segunda-feira, julho 31, 2023

Tinham desaparecido

     Saíram da porta entrando na rua. Vinham já a matraquear os queixos. Debitavam discurso de forma sincopada, como se fosse de todo inevitável que aquelas palavras fossem ditas, precisamente; ditas daquele modo. Como se as palavras tivessem sido já escritas pela mesma mão que regista no Livro o Destino de cada um e de todas as coisas.

    Passaram por mim como se eu fosse espírito, coisa incorpórea ou invisível, como se fosse, pelo menos, tão discreto como papel amarrotado ou saco com merda de cão esquecido no passeio público. As palavras ganharam volume, máximo quando me passaram a rasar os ouvidos e foram perdendo nitidez com a distância, pela graça de Deus e das Leis da Física.

    Continuei o meu caminho pensando, como nem sempre faço. Pensei que, quando acordamos e até que pomos os penates fora de casa, o esforço matinal será imaginarmos que a nossa vida é uma coisa interessante, que faz sentido. Pensei ainda que verbalizar essa imaginação ajuda a que se aproxime de fazer sentido, fortalecendo a possibilidade de sermos pessoas cuja vida é plena. Que isso faz de nós agentes importantes no tecido social; que esse tecido abrirá um buraquinho caso estejamos ausentes.

    Voltei-me e já não vi as personagens falantes.

    Terão elas ido mudar o mundo?

sexta-feira, julho 28, 2023

Regresso ao passado

     Reli "Matadouro 5 ou A Cruzada das Crianças" de Kurt Vonnegut. Tinha comprado o livro em 1990 e, decerto, lera-o nessa altura. Reli-o mas foi como se tivesse pousado nele os olhos pela 1ª vez. Vonnegut é um autor brilhante no modo desembaraçado como expõe as suas linhas narrativas e cria personagens tão evidentemente verdadeiras. Lê-lo é pura diversão.

    Este regresso ao "Matadouro 5" deveu-se ao facto de a minha sobrinha ter oferecido ao meu irmão uma edição recente da obra e eu, por absoluta coincidência, estar a ler outro livro de Vonnegut, "Barba-Azul", que encontrara por acaso na prateleira da nossa casa em São Miguel do Outeiro. Qual a possibilidade estatística de tal coincidência?

    Pareceu-me um sinal. E eu segui-o como um rei mago a trotar no seu camelo seguindo a estrela errante que há-de travar na chegada ao presépio. Não encontrei o Deus Menino mas fartei-me de curtir na companhia de Billy Pilgrim. Assim foi.

quarta-feira, julho 26, 2023

Desprezo

     Não é nada agradável sermos enganados. Digo eu. Talvez haja quem se agrade de o ser. Ser enganado. Mas é possível que a coisa a reter para mais tarde analisar resida na forma como reagimos perante quem foi filho-da-puta o suficiente para nos enganar.

    Ninguém nos obriga a nada, nem mesmo a que tenhamos esta ou aquela atitude perante o logro com o qual fomos enlameados. A coisa escorre, simplesmente. Mas agora pensas: o meu coração responde por mim. Eu pensei. E ficas a conhecer-te um pouco melhor. Acho eu.

    O resultado, caso não sejamos otários nem pessoas violentas (muitas vezes uma coisa implica a outra e vice-versa), será o de passarmos a ignorar o animal que nos enganou.

segunda-feira, julho 24, 2023

As 3 idades

     Nascemos um bocadito engelhados mas depressa ganhamos contornos adoráveis: somos bebés. Depois o tempo vai passando. Com alguma sorte iremos ouvir muitas vezes pessoas que dizem como somos lindos e nos pedem que desempenhemos habilidades parvas. Todos se rirão com uma expressão meio imbecil afivelada nas beiças. 

    Com algum azar viveremos uma existência da qual o amor irá estar ausente e ninguém se rirá perto de nós. Os rostos à nossa volta serão pálidos de raiva com expressões de uma severidade absurda. Vamos crescer receosos, desconfiados e ainda mais manhosos que raposas piolhosas.

    Voltando aos adoráveis bebés que poderemos ser, redondinhos, fôfos, macios como sumaúma - oh, o mundo rende-se à nossa irresistível presença. Depois vamos crescendo e o nosso verdadeiro eu vai-se revelando, aquilo que somos ganha contornos mais precisos nas nossas feições. O naríz estica-se, o queixo alarga, desponta uma barba hesitante que irá tornar-se rija como lixa para desbastar ferrugem. O sonho de ser bebé transforma-se na realidade de ser adulto.

    Mais adiante, se tivermos a sorte de viver o tempo suficiente, poderemos contemplar a essência do Ser Humano que sempre transportámos dentro de nós: é a velhice. Sim, aquela coisa aparentemente decrépita e à beira da morte, és tu. Sempre foste. Não há problema, se tiveres coragem irás descobrir a beleza verdadeira.

    Assim foi.

domingo, julho 23, 2023

Censura

     Na Constituição do Estado Novo constava algures que: "Leis especiais regularão o exercício da liberdade de pensamento" - note-se que a ambição do censor vai além da limitação da liberdade de expressão, ele quer entrar na mente de cada um de nós regulando aquilo que somos capazes de pensar.

