segunda-feira, abril 29, 2024

Uma voz interior

    Acordara com a cabeça vazia mas não se recordava de a ter esvaziado.. Talvez as ideias fossem lixo, talvez as memórias não estivessem em bom estado de conservação. Fosse por que razão fosse, não sentia nada dentro da cabeça. Bom, na verdade sentia o cérebro dentro do crânio, uma esponja encharcada em água suja a repousar no fundo de um balde de plástico.

    De súbito foi assaltado pela ideia de que seria a sua alma a estar vazia, que não havia nada de errado com o cérebro (a esponja desapareceu de imediato mas o balde continuou firme no seu lugar). Sim, isso fazia sentido, o cérebro não poderia nunca estar completamente vazio pois ele estava a pensar! Era a alma! A alma... não, não podia ser a alma a causar-lhe aquele vago incómodo pois a alma é uma coisa que não existe de facto. Não tem forma, nem peso... mas, talvez, o que não existe possa interferir com aquilo que somos e vivemos, pensou. Uma pequena nuvem (de fumo, de poeria?) subiu discretamente desde o fundo do balde.

    Um café! A solução para aquela inconstância matinal seria o consumo de uma boa dose de cafeína. Dirigiu-se à pastelaria da esquina e pediu a bebida milagrosa que ingeriu avidamente mal a chávena pousou no balcão envidraçado. Nada. Nem o balde, sequer. Talvez o problema não residisse no cérebro, nem na alma, talvez o problema dele fosse a vida. A própria vida!

    Ai, esta ideia caiu-lhe dentro da cabeça como uma saraivada, como se Deus o corresse à pedrada para fora do Seu bairro (Põe-te a andar, palhaço! Não te quero ver por aqui, desaparece!) Esta foi dura. Segurou-se no balcão fincando os dedos da mão direita enquanto a esquerda lhe fugiu para trás das costas, tacteando o espaço sem encontrar apoio. No lugar onde estivera o balde era agora um abismo sem fundo aparente. O mar a bater lá em baixo, no escuro absoluto. Talvez inferno?

    Foi então que ouviu a voz vinda lá do fundo do seu ser - Então, pá? Não posso passar uma noite fora que ficas logo passadinho! Põe-te direito e deixa-te de fitas. Vamos, vamos embora, vamos à vida. 

    "Bom dia" disse ele "porque demoraste tanto? Não voltes a fazer isto. Por favor..." 

    Nem balde, nem esponja, nem abismo, muito menos inferno. 

segunda-feira, abril 22, 2024

O canto da sereia

     O vento fazia das árvores uma matilha de cães saídos da água que tentassem secar-se. Mais atrás, as fachadas dos prédios entristeciam perante a chegada do sol; vidraças sujas, papéis e jornais colados por dentro com pedaços de fita-cola, reclames de cores esbatidas, queimados, caixas de ar condicionado trepando paredes até onde a vista alcançava. Percebia-se a habitação do espaço, sentia-se tristeza.

    Apesar de tudo flores amarelas refulgiam como sóis, esperançosos apontamentos de cor.

    Os carros passavam, anónimos, mecânicos, como se fossem fabricados pela rua, como se a cidade tivesse a função de os produzir ininterruptamente. Um relógio mudo marcava segundos, minutos, horas, também aquele dia haveria de tornar-se um número anónimo riscado no calendário. Estranhamente nada daquilo lhe provocava qualquer tipo de sensação particular.

    Uma sereia cantou e nem assim as coisas se alteraram.

sábado, abril 20, 2024

Esperança

     Tinha a incómoda sensação de estar a ser lentamente mastigado por um bicho. Um bicho com problemas estomacais, ainda por cima. Tinha a incómoda sensação de ter sido entregue à bicharada; ele e os restantes companheiros de infortúnio, os deserdados da sorte ou da vida ou lá o que eram.

    Sentia que ninguém os poderia defender ou mesmo livrar daquela situação desesperante. O destino fora cruel. Nada iria alterar o rumo dos acontecimentos. Até que... 

    ... até que irrompeu naquele recanto escuro, onde ele e os companheiros eram lentamente mastigados, outro bicho. Maior, mais feroz, mais desvairado. Tão assustador, que o dos problemas estomacais vomitou tudo o que havia mastigado e ingerido e virando costas o deixou, a ele e aos seus pobres companheiros de infortúnio, ali abandonados: sujos, malcheirosos, vomitados, completamente desorientados.

    O monstro fugira. Chegou um novo monstro.

segunda-feira, abril 15, 2024

O Zé e o Midas

     Muitos remoques caem sobre o actual governo da República por ter prometido aquilo que, afinal, tinha sido oferecido pelo governo anterior. O espantoso choque fiscal anunciado por Montenegro na campanha eleitoral era, afinal, uma duvidosa habilidade retórica. Este canto de sereia terá levado muitos eleitores a depositar a cruz do seu voto na aliança de direita, permitindo-lhe desse modo a ligeira vantagem que lhe conferiu a vitória nas urnas.

