sábado, setembro 28, 2024

A Arte Abstracta é coisa que se veja?

     A designada Arte Abstracta transporta consigo uma tremenda confusão. A Arte Abstracta é uma Cavalo de Tróia da Confusão. A Confusão entra em nós alojada no estômago da Arte Abstracta. 

    Tem tudo a ver com aquela coisa de se representar ou não aquilo que os os nossos olhos vêem ou que imaginamos ver ou lá o que é. Magritte terá tentado apunhalar o o dito cavalo pintando A Traição das Imagens mas o cavalo, além de ser de pau, é demasiado grande para que possamos importuná-lo com um punhal insignificante.

    E é assim que a Arte Abstracta sobrevive a todas as tentativas de esclarecimento sobre a sua origem, a sua substância e (pormenor menos interessante) para onde se dirige. A expressão é caricatural e, talvez por isso, assumiu um papel importante no imaginário popular. Quando se fala de Arte Abstracta toda a gente sabe o que ela é, apesar de não ser bem coisa nenhuma.

quinta-feira, setembro 26, 2024

Pinta, linha e plano

     Hoje apercebi-me daquilo que me parece ser um erro de alguma gravidade. Quando falamos em "elementos básicos da linguagem visual" referimos sempre o ponto, a linha e o plano. É uma sequência lógica que parte do mais ínfimo elemento dessa linguagem para o mais vasto. Partimos do princípio que estamos a referir conceitos tradutíveis por sinais gráficos, mas a coisa não é assim tão pacífica.

    Um ponto é, por definição, um lugar geométrico que resulta da combinação de um determinado conjunto de coordenadas. É uma abstracção, Como podemos pretender que uma pintinha no meio de uma folha em branco represente um ponto? Magritte mostrou-nos, com A Traição das Imagens, que uma pintura de um cachimbo não é um cachimbo. Logo, uma pinta não é um ponto. É uma pinta que, nas nossas monas, significa e representa um ponto.

    Assim, proponho que passemos a designar os elementos básicos da linguagem visual como "pinta, linha e plano", sabendo que a questão da linha ("é um ponto que foi dar um passeio", segundo Paul Klee) e a do plano (será uma recta a rebolar sobre si própria?) também merecem alguma atenção e muita, muita reflexão.

terça-feira, setembro 24, 2024

Cheirar mijo

     Tinha saudade do tempo em que as coisas eram como Deus quis que elas fossem. O tempo em que aquela senhora correria atrás do seu nariz, o tempo dos passarinhos cantando nos ninhos enquanto ele desceria a rua que desagua no Tejo; e a rua não cheiraria tanto a mijo. Havia de cheirar a mijo, mas menos, porque era um tempo em que as coisas eram como Deus quis que elas fossem.

    Se Deus quisesse que as ruas tresandassem a mijo daquela maneira talvez vivêssemos uma idade sempre média.

    No chão da praça espalhavam-se restos do passado e pairava um discreto cheiro a mijo adocicando a atmosfera. Um grupo de vadios grisalhos focava toda a sua atenção numa coisa qualquer que um deles segurava à altura dos narizes. 

    Na esplanada sentava-se um filho da puta perfumado de cuja existência já se havia esquecido. Lembrava-se bem de ser aquilo um autêntico cabrão, apesar das camisinhas e dos sapatinhos de vela, mas falhava-lhe o nome. 

    "Não preciso de me lembrar do nome daquele monte de merda" pensou "basta-me saber a porcaria que ele é". E cuspiu no chão. O desprezo que sentia abriu-lhe um pequeno orifício no peito da alma. Cheirava a mijo pra caralho!

sexta-feira, setembro 20, 2024

Continuar esta vida

     Cada vez mais se ouve falar em guerra nuclear. Aquela falta de ar que nos apoquentava nos anos 70, quando a palavra de ordem que ladrávamos era "no future", reaparece, vinda detrás de uma esquina da memória. Afinal esteve sempre ali, distraída, à espera, sempre ali esteve. A diferença é que já não sou um adolescente, sou um homem na casa dos sessenta. Tanto quanto sou capaz de perceber sinto as coisas de uma outra maneira.

    Há dias em que penso no tempo de vida que me resta. Calculo: 10, 20 anos? Talvez mais, talvez menos. Já me tinha esquecido da sensação de poder contar o futuro em meses, ou semanas, dias, horas. um míssil russo leva 3 minutos e 20 segundos a chegar a Estrasburgo. Minutos.

    Nada disto é agradável. Tento afastar pensamentos angustiantes, o que consigo com relativa facilidade. Pelo menos por agora. Ou será que ter vivido sessenta anos me confere algum desapego em relação à vida? Duvido. Duvido muito. Mas, a verdade, verdadinha, é que prefiro não tentar compreender. A verdade, verdadinha é que gosto da vida que tenho e preferia continuar a vivê-la. Se pudesse ser.

quinta-feira, setembro 12, 2024

Abstraccionismo Narrativo

      Faz hoje ou fez ontem 9 anos que inaugurei uma exposição de desenho, pintura e colagens à qual dei o título bastante descritivo de "Abstraccionismo Narrativo". Vasculhando um pouco aqui, o 100 Cabeças, encontrei apenas referência directa ao acontecimento neste post. Pelos vistos também eu não considerei a coisa digna de muito mais que uma referência lateral. Passados 9 anos sobre o acontecimento dou por mim a pensar que o conceito de Abstraccionismo Narrativo merece um olhar mais atento.