    Não consigo decidir se tal ambição é fruto da maldade se da estupidez mas consigo perceber que é uma ambição impossível de satisfazer. Essa impossibilidade gera no censor a percepção da sua impotência, da sua pequenez perante o intelecto: daí só poderá nascer o instinto violento do animal predatório. Isso potencia o impulso assassino e o censor assume a forma monstruosa do bicho que mata por matar, que pretende apenas extinguir aquilo que lhe parece indesejável.

    É isto que sinto no propósito dos extremismos moralistas. A atitude censória só tem para oferecer ao mundo infelicidade, desconforto e, no limite, a morte.

sexta-feira, julho 21, 2023

Encalhando

     E assim andamos quase todos: meio afundados nos écrãs dos nossos telemóveis, encalhados entre este mundo e um outro.

    Quando recordamos os que já morreram, vivem eles mais um bocadinho? Dois, três minutos, uma horinha? E quando os encontramos em sonhos, em que mundo nos movemos então? Esta coisa não me preocupa apenas me faz pensar.

    Há problemas que não têm, sequer, equação.

sábado, julho 15, 2023

Deus me perdoe

   

São a mais nítida ilustração do significado da palavra... da palavra? Do conceito! As Jornadas Mundiais da Juventude, a romperem Lisboa adentro não tarda, são, provavelmente, a mais nítida ilustração do conceito de "hipocrisia" de que há memória e, por arrastamento, um retrato bem focado da igreja católica em Portugal.

 

            Dos gastos pornográficos com a organização da coisa ao modo desapiedado como são tratados os maltrapilhos da cidade, temos plasmado todo um programa social da igreja que se arrasta há séculos, meio velado por obras caridosas, e se vai mantendo ao arrepio da vontade do Papa actual. Como pode Francisco pregar o elogio da pobreza, a empatia para com as minorias e os deserdados da sociedade e subir ao palco do Trancão? Como pode Moedas bater no peitinho na missa de Domingo e limpar a cidade de mendigos à segunda feira? Tudo isto me parece de uma imensa hipocrisia, a igreja católica no seu melhor (que é também o seu pior). 

 

           Outros episódios pouco edificantes poderia analisar (o Memorial às vítimas de padres pedófilos, uma ideia piedosa que afinal não é boa ideia, ou o investimento de dinheiro público num acontecimento privado) mas não sou pessoa de bater em ceguinhos. Deus me perdoe.

 

    carta enviada ao director do Público

quarta-feira, julho 12, 2023

A beleza da morte

     Hoje faleceu Milan Kundera.

    Impressiona-me a rapidez com que os meios de comunicação fazem o elogio fúnebre dos defuntos célebres. Ainda a alma não disparou em direcção ao céu e já os ecos da morte se misturam nos da vida, foram recolhidos testemunhos dos que privaram com o cadáver quando tinha dentro o sopro da vida, encontraram-se familiares que choram, amigos que suspiram, é espectacular! Tem de haver ali segredo.

    Pensando bem, nos tempos que correm, tempos de chatgpt, a coisa fica ainda mais aerodinâmica. Temos a possibilidade de pedir a uma máquina que nos recorde o valor e a grandeza da vida de pessoas especiais. E a máquina não se acanha. No seu estilo limpo (o correspondente escrito a uma voz de atendedor automático) a máquina explica-nos com rigor e transparência o que é ser-se humano e ter valor.

    Em tempo record.


sábado, julho 08, 2023

Sabedoria

     À interpretação do objecto artístico ajuda muito aquilo que sabemos mais o que vamos sabendo. A maior ajuda que nos pode dar a sabedoria é provocar-nos a imaginação, que mais não é que um certo tipo de conhecimento, meio selvagem, um animal que vive connosco mas difícil de domesticar. A sabedoria vive dentro de nós só que se esconde em grutas que ainda desconhecemos.

    A obra de arte esconde dentro dela muitos segredos que são nossos.

    Até ao dia.

segunda-feira, julho 03, 2023

Ser ou não ser: pedante

     Ouvir falar de assuntos que nos são familiares quando estamos integrados num grupo constituído maioritariamente por pessoas que não têm particular interesse nas matérias em análise pode tornar-nos um pouco pedantes. O grau e o nível de complexidade do discurso parece-nos abaixo de básico, reprimimos com dificuldade uma certa vontade de exibir o nosso conhecimento.  Ah, campeões!

    Escrevo este texto na primeira pessoa do plural, tento não ficar isolado no meu hipotético (e provável) pretensiosismo. Experimento arrastar-te para o pântano (limpinho) do meu ego, não quero parecer demasiado malvado. A verdade é que a coisa pode mesmo tornar-se penosa. É tão triste!

    Ser obrigado a frequentar acções de formação de professores é uma violência. Das poucas que não consigo evitar. Sinto-me demasiadas vezes perdido na mediocridade generalizada (da qual faço parte integrante). Não há como fugir-lhes. Há um leve bedum a falsa erudição, uma certa vertigem decadente que fazem destas coisas massas gordas e informes. Coisas vulgares, tão vulgares que a vulgaridade surge maravilha exótica.

    Sinto-me triste.