líder, o Grande Timoneiro, chame-se-lhe o que se quiser camar-lhe, lá está, no topo da pirâmide a olhar em volta, atento como uma gárgula pendurada nas alturas de Notre-Damme.

Nos regimes teocráticos Deus é a resposta absoluta e evidente. Nada existe para lá nem para cá da sombra por Ele projectada. Sombra que tudo cobre e tudo come. Os deuses têm um apetite tão insaciável quanto incompreensível para o comum dos mortais. Quando é Deus que governa são os seus representantes, mais de carne que de osso quem lhes executa as vontades, numa clara discrepância entre os divinos desígnios e a fraca capacidade dos humanos para os interpretarem e porem em prática (mesmo que iluminados). Sangue, muito suor e mares de lágrimas. Orfandade insuportável.


E nos regimes capitalistas? Quem governa o nosso quotidiano delirante? O dólar? O euro? Tem o dinheiro uma face que se possa pintar para escarrapachar no altar de veneraçao? Mmmmh, fizemos de Deus um velho barbudo envolto numa túnica clara e respeitável, à imagem dos filósofos gregos. Como poderemos criar uma imagem que simbolize a divindade capitalista? Talvez uma latinha de Manzoni...

Talvez a única e verdadeira Internacional seja, não a operária e camponesa imaginada pelos socialistas utópicos, obreiros do comunismo, mas a Internacional Capitalista: "Ladróes e vampiros de todo o mundo, uni-vos!". E eles unem-se até se reunirem em convenção onde se poderão devorar uns aos outros alegremente, dando a Darwin um pesadelo que o entretenha na sua Eternidade lá no Céu, onde decerto está, sentado à direita de Deus. O verdadeiro Deus dos macacos que nós somos.

quinta-feira, novembro 05, 2009

You may remember this...


... a kiss is just a kiss...

O muro caiu em Berlim vai para 20 anos. É agora tempo de meditação sobre todos os outros muros, igualmente odiosos, que continuam em pé ou vão tentando levantar-se do chão. Uns dentro, outros fora das nossas cabeças.

sexta-feira, outubro 30, 2009

Estou nas nuvens

clicar na imagem para leitura detalhada


Hoje recebi uma notícia que me deixa mais do que orgulhoso. A minha filha, Eva, vai receber amanhã, na Amadora, o 1º Prémio relativo ao escalão até aos 17 anos, do concurso de Banda Desenhada organizado pelo FIBDA (Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora).
O tema para a BD não era nada fácil: O Grande Vigésimo. Uma coisa difícil de entender e, mais ainda, difícil de abordar, tema global desta edição que, aliás, mereceu algumas críticas pouco abonatórias (ver aqui).
No entanto a Eva recorreu à sua criatividade de tal modo que esta se transformou em personagem central da narrativa que concebeu para dar resposta a tema tão estrambótico. O resultado é o que ilustra este post e que mereceu a atenção do Júri.
Amanhã será dia de consagração pública nos Recreios da Amadora onde irá decorrer a sessão de entrega dos prémios. Estou nas nuvens.
:-)

sábado, outubro 24, 2009

Deixa-me entrar


Foi a minha filha quem me chamou a atenção para este filme. Mostrou-me um trailer no Youtube e a curiosidade lá ficou, guardada e esquecida. Até hoje.

Passei na FNAC pela manhã decidido a comprar um DVD para ver durante o dia que se me anunciava indolente. Vasculhei nas prateleiras, deixei que os olhos cirandassem pelos títulos, uma outra imagem prendeu-me a atenção. Já tenho alguma dificuldade em ler as sinopses nas costas das caixas, têm letrinhas tão pequeninas que nem com óculos consigo perceber patavina. Talvez com umas lentes mais potentes... até que parei defronte a este "Deixa-me entrar" e a tal memória deslocou-se, calma e seguramente, lá do fundo escuro da minha mente e parou com elegância debaixo de uma luz pouco branca, o que me fez pegar imediatamente no DVD. E vim para casa.

A Eva (a minha filha) ficou radiante. Depois do jantar reunimos toda a família diante da TV e demos início à sessão. No final; deslumbramento e excitação. Tínhamos visto um daqueles filmes que, como diz o Beto Canales, entra direitinho na lista dos 10 melhores filmes de sempre, embora essa lista tenha para aí uns 110 filmes ou mais.

