quarta-feira, maio 31, 2023

Pesadelo

     "É o bicho, é o bicho, vai-te devorar..." como cantava um certo cantor (qual o seu nome?) num tema que teve grande êxito e punha muita gente aos pulinhos. O bicho não esmoreceu (ele nunca vai esmorecer) e continua por aí, a cheirar, a lamber o beiço, a arreganhar a tacha, olhinho luzidio, contente por partilhar contigo este mundo no qual interpretas o papel de idiota gorducho pronto a ser papado. O bicho nem precisa ter fome, bastam-lhe os dentes.

    E se a maioria dos cidadãos for fascista por instinto e vocação? E se andares por aí a proclamar justiça e humanidade aos vizinhos estando eles simplesmente a cagar-se no que dizes, no que és e representas? Já pensaste nessa possibilidade? Eu penso nisso. Cada vez mais.

    Se os fascistas vierem a ocupar as cadeiras do poder estou feito ao bife mas não será isso que me transformará em pateta alegre. Só espero que a raiva (ou será coragem) que hoje me enche o peito perante uma besta fascista não se esvazie caso a besta se transforme em governante.

domingo, maio 28, 2023

Pequenas mentiras dominicais

     Tenho, por vezes, a sensação de que a presunção me poderia matar, tão forte a sinto no meu peito. Logo de seguida penso: "não é presunção tua mas do outro, tomas por presunção a tua percepção da mania de grandeza que emana daquele que discursa perante ti". Fico angustiado por não ser capaz de perceber o que realmente se passa comigo e com os outros, que relação posso estabelecer entre o que sinto, o que sei e o que acontece lá fora, ao redor do meu corpo.

    Mas afinal o que quero eu? Aspiro à santidade? Alguém consegue ser (absolutamente) imparcial na avaliação que faz de si próprio e do mundo circundante? Apercebo-me do modo como a ignorância me tem atrapalhado a existência, o modo como distorce, amplia e reduz as minhas ambições até esfrangalhar por completo a mais ténue possibilidade de percepção que possa ter de mim, do outro, do mundo.

    Poderá este texto assemelhar-se a um confuso lamento. Não creio que o seja. Faz-me lembrar vagamente os tempos em que ia à missa e, não tendo tomates para me confessar ao padre, aproveitava a homilia para imaginar conversas íntimas com Nosso Senhor. A coisa proporcionava-me momentos de imensa paz, dava-me conforto. Não é que tenha saudades desse tempo... talvez minta.

terça-feira, maio 23, 2023

Público, 22 de Maio de 2023

Público, 22 de Maio de 2023

Leio (página 2): “Imigrantes em Lisboa e Porto: um quarto para cinco, por mil euros” e penso “é o Mercado a auto-regular-se”. Não tenhamos ilusões, o Mercado é um bicho esfomeado, a sua auto-regulação consiste em satisfazer a gula que é a sua razão de existir. Bem podem contorcer-se os chamados “liberais”, bater no peito reclamando que há bons e maus nesta história (os que batem no peito querem acreditar que são bons). Haverá bons e maus mas, como no Gólgota, uns e outros não passam de ladrões.

Mais adiante (página 9) o texto de Ricardo Arroja, “A ciência sombria” deixa-me a impressão de que a Economia é uma ciência capaz de proporcionar previsões credíveis desde que não haja “quebras de estrutura nos dados” e fico com a desagradável sensação de que Economia e Mercado são vírus produzidos no mesmo laboratório gerido por um qualquer génio maligno, daqueles que pululam nos livros de BD, cujo único sonho é a dominação do mundo.

Por fim (página 20) “Guterres fala em fracasso moral dos países ricos e pede reformas”. Qual herói com pequeníssimos poderes, o secretário-geral das Nações Unidas faz a sua habitual pregação no deserto. Os ricos não têm ouvidos; bem podes bradar, ó Guterres!

Haverá excepções entre ricos, economistas e liberais adoradores do Mercado mas as suas vozes, abafadas na multidão dos seus pares, nunca chegarão aos céus.

 Carta enviada ao director do jornal Público

 

segunda-feira, maio 22, 2023

À flor da pele

     Não sei se podemos chegar a considerar um mistério esta necessidade avassaladora que temos de encontrar dentro de nós algo de especial, qualquer coisa que nos distinga da manada, que faça de nós um bicho diferente dos outros embora de semelhante aparência. Raramente nos basta ser quem somos; raramente matutamos sobre o que realmente somos: animais.