      O conceito de abstracção associado à criação nas artes plásticas remete para objectos que prescindem de uma linguagem visual que possa relacioná-los de forma mais ou menos imediata com o mundo que nos rodeia. Os primeiros passos deliberadamente nesse sentido terão sido dados por Kandinsky que, ao longo do trajecto, foi encontrando uma e outra situação capaz de tornar mais consistente o seu projecto artístico.

    O abstraccionismo de Kandinsky estaria relacionado com a invenção de um sistema criativo capaz de associar forma e cor numa espécie de tabela esquemática onde a influência da música foi também introduzida. Penso que vem daí o conceito, agora tão vulgar, de composição visual por associação ao de composição musical. Uma composição musical era formada por sons, tons, silêncios, tempos, a composição visual por linhas, pontos, manchas, cores, espaços vazios...  numa relação aparentemente fácil de estabelecer e de compreensão imediata, mesmo para os leigos na matéria.

    Várias e diferentes interpretações do conceito de abstraccionismo vieram à luz do dia, todas elas focadas essencialmente na questão da não representação da realidade aparente dos objectos e das formas que nos rodeiam. A criação abstracta não copia a natureza, cria uma outra natureza; não reproduz, acrescenta - ideias deste género ganharam pernas e foram à sua vida. Vamos então sendo educados para que, sempre que um objecto artístico não represente nada que possamos identificar através de uma relação reflexa com o mundo "real", possamos afirmar, sem tremura na voz, estarmos perante Arte Abstracta (assim mesmo, com "AA").

    Os meus trabalhos têm sempre referências formais mais ou menos identificáveis. O carácter fantástico ou repulsivo de certas figuras e outras bizarrias formais levam o observador ocasional a relacionar o que faço com um universo surrealista. Aceito e compreendo mas não posso concordar em absoluto. Foi a partir de conversas mais ou menos inocentes sobre esta questão que percebi a existência de uma fortíssima componente abstracta no meu trabalho, localizada no campo temático e narrativo. 

    Não retirei a literatura da pintura nem reneguei o mimetismo nos meus trabalhos mas as narrativas que desenvolvo podem ser absolutamente herméticas e eventualmente indecifráveis dada a forma absolutamente caótica como vou juntando referências de diferentes naturezas nos objectos que crio. Cada objecto se transforma numa aparente anarquia visual e narrativa (na verdade há sempre ali muita coisa meticulosamente pensada), propondo ao espectador que se confronte com aquilo que vê e crie, ele próprio, a sua história.

    Apercebo-me que este texto, indo já longo, não serve, nem de longe nem de perto, a exposição exaustiva do conceito mas, parece-me, explica o fundamento da coisa. Fico-me por aqui. 

segunda-feira, setembro 09, 2024

Caçar a ideia

     Perseguir uma ideia é como caçar. Apercebemo-nos de leves indícios, uma pista. Seguimos-lhe o rasto. Se intuirmos ser uma boa ideia perseguimo-la até onde for necessário desde que possamos apanhá-la. Seja como for, o resultado da caçada depende muito da natureza da ideia perseguida.

    Há ideias que quando se apercebem que estão a ser perseguidas esperam por nós de sorriso afivelado e se deixam capturar com alegria. Outras são esquivas e deslocam-se com uma rapidez incrível nunca deixando a protecção das sombras que povoam a nossa imaginação. Há ideias que conseguimos encurralar mas que nos resistem com heróica ferocidade por não quererem ser nossas. Ideias admiráveis. 

    Há ideias que são como borboletas, que se mascaram com grandes olhos e cores provocantes para confundirem os predadores e outras ideias que são como camaleões perfeitos. Embora saibamos que estão ali mesmo à nossa frente não conseguimos isolá-las nem distingui-las da paisagem. Movem-se com uma lentidão exasperante e, no entanto, são praticamente inalcançáveis. Ideias terríveis.

    Caçar ideias é uma actividade que poderá ter tanto de apaixonante como de frustrante. Importa saber o que fazer com uma ideia após a sua captura: se a destruímos, se a engaiolamos, se a tentamos domesticar ou a deixamos ir à sua vida. 

    Se a ideia gera algum tipo de expectativa em nós, seus captores, poderemos guardá-la, observá-la, ver como cresce e se transforma. Esse processo gera com frequência alterações tanto no captor quanto na presa engaiolada.

    Imagino que tenha sido assim que surgiram os primeiros deuses e, por consequência, nós tenhamos sido por eles criados.

Melodrama

     Procurava uma máscara que pudesse adaptar ao terror absoluto que lhe assaltava o sono. Todas as noites eram para ele lugares de tremenda insegurança. O sono vinha acompanhado de sonhos que eram, quase sempre, pesadelos. Ao acordar encharcado em suor sentia ténue alívio por adivinhar que se seguiria um dia inteiro a viver mais ou menos sossegado consoante se aproximava a noite. Na escuridão do seu modesto quarto  resistia como podia ao peso do sono que adivinhava tremendo. O cansaço acabava sempre por vencer. Fechados os olhos regressava o melodrama.