O filme é sueco. A sonoridade da língua tem aquele ritmo estranho que, em "Deixa-me entrar", se torna quase encantatório. É uma obra de arte como só no cinema podemos encontrar. Os planos e as sequências têm uma solidez pictórica extraordinária e o argumento é simplesmente genial. Ainda estou meio a pairar no ar.

quinta-feira, outubro 22, 2009

Contos


Este texto é uma carta ao director do jornal Público. Aqui foram acrescentadas as hiperligações.


Não me parece que José Saramago tenha produzido as afirmações da discórdia com o intuito de promover o seu livro [Caim] numa espécie de golpe publicitário espertalhão, como alguns dos que o desprezam pretendem fazer acreditar. Nem tampouco me parece que o velho escritor tenha vindo emendar a mão quando reconhece haver passagens interessantes na Bíblia ou quando assume que muitos dos valores que tem interiorizados são valores cristãos. Aqueles que, como o senhor director do Público, olham para Saramago como um troca-tintas arrogante simplesmente não são capazes de enxergar muito além dos seus narizes e querem ver nele um diabo vermelho, incapaz de compreender os tais valores. Saramago pensa pela sua cabeça, livremente, isso é mais que uma qualidade, é uma bênção. Aquilo que diz é produto de uma visão do mundo fortemente personalizada. Daí que possa olhar para certos críticos descabelados como quem olha para um insecto zumbidor capaz de fazer perder a paciência a um santo.

Mário David, um ilustre eurodeputado desconhecido até dos que nele votaram, encontrou neste episódio a oportunidade para o seu momento warholiano. Vindo lá dos céus de Bruxelas, qual anjo vingador, descarregou um arsenal de boçalidades e imbecilidades sobre José Saramago que imediatamente ganharam eco nos meios de comunicação por serem tão estúpidas quanto sonantes. Os jornais adoram uma boa caixa e aquele infeliz proporcionou-as generosamente. Uma visita à sua página na internet mostra-o aos beijos e abraços a tudo quanto é figura mais ou menos pública, destacando-se duas fotos em que ele ajoelha e oscula o anel de João Paulo II. Se o Mário é português (mesmo que não cheire mal da boca) é natural que muitos dos que também o são queiram ser espanhóis. Pim.

Os que acreditam em deus com devoção de carneirinho não se atrevem a questioná-lo. Quer-me parecer que essa cegueira intelectual é mais fruto de um medo atávico do que propriamente por respeito ou admiração sincera. O inferno é, para muitos, um lugar tão real e verdadeiro quanto o paraíso e convém não esquecer que é a deus que compete decidir quem vai para um e outro desses lugares, numa decisão sem apelo nem agravo. Os devotos de Jeová, o deus dos exércitos, o criador das sete pragas do Egipto, o carrasco de Sodoma e Gomorra, não compreendem muito bem (nem mal) que um homem possa apenas pretender pensar pela sua cabeça e faça uso da inteligência de forma crítica e objectiva. Esses têm demasiadas cercas e gaiolas onde se enfiam temendo a ira daquele implacável deus do Antigo Testamento. Imaginam-se iluminados e no caminho da salvação quando, a meu ver, vivem vidas que não despertam inveja nem a um pinto de aviário, quanto mais a um homem livre. Se eu acreditasse numa divindade desse calibre também havia de sentir ódio por Saramago.

O Antigo Testamento, tal como o conhecemos, será bem diferente da versão original que os evangelistas registaram nos míticos tempos em que deus lhes soprava ao ouvido o que haviam de escrever. Dezenas, centenas, milhares de traduções depois, o texto decerto fará justiça ao provérbio que diz “quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto”. E é de contos que falamos, quando falamos da Bíblia. Contos poderosos, uns, mais fraquinhos, outros, mas contos. Para mim faz tanto sentido orientar a minha existência tendo por base a leitura da Bíblia quanto faria sentido orientar-me cegamente por um bom livro de contos de Tchekov. Assim como assim seria uma orientação bem mais humanista para a minha vidinha.

sábado, outubro 17, 2009

Proxenetismo hípico


A comparação deixou-me a pensar no assunto. Aqui há dias, numa daquelas páginas de jornal que tratam as frivolidades quotidianas como notícias, lá vinha estampado "Salário de Ronaldo será ultrapassado". A ilustrar o apontamento uma foto de Cristiano Ronaldo a olhar o infinito. O pequeno texto comparava os ganhos monetários do jogador de futebol com os ganhos dos donos de um... cavalo!