    Quando por vezes alguém nos chama a atenção para essa nossa condição indiscutível procuramos espelhos por nós cuidadosamente escolhidos e mostramos o nosso reflexo neles. Desde a Bíblia, que prova que fomos criados por Deus e somos diferentes da restante bicharada, até aos manuais escolares que nos explicam que somos animais sim, mas animais racionais, os únicos que pensam, que se sonham e se questionam, arranjamos um sem número de artefactos por nós construídos que provam a quem quiser ver  a nossa excepcionalidade. Somos especiais, é o mínimo que podemos pensar.

    Quando olhamos um cão bem dentro dos seus olhos, ou um gato, ou mesmo um pequeno pardal saltitante, há qualquer coisa que assoma dentro da nossa alma, se por acaso a tivermos. Há qualquer coisa que faz vacilar a nossa certeza, qualquer coisa que nos traz o coração à flor da pele e ficamos a pensar: que maravilhosa expressão esta, "à flor da pele"! E damos por nós a imaginar como dirá o cão aquilo que o comove, como explicará o gato que coisas maravilhosas viu ao longo das suas sete vidas, o que pensará o pardal na hora de ir finalmente descansar.

    Se Deus existe não somos nada mais que bichos entre a bicharada, todos nós com o coração ao pé da boca e a sensibilidade à flor da pele.

quarta-feira, maio 17, 2023

Dos objectos

     Possuímos tantas pequenas coisas que nos são imprescindíveis no dia-a-dia que mais parecemos baús de viajantes desajeitados. Antes de pormos um pé fora de casa convém verificar se levamos connosco essa miríade de coisinhas: o telemóvel, a chave de casa, a chave do carro, a carteira, os cartõezinhos, o isqueiro, o maço de cigarros e mais que de momento não me estou a lembrar.

    Esquecer algum destes objectos pode fazer-nos sentir um agonia violenta ao ponto de voltarmos atrás para o recolher. Perder um deles pode revelar-se uma tragédia à moda dos gregos. Tecemos estranhas relações com coisinhas exteriores a nós que são aparentemente insignificantes, como se fossem pintos de uma enorme galinha cujo papel estamos sempre prontos a representar. 

    Fazemos disto um modo de vida, isto de andar a chocar objectos para depois os transportarmos e conduzirmos através das agruras deste mundo. Um dos problemas desta situação prende-se com a ausência de vida verdadeira nos nossos filhinhos queridos. De vez em quando um deles resolve esconder-se e, por mais que o procuremos, por mais que viremos tudo de pernas para o ar, o diabrete não se mostra nem revela deixando-nos meio loucos de angústia e raiva.

    Dizem que é a malícia dos objectos mas talvez tudo isto seja apenas uma expressão complexa da nossa infinita estupidez.


sábado, maio 13, 2023

Ser quase nada

     Não sei se também te acontece, não sei se, por vezes, tens aquela incómoda sensação de que pouco mais és que o teu número de contribuinte (o célebre NIF), que a tua identidade é mais fiscal do que humana. Sabes bem que, mesmo depois de morto e enterrado, os que por cá ficarem e sejam ecos do que foste, vão continuar a debitar aquele número que te identifica, como se o tivesses tatuado na alma e ele continue por aí, a pairar como se fosse um fantasma, o que resta de ti.

    Não sei se também te acontece tremer um bocadinho quando pensas que além do NIF tens o número da Segurança Social, o do Sistema de Saúde, o da Carta de Condução, o do telefone, o da porta de casa e do Código Postal... e o teu nome? A tua pessoa? Há alguém dentro de ti?

    Não sei se também te acontece mas eu, tem dias que penso que sou uma ficção na cabeça de alguém que tem a paranóia dos números e por vezes sonho um pesadelo em que esse alguém muda de registo (transforma-se em poeta) e eu fico reduzido a quase nada. Ás vezes sonho este pesadelo em que não sou nada apesar de saber que sou alguém. E transpiro como se tivesse rios inteiros dentro das veias.

sexta-feira, maio 12, 2023

Ser artificial

     É a Inteligência Artificial, IA para os amigos. E para os inimigos.

    Dizem que anda por aí, que vai ser a nossa madrasta, a nossa carcereira, há até quem diga que a IA vai ser a nossa assassina ou a nossa médica assistente neste processo de auto-destruição que encetámos vai pra muito, muito tempo. É a eutanásia global a ganhar contornos definitivos.

