sábado, abril 29, 2023

Nas ruas da zumbisfera

     Sim, eu compreendo, ler umas palavras escritas por um gajo qualquer num blogue perdido na confusão florestal da Internet é algo quase estranho. Cada dia que passa a nossa atenção é mais e mais solicitada de diversas formas; com maior ou menor agressividade, de forma mais melodiosa ou imposta por voz autoritária, a requisição dos nossos amores é feita pela publicidade, pela informação jornalística (24 horas-dia, 7 dias da semana), pelos vendedores de felicidade, pelas sereias, pelos vigaristas, pelos profetas, pelas plataformas digitais, tik-tok, tik-tok, o relógio substituído, pelos políticos de todas as formas e feitios... textos e imagens, sobretudo imagens, imagens em movimento, submergem a alma do confuso cidadão que esbraceja sem saber muito bem se é a maré que o puxa, se é ele quem a empurra para a costa.

    E, dás por ti, ainda lês estas palavras. És um dos 7 ou 8 que o fazem com alguma regularidade. Estás neste recanto escondido de um beco sem saída na Cidade da Informação e pensas... não faço a mínima ideia do que estás a pensar mas, imagino, gosto de te "ver" por aqui, seja qual for a razão que te trouxe até este lugar. 

    Apesar de tudo, tenho a ilusão de quebrar um pouco o isolamento escrevendo nestas 100 Cabeças, insistindo em arrastar os meus passos pelas ruas desertas da zumbisfera. Até mais logo.

quinta-feira, abril 27, 2023

Fome de mais tempo

     O tempo encurta-se, cada dia mais curto, cada dia mais fechado, é uma caixinha com forma de ampulheta. O tempo muda de forma, ora ganha ora perde um aspecto que anteontem não tinha ainda. É um tempo de narrativas curtas, vidas inteiras metidas num clip, num anúncio publicitário, numa canção da moda, três minutos top. O tempo encolhe, as histórias são historinhas e os heróis... o que é isso?

    O passado continua moribundo, espeto-lhe um garfo, corto-lhe um bom pedaço. Chamo-lhe nomes mas ele, digno (afinal é o passado!), ele não responde à provocação. A caixinha cai no chão e despedaça-se. Tempo espalhado, varrido, tempo na pá do lixo, tempo a jazer no caixote. Mastigo o pedaço.

    Acabaram-se as epopeias.

segunda-feira, abril 24, 2023

Uma grande aventura

     Nem Paraíso, nem Nirvana, nem o caraças! Muito me alegraria caso conseguisse manter a compostura durante os anos que me restam nesta vida que, imagino, seja a única que tenho e que, uma vez acabada: adeuzinho pessoal, até nunca mais!

    Penso que esta sensação de finitude absoluta não complica demasiado aquilo que se me vai formando na mona. Pelo menos por enquanto. Já ouvi falar de ateus empedernidos que se convertem à última da hora, não vá o Diabo tecê-las. Será que, chegado o derradeiro minuto, a morte nos abre nos olhos uma perspectiva qualquer sobre um outro universo? "Ah, bom, sendo assim..." pensa o ateu com um pé cá e outro no lado de lá,"... sendo assim acredito em Ti.", mesmo sem imaginar o que quer que seja que ordena o andamento destas coisas.

    Estou, portanto, a ponderar várias possibilidades de nem sei o quê. Imagino que a vida seja exactamente assim, uma aventura imprevisível mesmo até ao último suspiro.

quinta-feira, abril 20, 2023

Pode ser que me entendas

     É deixar correr a coisa, que se lixe. Ser lindinho e sorrir como se tivesse caca na boca? Fingir ser o que se não sente? Para quê, para que serve tal coisa? Ser uma treta e lucrar com isso ou não ser nada e ficar como estamos? É deixar correr a coisa e depois logo se vê.

    Fazer planos, forçar os acontecimentos de modo a que as coisas se ajustem ao que imaginámos? Que seca, que angústia. Quem pode desejar viver assim, a torcer as vidas de outras pessoas? É deixar correr as coisas, pode ser que a felicidade aconteça. A felicidade rompe-nos o peito quando menos se espera. 

    Viver sem ambições maiores do que aquelas que nos cabem na vida que vivemos. Pois, também me parece, esta frase parece uma coisa e, vai na volta, não quer dizer absolutamente nada. Seja como for, pode ser que me entendas.

quarta-feira, abril 19, 2023

Anseio

     Como influenciar o delírio do quotidiano? Como fazer parte do todo produzindo algo relevante? Como não ser invisível nem inconsistente? Como ser alguém neste mundo confuso e hiper-mediatizado? Ora porra, por que carga de água poderemos nós ser assaltados por questões como as que acima ficam e fazer das suas respostas algo semelhante a um objectivo de vida? Não nos basta respirar e existir?

