quinta-feira, novembro 30, 2023

A ronda das sombras

     O que fazemos na noite por lá fica. A rondar. 

    Raiando o sol tudo muda. Vão-se os fantasmas a descansar, a poesia das sombras mais densas mistura-se com o mesmo ar que tanto envolve as flores como a sucata enferrujada. Os gatos deixam de ser leopardos e as ambulâncias recuperam o seu aspecto de veículos em movimento. Ou parados, atirando luz em volta, como ondas provocadas pela queda de uma pedrinha bem no meio da piscina deserta.

    O dia regressa e as coisas que fizemos durante a noite, lavamo-las no duche com sabonete Rexina. Por exemplo. É a luz, o efeito da luz. As coisas transformam-se tanto quando lhes bate a luz! Ou quando a luz as acaricia ou as submerge ou lhes empresta cor. 

    O mundo muda tanto.

    "É como da noite pró dia" dizemos nós quando queremos mostrar um abismo, uma diferença profunda como um abismo, um alto contraste, um objecto em movimento por oposição a um horizonte fixo, os mecanismos do tempo accionados pela deslocação do objecto. Quando ele se vai resta o horizonte. Fixo, fora do tempo.

    Desce a cortina da noite. Regressa o desejo, regressa o segredo, regressam as sombras, os leopardos, todas as coisas que rondaram por ali enquanto o sol fazia o seu trabalho. É tempo de voltarem a existir.

sábado, novembro 25, 2023

Qualidades indispensáveis

     O segredo, dizem, é não sentir vergonha. Afirmar o necessário para o controle da narrativa do momento. Introduzir novos dados surpreendentes sem que o sangue inunde as faces do declarante. Ser capaz de sorrir quando se tem vontade  de morder até as pedras da calçada. Ter nos inimigos amigos e vice-versa, conseguir que tudo pareça uma única coisa: a vontade de Deus!

    Finalmente, ser Deus.

sexta-feira, novembro 24, 2023

O sentido da vida

     Cada dia cavamos mais fundo o poço do ódio, Cavamos, cavamos e voltamos a cavar, coveiros do bom senso, inimigos de nós próprios. O poço nunca nos parece demasiado profundo. Não sabemos para que serve tal buraco mas isso não impede que continuemos a cavar.

    Por vezes tenho a sensação de que o amor nos envergonha. Talvez por não ser um sentimento suficientemente macho? Será um exclusivo masculino, este de ter vergonha de proclamar alto e bom som que se ama alguém? Será mais fácil declarar amor a uma coisa? Amor ao dinheiro...

    Um dia iremos cansar-nos de cavar o tal poço mas estaremos tão fundo que regressar à superfície será igual a ser Sísifo. Um Sísifo que no lugar da pedra empurra a Humanidade poço acima para logo ela rolar poço abaixo.

    Talvez seja essa o sentido da vida.

quarta-feira, novembro 22, 2023

Porcarias

     O mundo é uma pocilga mas nós não temos de ser porcos. O sentido da vida de cada um de nós poderá ser, precisamente, a acção de manter limpo o espaço que habitamos. Estabelecer e cumprir esse objectivo é alcançar a Glória em tempo de vida. Viver cada dia de vassoura na mão a varrer porcaria e a acertar cacetadas nas trombas dos filhos-da-puta, eis uma bela forma de existir!

    Normalmente teria um certo prurido em classificar este ou aquele como sendo um filho-da-puta mas há dias em que a filha-da-putice é tão óbvia e o filho-da-puta tão evidente que o cabo da vassoura voa direitinho à dentuça do bicho. E é um prazer sentir a dentuça a estilhaçar-se, os dentes a voarem em todas as direcções, um ou outro a engasgar o pedaço de asno.

    Um gajo esforça-se por ser bonzinho mas ninguém está livre de se transformar num monstro de um momento para o outro. Já os filhos-da-puta não deixam de o ser só porque sim ou porque perderam a dentadura no caminho.

    O mundo é uma pocilga mas nós não temos de ser porcos.

segunda-feira, novembro 20, 2023

O mundo a dar as voltas do costume

     Não sei também te acontece, difuso leitor, mas, por vezes, sinto uma estranha compulsão pela leitura. Estou a ler qualquer coisinha (neste momento o "Pequeno Almoço de Campeões" de Kurt Vonnegut) e começo a sentir apelos externos, cantos de sereia desconcertantes que me levam a abeirar de prateleiras repletas de livros.

    Hoje lá me cheguei a uma prateleira da biblioteca da minha escola. Ia só verificar se tinham "A Peste", de Camus. Tinham. Dois exemplares e tudo. Foi então que ouvi um sereia a cantarolar ao longe. 

    Como na biblioteca as coisas estão arrumadinhas, ali perto espreitava na minha direcção "A Guerra das Salamandras" de Karel Capek. O nome do autor é-me familiar por ser o criador do conceito de robot ou coisa que o valha. Tendo dez minutos perdidos no tempo não resisti a folhear a coisa e ler um pedaço.

    Não tinha completado a segunda página já um bando de sereias serigaitas me enchia a mona de cânticos irresistíveis. Ai, ai, eram tantas e cantavam tão melodiosamente! Fechei o livro com a mente ainda a palpitar, passei os olhos pela sinopse e... punfas, toma lá que já almoçaste! Lá estava escarrapachado que Capek foi uma grande influência para dois ou três escritores mas só fixei o nome de um desses eventuais discípulos: Kurt Vonnegut!