    Pessoalmente não lhe tenho ligado muito mas isso não me imuniza em relação aos seus efeitos, sejam de curta ou longa duração. Para ser sincero penso que não precisamos da IA para assinarmos a nossa sentença de morte: bastamo-nos bem uns aos outros.

terça-feira, maio 09, 2023

Riso e siso (e riso)

     "Muito riso, pouco siso", pois sim, já me tinhas dito. Rir é das coisas mais fixes que me lembro de ter feito em toda a minha vida. Quando o riso é sincero e me abana as fundações do esqueleto é como se a Felicidade ganhasse forma e consistência: a consistência de uma gargalhada incontrolável. É tão bom!

    Depois temos a versão "gargalhada forçada". 

    A gargalhada forçada não tem nada a ver com aquela outra, que referi logo a abrir ou, pelo menos, tem muito pouco a ver; é familiar afastada, é o que é! Uma prima em 3º grau a dar-se ares de putéfia mas que, na verdade, é apenas uma prima incompreendida por emitir sinais dúbios, sinais confusos, enfim, todos corremos o risco de sermos mal interpretados. A gargalhada forçada corre muitos riscos de interpretação.

    Se pensarmos um pouco compreendemos que a gargalhada forçada pode ter diferentes origens e outros tantos destinos. Pode vir da necessidade de mostrarmos cumplicidade com o outro e dirigir-se ao ego alheio; pode ser uma demonstração de compreensão de algo que não compreendemos lá muito bem e ir direitinha para o canal que sintoniza o desprezo no nosso interlocutor; pode ser muito simplesmente uma proverbial expressão de boçalidade... a gargalhada forçada pode ser tantas coisas que nem ela sabe o que na realidade significa (até porque, sendo forçada, não pode reclamar grande coisa em termos de "realidade"... ou pode?)

    Termino aqui esta breve reflexão pois que me está a deixar um pouco macambúzio, um nada meditabundo, pensar tanto em gargalhadas não está a ser nada divertido.

domingo, maio 07, 2023

Coisa suspeita

     Hoje acordei bem disposto mas a coisa passou depressa. Regressei ao lugar um pouco incómodo, um pouco sombrio, ainda assim agradavelmente fresco, onde venho parar quando não me porto mal. Não há nada de errado, pelo menos nada que se note, mas a boa disposição dura muito pouco tempo. 

    Não é que se transforme em terror ou desespero, nada disso! Longe disso. Nem sequer posso suspeitar que alguma depressão possa vir a instalar-se no céu por cima desta minha cabeça. É apenas este leve sopro, esta pálida maçã, aquele vulto difuso, uma certa ausência de vontade. É este não-sei-quê que me incomoda por não ser capaz de compreendê-lo.

    Mas, assim à primeira vista, não parece coisa capaz de me deitar na cama.

sexta-feira, maio 05, 2023

Fado velho

 

Toda a gente fala da trapalhada. Olha o Costa! Olha o Marcelo! E o Galamba? Andou tudo a adivinhar a atitude do Costa, a resposta do Marcelo, o castigo do Galamba. Agora é tudo a tentar adivinhar as intenções do Costa e as habilidades do Marcelo; o Galamba, esse, vai perdendo consistência física até ficar reduzido à pejorativa expressão: “galambada”.

Pessoalmente preocupa-me que seja necessário recorrer a gente do calibre de um Galamba quando se pretende formal um elenco ministerial. Poderia referir uma infindável galeria de personagens mais ou menos horrorosas que já desempenharam cargos de relevo nos governos da nação mas queria apenas realçar esse aspecto; não há gente melhor para sentar nas cadeiras ministeriais? Já nem digo gente mais qualificada, apenas alguém mais honesto ou, pelo menos, alguém que não mentisse descaradamente.

Depois penso: nas próximas eleições tudo vai mudar. Mas olho para as fotos nos jornais e vejo um Hugo Soares em bicos dos pés atrás do ombro de Luís Montenegro, vejo Ventura com aquela nuvem de personagens confusas de aspecto malévolo que o emolduram sempre que vem jurar amor a Deus, à Pátria e a não sei mais quê, vejo gente que vocifera e cospe perdigotos em todas as direcções, vejo pessoas nas quais acredito mas não têm a força dos votos e penso “ai o Costa” e suspiro “ai o Marcelo”. É o velho fado português. Folheio o jornal e vejo Trump, vejo Putin, vejo Biden, Zelensky, Meloni, Lagarde, Xi, Bibi, e penso: estamos f******!

 Carta enviada ao Director do jornal Público