Trata-se de um jovem potro fenomenal que responde ao nome de Sea The Stars (até tem entrada na Wikipédia mas, o que não tem?) que venceu as mais importantes corridas em que participou este ano. O bicho é de tal modo extraordinário que vai ser retirado da competição nas pistas para se dedicar em exclusivo à procriação. No final do texto lá vinha o sumo da notícia "(...) o Guardian noticiou que isso poderá render aos donos do cavalo 700.000 euros por semana, entre Fevereiro e Julho. Ronaldo ganha 237.000 euros por semana."

Fiquei indignado. Os donos do pobre Sea The Stars estão, positivamente, a aproveitar-se dos atributos físicos do bicho numa atitude que só pode ser classificada como proxenetismo.

Numa época em que os direitos dos animais são levados ao extremo, penso que está aqui uma óptima causa para lançar um abaixo-assinado na INTERNET. Não haverá ninguém suficientemente humano para defender o pudor deste pobre cavalo? Não terá o campeão das corridas o direito a escolher a égua dos seus sonhos?

Fica o alerta. Vivemos num mundo perigoso.

sexta-feira, outubro 16, 2009

O estranho caso Maitê


Isto é coisa meio estúpida, a meu ver. Mostra como a NET tem poderes estrambóticos e, quando esses poderes são utilizados sem tempêro adequado, transformam uma coisinha de nada em coisona feiosa. Vem tudo a propósito de uma espécie de reportagem que Maitê Proença promoveu numa das suas visitas a estas terras do fim da Europa (ver aqui). A coisa tem dois anos mas só agora foi "descoberta" por estas bandas e largamente difundida, tendo mesmo honras de telejornal na TV e os mais variados comentários na imprensa escrita. A maioria dos que comentaram não gostaram nada do tom algo jocoso com que a actriz contou alguns episódios da sua estadia.

É a velha história. Nós, portugueses, podemos dizer do nosso país e de nós próprios cobras e lagartos, é uma espécie de desporto nacional. Mas quando um visitante ocasional resolve "botar a boca no trombone" ficamos exasperados, indignados mesmo. A coisa tomou tais proporções que Maitê se viu na obrigação de pedir desculpas (ver aqui). (ler e ver tudo junto aqui)

Cá para mim, o problema é que Maitê sempre foi vista como uma namoradinha transatlântica apaixonada por essa coisa abstracta que é Portugal, com letra grande. Dela o povão esperava apenas palavrinhas doces e sorrisos lindos, coisas que ela faz sem esforço e com doçura. Vê-la e ouvi-la a dizer aquelas coisas um bocado parvas deixou esse povão em estado de choque. Ainda para mais ela estava ganhando uma aura de intelectual, não só porque editou um livro mas também porque terá um caso amoroso com um dos mais rebeldes intelectuais cá deste lado, o destemido Miguel Sousa Tavares, (ler e ver tudinho mesmo aqui) que já saiu em defesa da sua amiga.

Desde a primeira hora que tudo isto me parece uma perfeita imbecilidade. A brincadeira foi bastante parvinha porque a tal "reportagem" de Maitê simplesmente não tem ponta de graça e muito menos uma sombra de piada. Fico com a sensação que o humor não será o seu forte. Por outro lado, a reacção despeitada de um número significativo de portugas mostra como há por aqui muita gente que não tem nada melhor para fazer que não seja irritar-se por "dá cá aquela palha". (este vídeo legendado mostra como as coisas podem ganhar proporções desajustadas quando vistas pelos olhos de um nacionalista doentio, um monárquico, neste caso)

Ó amigos meus, vejam os vídeos e digam lá se vale a pena.

Isto faz-me lembrar a polémica com o cão vadio na exposição (recordar aqui num óptimo e esclarecedor post). Fico com a impressao de que há um desejo de indignação latente que, devidamente potenciado, lança o mais pacífico dos "surfistas" da NET na mais negra das campanhas. Que o estranho caso de Maitê sirva, pelo menos, para nos manter atentos em relação ao que realmente importa e nos faça reflectir sobre a facilidade tenebrosa da maledicência venenosa.

Beijos.

quinta-feira, outubro 15, 2009

Passarinhos


Todos os dias vejo dezenas (centenas?) de criancinhas em diferentes patamares de uma suposta evolução que, em última análise, conduzirá ao surgimento de um igual número de adultos. Dentro dos muros da escola, estas personagens enchem o espaço de uma alegria electrizante, transbordam energia (nem sempre) positiva, fazem o presente sonhar com uma possibilidade de futuro.