    É difícil compreender onde acaba a mera vaidade humana e onde começa o espírito altruísta, onde cessa a selfie e começa o olhar alheio. É complicado separar o acto de ver da sensação de ser visto. 

    Gostava de acreditar que me comporto de forma desinteressada, que o que os outros pensam não influencia a direcção que decido tomar, gostava de acreditar que sou uma espécie de herói que respeita um certo conjunto de valores que gosto de apregoar. Gostava de acreditar em tudo isto... mas não sou capaz.

terça-feira, abril 18, 2023

Frustrações

     Não devo nada ao mundo real mas nunca viverei tempo suficiente para saldar a minha dívida com mundos que não existem. A cada dia que passa sinto o meu corpo a pedir com maior veemência que me deixe de merdas; a pedir que me deixe ir, que desligue, que seja de sonho ou, pelo menos, que me deixe ser imaginado. A vontade de compreender o mundo a que chamamos real não encontra correspondência na minha capacidade de o fazer. Fico frustrado.

    A frustração é como uma pequena pessoa impertinente, inconveniente como um canito mimado que ladra a tudo o que passa e não deixa ninguém sossegado. Preferia deixar-me andar à boleia na barca de Caronte, acompanhá-lo de um lado para o outro levando corpos, cobrando óbulos, conversando com as almas hesitantes. Mas não posso pertencer simultaneamente a dois mundos que mal se tocam. É frustrante.

    Concluo que a vida me obriga a ferrar um calote valente, a não ter como pagar esta dívida difusa que apenas sei que vai crescendo. O que me vale é que o Sonho não cobra quando estou acordado e dos pesadelos resta o suor matinal: está pago? O que me vale é que o Absurdo se vai contentando com as coisas que desenho, que escrevo e com tudo aquilo que me passa pela cabeça e esqueço quase de imediato. 

    Na verdade (seja isso o que for), contas feitas, só posso dizer, como terá dito Picabia: não compreendes o que digo? Pois bem, eu compreendo ainda menos.

quarta-feira, abril 12, 2023

Leveza

     O Passado é uma coisa estranha. Ora parece pesar na memória, ora parece aliviá-la. Vem como se fosse feito de ondas parecidas com as que vivem no mar. A estranheza da coisa é que o Passado não provoca desconforto nem conforta por aí além, está ali, está aqui, sabemos que continuará a crescer atrás de nós irmanado no Futuro, um e outro sendo coisas que não sabemos bem o que são.

    O coração confunde-se-me com a alma, misturam-se-me no cérebro, somos todos uma coisa só que se agarra ao corpo, somos todos eu. E somos feitos de Passado e de Futuro, andamos por aqui a viver aquilo que o mundo nos oferece e o que somos capazes de oferecer ao mundo. Sinto uma espécie de paz que até aqui desconhecia. Pareço mais leve.

sábado, abril 01, 2023

Se calhar

     André Ventura tem um discurso abjecto, cavalga a xenofobia como se fosse a Virgem Maria em direcção ao Egipto montada no seu burrico, debita palavras vazias, é uma espécie de fascista mal encapotado, etc. A complacência do PS, a indefinição do PSD, as acções do PS,  a fome do PSD, a inépcia do CDS, etc. Leio o Público e são várias as tentativas de explicação para a ascensão da extrema-direita no nosso país. A maioria dos comentadores aponta para a tibieza do sistema e dos políticos. Fico a pensar: então e os cidadãos que se deixam seduzir por um discurso tão notoriamente abjecto, que aplaudem e aceitam a xenofobia, que não se incomodam (antes pelo contrário) com o voto depositado na boca de um fascista? São vítimas inocentes das malfeitorias da classe política? São pessoas de bem tão desiludidas que se transformam em... em quê? 

    Se calhar o tal racismo larvar de que para aí se fala é mais real do que estamos dispostos a aceitar. Se calhar o falhanço do sistema educativo vem de muito mais longe do que pensamos. Se calhar as pessoas não se incomodam tanto com a mentira como afirmam quando estão na casa de Deus a bater no peito. Se calhar há mais fascistas entre as pessoas de bem do que seria salutar para o nosso futuro colectivo.