    Ai Jesus, que Montenegro mentiu! Que desfaçatez, Montenegro enganou, ludibriou, foi habilidoso, quase maquiavélico... agitam-se os braços, rasgam-se as vestes, arrepelam-se cabelos em público; da esquerda à direita parlamentar todos apupam o primeiro-ministro. Como de costume, o eleitor, o Zé, o grande povo português, é poupado à reprimenda. 

    Quem orienta o voto tendo por base promessas meramente económicas recebe de troco, exactamente, aquilo que merece. Quem acredita que "tempo é dinheiro" e sabe que "não há almoços grátis", quem não é de direita nem de esquerda, é pragmático ao ponto de actuar sem conhecer, quem, enfim, anda neste mundo por interesse, não tem grande moral para se queixar quando as coisas não correspondem ao seu sonho dourado.

    Se analisarem bem o mito, o Rei Midas não passava de um imbecil ignorante.

sexta-feira, abril 12, 2024

O Jardim das Tentações

     Ver uma pintura de Bosch é como aprender o deslumbramento. Por vezes sinto uma vaga inveja dos que vivem em Madrid mas resolvo a questão com uma ida ao Museu Nacional de Arte Antiga. Graças a Deus temos ali As Tentações de Santo Antão, a pintura que, seguramente, mais tempo de reflexão me ofereceu ao longo da vida.

    Há quem diga que se trata da obra mais espectacular de Bosch mas O Jardim das Delícias não lhe fica atrás. Vi esse tríptico uma única vez durante não muitos minutos e tenho dele uma saudade imensa. Um dia terei de regressar a Madrid, a plantar-me na sala do "Jardim" durante o tempo suficiente que me permita algumas janelas de oportunidade para o olhar com sossego, sem muita gente a incomodar. Consigo fazer isso com facilidade no MNA, poderei fazê-lo no Prado?

    Nem sempre consigo mas, por vezes, tenho lampejos de lucidez que me permitem aproximar vagamente de uma linguagem "boscheana" nos meus trabalhos. Muitas pessoas estabelecem uma relação directa entre muitos dos meus desenhos e o mestre, o que me surpreende pois eu próprio não veria essa relação se não me fosse apontada. 

    Quero criar um Jardim das Tentações mas duvido da minha capacidade de concentração. Como faria Bosch para pintar os seus mostrengos? Que estranho raciocínio, que inesperadas associações, que inventividade! A vantagem é que, em caso de falência imaginativa, posso sempre copiá-lo!

segunda-feira, abril 08, 2024

Dar tempos ao tempo

     Quando imaginamos o futuro estamos a construir o passado, aquele tempo em que vivemos; este tempo. O tempo que passou.

    O tempo é como um novelo de lã, vamos puxando o fio e o novelo rebola. Custa-nos compreender, mas este fio tem um início só que não há como perceber onde começa e embora pareça inesgotável, o novelo haverá de acabar um dia.

    Não sei se o tempo acabará quando acabar a Humanidade. Não tenho a certeza da existência do tempo para lá de nós, para lá da vida humana. Quando restarem apenas baratas e ratazanas o tempo continuará a fluir? Imagino que sim, mas será um tempo diferente, um tempo rastejante. Um tempo irracional.

    Apercebo-me de que, um dia, haverá um futuro que não irá acontecer. Talvez o céu se abra para deixar passar os Cavaleiros do Apocalipse. Náááá, não estou a ver como possa acontecer tal coisa. 

    O fim da vida no nosso planeta, o fim do próprio planeta, serão acontecimentos insignificantes.

sábado, abril 06, 2024

Pode alguém ser quem não é?

     Isto de ser "português" é uma espécie de luta que não se faz; porque não vale a pena lutar-se por tão pouco? Para se ser "português" o melhor é deixar andar, deixar correr o marfim, lá mais adiante se verá, alguma há-de acontecer. Com um bocado de sorte pode ser que não me obriguem a fazer nada. 

    Agora vieram os desorbitados do hino e da bandeira, os fascistóides da extrema-direita, introduzir o conceito dos "portugueses de bem". Ora porra, querem lá ver que ser um "português de bem" implica fazer alguma coisa!? Mas parece que não, um "português de bem" é ainda mais passivo e babaca que o "português" simples, o célebre "português suave". Um "português de bem" não pensa (o chefe pensa por ele), não age (a menos que o chefe lhe solicite alguma acção) e trabalha mansamente (como trabalham os bois). Ama a pátria, o chefe e deus, acima de tudo e acima de todos. O "português de bem" fica a meio caminho entre um vegetal e uma poia.

    Depois há os que tentam diluir o "português" numa massa informe e confusa que são "os europeus". É misturar tudo numa coisa só (como se pudéssemos alguma vez partilhar um corpo social com os espanhóis!), amassar, amassar, amassar e esperar que, metida no forno e depois arrefecida sob o céu da Europa, surja uma coisa que se coma sem provocar o vómito. É pedir muito, talvez seja mesmo pedir demasiado.

segunda-feira, abril 01, 2024

Figura de urso

     Escrever sem saber qual o tema da escrita é uma acção um tanto arriscada; arrisca-se figura de urso (na melhor das hipóteses). Por isso mesmo hesito em continuar a frase que agora escrevo... registo três marteladinhas no teclado: "reticências", tento ganhar algum tempo. Nada feito.

    Sinto-me bué urso.