Sentado, dou por mim a sorrir enquanto observo alguns rapazes e algumas raparigas, lá fora, fazendo exercícios de ginástica sob o calor e o brilho do sol. Parecem inacabados e perfeitos. Olho-os e tenho a sensação de que o crescimento os irá fazer retroceder fisicamente enquanto o intelecto se fôr desenvolvendo. É como se o corpo e a mente fizessem viagens simultâneas mas em sentido inverso, cruzando-se como que por acaso, nalgum ponto das nossas vidas, potenciando uma felicidade especial que não sei se existe ou se tem alguma explicação.

Das árvores solta-se em riscos rápidos e fininhos o canto de pardais escondidos. Os miúdos abandonam o pátio. Deixo de os ver tal como não vejo os pardais mas ainda se ouvem as suas vozes a voltear em traços redondos e macios. Passarinhos!

segunda-feira, outubro 12, 2009

A cabeça inchada


Um homem é isso mesmo: um homem, apenas... poucos conseguirão ser mais do que isso. Quando olho para uma foto de Obama, quando vejo imagens de Obama discursando ou Obama fazendo de conta que não se passa nada de extraordinário ao ponto de ir comprar uns hamburgeres à tasca da esquina, vejo um tipo meio perdido nas ruelas esconsas da realidade. Um tipo a quem se exige que seja quase um outro Cristo, um Cristo quase negro como convém à humanidade que seja o próximo Messias. Já andamos fartos da imagem do Cristo loiro de olhos azuis, o Cristo impossível, o Cristo cara-pálida, esse Cristo que apenas consegue fazer empertigar os fantasmas maus (da guerra, do poder económico, da xenofobia e do racismo) e desejamos ardentemente que possa existir um Cristo bom, um Cristo diferente que nos permita acreditar novamente na possibilidade de redenção da nossa espécie e, mais do que isso, um Cristo que nos permita sonhar com um mundo novo no qual a bondade humana ganhe um alento que pensávamos estar perdido.

Cristo que se preze carrega a sua cruz. O comité do prémio Nobel encarregou-se de a colocar no ombro de Obama e agora estamos todos a olhar para ele, coitadinho, como se o mundo lhe rodasse nas mãos enquanto ele, absorto, pensa no futuro e como poderá ser o mundo daqui para a frente. Como se sentirá Obama nesta nova pele que lhe queremos cozer à volta dos ombros? O que lhe rodará no interior da cabeça? Como será para alguém que é igual a qualquer um de nós ver-se transmutado em ícone vivente, esperança de paz num mundo construído sobre um matriz guerreira? Ai, Obama, estás fritinho, meu irmão. Desculpa lá esta merda mas vais ter que te desenrascar. Sinceramente, deposito em ti grandes esperanças mas nao te queria estar na pele. Só espero que numa noite de insónias, quando ajoelhares, cabeça inchada como uma abóbora de Haloween, para rezares ou falares directamente com o Big Boss, não dês por ti a suar sangue.

sexta-feira, outubro 09, 2009

Surprise!!!


Ena pá!!! Esta foi uma autêntica surpresa. "Surprise", como dizem os gajos que falam a língua do presidente Barack Hussein Obama. Atribuir o Prémio Nobel da Paz ao presidente dos Estados Unidos da América não parece ser a coisa mais óbvia, pois não? E não é, de facto. É uma coisa estranha e inesperada. Afinal de contas Obama tem nos braços duas guerras que herdou directamente do Grande Satã e ainda uma prisão maldita que continua a funcionar a emio gás, ali para os lados de Guantanamo.

Então que raio de ideia foi aquela dos gajos que atribuem o Nobel? Estão parvos ou malucos? Passaram-se de vez?

Cá pra mim, que sou pouco mais do que ninguém, os gajos passaram-se, mas só um bocadinho. Obama, goste-se dele ou desgoste-se do que ele representa, é a face da esperança ("hope", como dizem os gajos que falam aquela língua simplória) e é essa esperança a verdadeira premiada deste ano. Sem Obama o futuro pareceria a todos nós bem mais cinzento, a dar para o muito escuro. Quase preto de fumo e vermelho de destruição. Com ele podemos acreditar na possibilidade de existir paz, nem que seja a médio prazo.

