sexta-feira, junho 28, 2024

Apropriações

    


    Há uma tradição que põe na boca de Picasso a frase: "bons artistas copiam, grandes artistas roubam". A ironia desta afirmação é ainda maior se considerarmos que a frase nem terá sido ideia original do próprio Picasso. 

    Recentemente Banksy ampliou o divertimento  ao escrever a frase, ligeiramente alterada - "bad artists imitate..." - sobre uma "pedra" assinada pelo pintor malaguenho, riscando-lhe o "Pablo Picasso" e escrevendo por baixo "Banksy".

    Há aqui todo um conjunto de subtilezas aparentemente premeditadas (mudar "bons artistas" para "maus artistas" no caso de Banksy ou a apropriação de uma frase alheia em jeito de auto-elogio por Picasso, um efeito de "loop"...) que nos permitem reflexões curiosas sobre situações que nunca antes nos haviam prendido a atenção. Mas, não é para isto que serve uma obra de arte?

    Poderia agora propor um exercício de reflexão algo oportunista e um tanto preguiçoso: será a frase citada um objecto artístico? Poderemos estar perante um exemplo de arte conceptual? É toda a arte conceptual? Sim, eu sei, já lá vão três perguntas mas, as perguntas só não são como as cerejas porque nem sempre vêm aos pares.

quarta-feira, junho 26, 2024

Um livro muito grande

     Ler e reflectir, eis o combustível necessário no início de cada dia. Bom, acompanhando o pão-nosso, que de barriga absolutamente vazia não se pensa tão bem como se pensa. "O mundo livre" de Louis Menand é um compêndio brutal, excelente objecto de consulta.

    A quantidade de informação aproxima-se do delírio mas, tomada em doses homeopáticas, revela-se tão suave como pêlo de coelhinho. Apesar de umas quantas falhas editoriais, perfeitamente ignoráveis, a leitura deste tijolo (1108 páginas) faz-se em velocidade de cruzeiro e perna bem traçada. 

    O papel da edição da Penguin/Elsinore (ou será vice-versa?) é perfeito para um livro tão volumoso. Permite abrir as páginas sem a necessidade de estar sempre atento à resistência do papel que faz voltar a folha para trás e é surpreendentemente leve. Apesar do aparente desconforto até que nem se lê mal estando o leitor deitado.

    Enfim, grande livro! Sob todos os aspectos. Um livro muito grande.

domingo, junho 23, 2024

Próximo horizonte

     E pronto, a coisa estava feita. Não tendo a certeza se havia conseguido fazê-la bem feita, arrumou com grande precisão os objectos e fechou a caixinha com o cuidado habitual. Clic! 

    Olhou em volta. Algumas pessoas abandonavam lentamente o local, outras conversavam, havia também as que estavam ali como se fossem estátuas. Pôs a caixinha debaixo do braço, inclinou a cabeça com humildade exagerada e avançou na direcção da porta.

    A mulher bonita da 2ª fila olhou-o nos olhos e sorriu. Ele sorriu de volta enquanto aconchegava a caixinha com a mão esquerda. Não falaram, aparentemente não tinham nada a dizer um ao outro. Claro que não! E ele saiu. 

    Na rua, calor; e também uma caminhada curta com destino ao próximo horizonte.

domingo, junho 16, 2024

O "tempo" como lugar

     Em geometria aprendi (ou será que ensinei?) que "um ponto é um lugar geométrico". Ou seja, um ponto não é um toque rápido do lápis ou da caneta sobre uma folha de papel, um ponto não é uma bolinha, um ponto é, na verdade, uma abstracção. Abstracção essa que nos é indicada por um conjunto de coordenadas (abcissa, cota e afastamento, no caso da Geometria Descritiva).

    Mais tarde li a frase genial de Paul Klee dizendo que "uma linha é um ponto que foi passear", etc., por aí fora, o mundo vai-se-me revelando num compromisso entre linguagem e poder de visualização. A capacidade de verbalização a ser capaz de gerar imagens e intuições poéticas que disparam em todas as direcções dentro da minha cabeça e se projectam no espaço através dos meus olhos. O corpo ainda e sempre um empecilho que ambiciono dominar na tentativa de traduzir em objectos palpáveis aquilo que me vai na alma.

    Hoje pensei que o tempo é também um lugar no espaço, não exactamente como o ponto, mas com um tipo coordenadas completamente diferente, tipo esse que não consigo precisar, nem um pouco mais ou menos. Isto a propósito do conceito de tempo na criação artística e da sua influência decisiva naquilo que os artistas criam. As coordenadas do tempo a determinarem o aspecto do objecto artístico de um modo eventualmente semelhante ao que as coordenadas de um ponto podem significar na determinação da orientação de um recta no espaço.

    Há intuições nas quais acreditamos piamente ainda que sejamos absolutamente incapazes de provar a sua validade.

terça-feira, junho 11, 2024

Contorno perfeito

     As coisas aparentam ser o que parecem. Assim, à primeira vista, não vês nada de extraordinário, a luz do sol é branca e revela as coisas com sinceridade absoluta. As formas desenham-se límpidas e perfeitamente definidas perante os teus olhos; é a realidade. Mas, por detrás das cores vibrantes da realidade, estende-se o manto translúcido da verdade (isto faz-me lembrar alguém ou alguma coisa...).

    A verdade não rejeita mas também não exige ser iluminada pelo sol. Semicerras os olhos e começas a perceber que a forma das coisas não é definida exclusivamente pelo seu contorno preciso e perfeitinho. E vem-te à memória aquela frase das bruxas. Não é sem algum receio que perscrutas as sombras e aí encontras todo um universo que vais adivinhando.

sábado, junho 08, 2024

Não tenho a certeza que existas

     O sol hoje não se pode ver. Está escondido. Devo dizer que "não está bom tempo"? Porque o céu sobre a cidade tem uma tonalidade cinzenta uniforme devo afirmar: "está mau tempo"? Ou será necessário que chova para poder ser tão dramático nas minhas considerações sobre o estado da meteorologia?

    Já deves ter reparado, refinado leitor, que, não tendo nada de mais interessante para dizer, me dedico a escrever umas quantas inanidades sobre o "tempo". E porquê? - perguntas tu. Porque posso. Então e eu? - voltas a questionar. Não tenho a certeza que existas, volto a responder-te.

    E ficamos assim, hesitantes sobre quem está do outro lado, se está alguém ou alguma coisa, se nada existe para lá do que trazemos dentro do crânio.

sexta-feira, junho 07, 2024

Dilema paradoxal anedótico

     O conceito de "criação" como sendo um atributo divino parece-me uma refinada palermice. Isto porque o próprio conceito de "divino" me parece ser uma invenção humana. Ficamos assim num daqueles dilemas paradoxais que redundam em anedota, do género da célebre cena do ovo e da galinha.

    O que apareceu primeiro, Deus ou o Homem? A resposta é tão simples quanto óbvia.