    Pronto. Estava dado o laço. Nunca li Capek mas sei que, a partir de agora, me será impossível não o fazer.

domingo, novembro 19, 2023

Adversários

     Continuamos a olhar para os blocos políticos adversários daquele onde estamos incrustados como sendo inimigos. Adversário não é obrigatoriamente sinónimo de inimigo.

    As acções dos nossos adversários são vistas como manobras baixas, subreptícias, coisas próprias de cobras com duas patas, de invasores do Paraíso. Ninguém os convida para a nossa festa da Democracia. A festa é nossa, muito nossa, os outros não serão nunca capazes de interiorizar esta complexa coreografia do Bem que nos orgulha e caracteriza.

    Eles são parasitas. Nós somos virtuosos. Eles são maus, nós não somos. Adversários, sim, mas não obrigatoriamente inimigos.

segunda-feira, novembro 13, 2023

Painel central

     O título é "O Jardim das Notícias". Uma sucessão de planos daqui até à linha do horizonte, uma paisagem essencialmente urbana que vai mudando à medida que se afasta do observador. Prédios estapafúrdios, aglomerados de personagens concentradas nos telemóveis que seguram numa mão enquanto que, da outra, deixam pender objectos distraídos.

    Há jardins e animais (essencialmente porcos, abutres, crocodilos, talvez girafas) as plantas germinam vigorosas, árvores têm frutos que são cabeças de crianças. As figuras têm aspectos estranhos, algumas são híbridas, quimeras tecnológicas resultantes do cruzamento entre objectos e carne viva. Há um tom geral de uma certa jovialidade, quase boa disposição.

    Uma repórter tem um microfone erecto na zona do sexo, várias personagens vestidas com camisa e gravata aglomeram-se em volta do que parece ser uma grande cabeça e comem-lhe o cérebro à colherada. Um homem de óculos escuros olha-nos por sobre o ombro sorrindo de forma enigmática. 

    É uma paisagem com ambiente eufórico, um tanto confuso.

quarta-feira, novembro 08, 2023

Mais que fazer

     Da felicidade ao desânimo vai apenas um degrauzinho, pequenino. Fico a matutar na possibilidade de nos sentirmos desanimados e, ainda assim, sermos felizes. Penso no assunto durante 5 longos minutos e chego à conclusão de que sim, porque não? Há quem sinta felicidade no desânimo, uma doce variação do masoquismo, o que é muito diferente de se estar desanimado mas, ainda assim, feliz da vida.

    Isto começa a ficar confuso. Se calhar 5 minutos não bastam para se poder concluir o que quer que seja acerca de tão melindrosa questão. Mas, olhando para o relógio, sinto que não tenho tempo a perder com especulações feitas no espaço límbico da imaginação. Preciso de agir, realizar coisas concretas, realizá-las com os pés bem assentes no chão que é para isso que os homens andam neste mundo. E eu sou um homem, isso traz-me notórias responsabilidades.

    Como tal, amigo leitor, neste momento não sei se estou desanimado se estou infeliz, se são coisas opostas, se podem conviver no nosso peito, não sei. Tenho mais que fazer.

domingo, novembro 05, 2023

Reflictamos

     A felicidade é uma cena a dar para o esquisito. A meio caminho entre a euforia e a boa disposição, a felicidade irrompe no nosso peito quando menos se espera. Não é coisa que se explique. Resta-nos, por isso mesmo, a possibilidade de reflectirmos um pouco sobre tão agradável sensação.

    Como se manifesta a felicidade? Como a percepcionamos? Como podemos nós espalhar no mundo, nos corações alheios esta coisa boa que nos preenche o coração? Vão-se lá saber respostas aceitáveis para tão variado conjunto de vaporosas questões. Como propus no parágrafo anterior: reflictamos.

    Reflictamos, então.

sexta-feira, novembro 03, 2023

Ecos do passado

     Em conversa com um amigo recordei esta manhã duas expressões que muito ouvi na minha infância mas que o tempo se encarregou de esconder. 

    A primeira era utilizada pelo meu avô materno, o Avô Mário. Frequentemente designava por "pedaço d'asno" aqueles ou aquelas que por qualquer motivo lhe desagradavam. Que magnífico insulto! O alvo do seu desprezo era de tal ordem que nem sequer a asno completo poderia ser comparado. Apenas a um pedaço, não mais que uma pequena parte. Lindo.

    A outra expressão que veio aquecer-me a alma e recordar os tempos em que ainda usava calções por imposição e nunca por opção era muito utilizada pelo meu pai, esta normalmente aplicável em discurso directo: "vai-te encher de moscas" era o dito. Outro insulto insidioso. Quem ou o quê se enche de moscas? As cavalgaduras e os montes de merda! Logo, desejar ou mesmo ordenar a alguém que se encha de moscas corresponde a considerar que esse alguém tem algum tipo de parentesco com animais de pêlo ou com matéria fecal.

    Rimo-nos moderadamente. Penso poder afirmar que estas memórias nos proporcionaram bons momentos, a mim e ao meu amigo.