É claro que os talibã preferiam que o prémio Nobel da Paz fosse atribuído a Osama Bin Laden, por exemplo. Os iranianos escolheriam quem? E por aí fora, há muita gente que desdenha de Obama. Esses desdenham tudo. Esperança incluída.

quarta-feira, outubro 07, 2009

Kindle


Caramba, nem sei o que pensar! Uma caixinha parecida com um livro que não é um livro mas sim uma biblioteca em potência com 1500 livros lá dentro? Chama-se Kindle e vai estar à venda em Portugal com livros disponíveis para descarga em... língua inglesa. Um luxo que, num futuro que se adivinha próximo, irá desocupar estantes um pouco por todo o mundo. Quando a livralhada virtual estiver disponível em Português talvez pense no assunto. Para já, confesso, a coisa mete-me um certo medo. Não sou capaz de imaginar um livro que não seja em papel impresso. Nem neste écrã sou capaz de ler um livro, como será com um écrãzinho pequenino? Não estou a imaginar.

Nestas ocasiões penso que sou um bocado retrógrado, que não me entusiasmo com as coisas novas que o comércio futurista me põe à disposição no mercado. Adoro as minhas prateleiras carregadas de livros. Os livros com imagens são os meus preferidos. Amo os de Banda Desenhada que colecciono com afinco. Não estou a ver como poderão funcionar os livros com imagens de arte nesse tal Kindle.

E o que farão aqueles gajos importantes que gostam de dar entrevistas na TV com uma prateleira repleta de livros por trás? Um cenário carregado de livros dá um certo ar intelectual à personagem... um Kindlezinho lá atrás não vai impressionar ninguém!

Enfim, o mundo pula e avança mas há pulos e avanços que dificilmente entusiasmam toda a gente. Digo eu.

terça-feira, outubro 06, 2009

3 atributos


Transparência. Densidade. Narrativa. Leveza, humor e um soco no estômago. Suspensão. Do gesto. Do gosto. Do tempo. O tempo suspenso do espaço em volta. O objecto. Dinamismo. Oposição. Complementaridade. A obra completa. A obra complexa. Rasga o espaço. Divide, une, representa. A mão suspensa na fronteira. Paira no vazio. Aguarda. E foge. Regressa. Dança. Transparência, densidade e narrativa.

segunda-feira, outubro 05, 2009

Um sorriso ao espelho


Por vezes há notícias que me enchem de orgulho por ser português. Pelo menos num primeiro momento. Durante os instantes em que não penso demasiado sobre o assunto, o título de uma notícia pode lavar-me a alma e deixá-la perfumada como um bébé saído do banhinho.

Repare-se no título desta notícia : Portugal é o mais "generoso" em políticas de integração. Caramba, digam lá se não soa bem!?

Lembro-me de ser miúdo e viver numa aldeia lá para a Beira Alta, entre a serra do Caramulo e a da Estrela. Não havia água corrente, as pessoas passavam fome de cão, os carros de bois cirandavam pelas ruas em tarefas de transporte e os bichos largavam bosta pelo empedrado. O padre era uma figura importante e a minha avó tinha um retrato do Salazar na parede do corredor, logo à entrada da casa.

As pessoas não viajavam. Saíam da aldeia. Os rapazes para a guerra em África e muitos outros emigravam. Uns para França, outros para a Alemanha mas, se bem me lembro, a maioria dos que saíam dali rumavam ao Luxemburgo. Eram tempos de grande miséria e maior ignorância, de mulheres fechadas em roupas negras como a noite, fruto de muitos lutos e uma tristeza arrasadora.

Mas a vida mudou, oh sim, como mudou! Hoje já não há soldaditos a marchar para África e muitos emigrantes regressaram. Construíram casas, montaram negócios, refizeram o tecido social e económico daquelas bandas. Portugal passou a ser também destino de emigração. No mundo actual, os emigrantes vêm de todo o lado, de países que, imagino, passam agora as dificuldades que o nosso passou nos anos 60 e 70. As pessoas procuram melhores dias onde quer que eles possam amanhecer. E Portugal é um país com muito sol e, sobretudo, repleto de portugueses que são gente com o coração ao pé da boca.

A leitura da notícia que acima refiro mostra como, no campo das intenções, não há quem nos bata. Quando se trata de declarar o que nos vai na alma somos campeões mundiais! Temos legislação generosa e um sorriso pronto quando se trata de receber estrangeiros. Estou em crer que também não nos custa aceitá-los como portugueses quando a isso eles se dispõem, embora isso seja apenas um pormenor.

Um povo que se espalhou pelo mundo como o fez o povo português, num laborioso trabalho de séculos de emigração, só pode, agora, abrir os braços e as fronteiras aos que procuram no nosso país aquilo que nós procurámos noutros países: paz, pão e uma vida melhor.

Apesar de haver muitos com um discurso xenófobo e racista, quero acreditar que a esmagadora maioria do povo português está de bem com o mundo e com a restante humanidade. Que se lixem as fronteiras. Venham daí que serão benvindos!

domingo, outubro 04, 2009

Um homem como outros


Van Gogh é um caso extraordinário de popularidade. Não sei dizer qual a percentagem de pessoas em todo o mundo contemporâeo que o "conhecem" ou, pelo menos, sabem o que ele fez. Van Gogh é "o" artista que habita o nosso imaginário. O génio meio louco, trabalhador incansável, o pintor capaz de meter na tela a força do mundo e da vida com um vigor nunca antes visto e, depois dele, poucas vezes alcançado.

É do domínio público que, no tempo em que viveu, poucos repararam naquela força nova que emanava das suas telas e desenhos. Foi preciso que a roda do tempo rolasse uns anos largos até que Vincent chegasse até nós e se tornasse íntimo do nosso olhar e do nosso coração sensível. Ele é um artista que conhecemos com uma profundidade rara. Esse conhecimento deve-se, em grande parte, às cartas que escreveu e enviou a Theo, o irmão dedicado, a outra parte de Van Gogh.

Anuncia-se agora a edição de um livro que só pode ser extraordinário, Vincent Van Gogh, The Letters, que será lançado na próxima 5º feira, resultado do trabalho desenvolvido ao longo de 15 anos (!!!) por uma equipa ao serviço do Museu Van Gogh, de Amesterdão. Um acontecimento notável.

Van Gogh terá um dia desejado que a sua pintura fosse para toda a gente, que gostaria que cada família tivesse uma obra sua, pendurada na parede de casa. Sabemos bem como isso é impossível mas sabemos também os milhões e milhões de pessoas que terão reproduções e livros com imagens das obras de Vincent. O sonho utópico do artista realizou-se. Agora serão as suas cartas a entrar no circuito mediático com uma força renovada. Tornar-se-ão também um caso de popularidade absoluta? Talvez isso venha a acontecer alimentando o mito do artista genial e genuíno que Van Gogh representa. Ele, suicida hesitante, que um dia disparou um tiro de revólver no próprio estômago ficando a agonizar durante alguns dias até sucumbir ao ferimento. Van Gogh, o génio absoluto.

sábado, outubro 03, 2009

Estados de alma


A vida tem destas coisas. Na edição de hoje do Público vem uma noticiazinha bastante cinzenta sobre um inquérito feito em 33 países com o objectivo de medir a auto-estima dos povos. "O trabalho, elaborado por uma empresa internacional de consultoria, o Reputation Institute, pediu a cidadãos de diferentes nacionalidades que pontuassem a confiança, o respeito, a admiração e o orgulho relativamente aos respectivos países."

Portugal lá está no fundo da tabela, em 4º a contar do fim, confirmando o que já se suspeitava: somos tristongas a gastar, os "latinos tristes", como alguém nos designou depois de passar cá um par de semanas a apanhar sol na mona. A notícia segue em ritmo zombie com declarações dos senhores do costume. De um lado Vasco Graça Moura a clamar contra o abandono da Cultura (bem pode ir pregar pró deserto) e do outro o sociólogo Manuel Villaverde Cabral que desbobina umas ideias mais curiosas sobre a forma como a auto-estima se manifesta. Tudo normal (bocejo) até reparar nos 3 últimos lugares da lista.

No fundo o Japão. Pronto, está certo, aquilo afinal é uma ilha grande e os japoneses levam a vida muito a sério e vivem mais tempo que os ocidentais e tudo, por serem tão capazes de fazerem as coisas bem feitas. Mas isso não proporciona felicidade a (quase) ninguém.

Em 2º a contar do chão está a África do Sul. Caramba, pudera, ainda devem andar a curtir a depra de terem vivido tantos anos num regime de apartheid e, uma vez saído do inferno, o país não consegue realizar os sonhos de igualdade, teimando em viver um pesadelo complicado.

Em 3º, mesmo atrás de Portugal... está o Brasil!!! Quem diria? Lendo o resto do jornal encontramos brasileiros em delírio absoluto graças à notícia da eleição do Rio de Janeiro para sede dos Jogos Olímpicos de 2016. Uma festa carnavalesca. Além disso, a notícia enfatiza a ideia de que, por alturas dos Jogos no Rio, o Brasil será, provavelmente, a 5ª economia mais poderosa do planeta. Então porque está o Brasil atrás do país do Fado e do choradinho neste ranking mal amanhado? Por mais voltas que dê à cabeça só encontro uma explicação ou duas; é herança genética ou então a tristeza vem agarrada à língua portuguesa como lapa vai agarrada na rocha. Não somos nós que dizemos que não há tradução para "saudade" seja qual fôr a língua que tente explicá-la? Pois concerteza, se a saudade é um exclusivo lusófono muita coisa está explicada.

sexta-feira, outubro 02, 2009

Ig Nobels?


O Prémio IgNobel merecia outra visibilidade. As notícias sobre a sua atribuição, em Boston, acabam por fazer parte de uma secção de curiosidades menores. Parece-me injusto que, por exemplo, o Prémio Nobel tenha mais publicidade e seja levado mais a sério. Isto porque as investigações galardoadas com o Ig Nobel (ver aqui 10 das mais extraordinárias) apesar de serem capazes de nos levar a rir até às lágrimas, mostram os limites do absurdo e deixam bem visível até que ponto os tolos se aproximam dos limites da genialidade. É como se houvesse uma fronteirazinha fininha entre o mais parvo e o mais inteligente e que, por vezes, o lado da fronteira em que fica uma ideia ou uma pessoa não é mais que obra do acaso.

Consulta as hiperligações acima, amigo leitor. Vais ver que acabas a rir contigo próprio.

quarta-feira, setembro 30, 2009

domingo, setembro 27, 2009

Hoje votámos (mais uma vez)


Cheguei há umas horas de Viseu. Fui até lá com o meu irmão. Fomos exercer o nosso direito fundamental no sistema político em que vivemos. Votar é um momento. Mas é um momento enorme de tão especial. Sinto sempre uma imensa serenidade, um estranho prazer, quando faço aquela cruzinha. Aquela cruzinha faz-me acreditar intensamente em qualquer coisa que não sei muito bem explicar que coisa é. A primeira projecção tornada pública pelas televisões é a da abstenção que terá sido entre 37 e 40 e qualquer coisa por cento. Uma barbaridade. Uma estupidez, uma irresponsabilidade difícil de compreender. Quanto mais a democracia avança menos são os que nela decidem participar. Estranho não é? Mas é assim. Que fazer? A resposta é simples: votar sempre que a isso somos chamados.

sexta-feira, setembro 25, 2009

Olympia


Sempre que uma obra de arte de um artista célebre é roubada fico a pensar como irá o produto do roubo ser valorizado. Os ladrões decerto pensam vender a Olympia (imagem acima), o quadro de Magritte roubado na manhã de 24 do corrente mês conforme noticiado (ver aqui), mas quem o irá comprar? Imaginemos que eu adquiria a Olympia, o que lhe faria a seguir? Se a colocasse na parede de minha casa como iria explicar a quem a visse a sua proveniência? Não a podendo expor poderia sempre escondê-la e dar-lhe umas espreitadelas em privado. Seja lá como fôr é uma coisa complicada.

A menos que os ladrões tenham outra motivação. Podem ser amantes incondicionais da obra do mestre belga e a sua motivação o resultado de um impulso incontrolável, um desejo de posse absurdo, capaz de os fazer ignorar a temeridade do seu acto.

A arte não deixa de nos surpreender seja qual for a perspectiva de abordagem que façamos. Confesso que já dei por mim a olhar para o tríptico de Bosch, "As Tentações de Santo Antão", exposto no Museu Nacional de Arte Antiga e a imaginar que o roubava e podia admirá-lo na sala de minha casa com uma cervejinha na mão durante o intervalo de um jogo de futebol transmitido pela TV. É uma coisa perfeitamente infantil, um sonho daqueles que os adultos têm apesar de saberem que não os podem ter. Mas nada nos impede de sonhar e as obras de arte são portões imensos abertos sobre a infinitude do amor que sentimos por tudo aquilo que nos preenche mágicamente.