sexta-feira, março 31, 2023

Fazer sentido

     Muito se martela a questão: andam por aí novos censores a cortar a torto e a direito em obras de arte com valor cultural mais do que devidamente caucionado. É a barbárie que regressa no seu melhor fato domingueiro e sorrisinho alarve afivelado. Um dos últimos exemplos é o alarido provocado por uma exibição despudorada do David a uma turma de criançolas lá para o meio dos USA. Os pais (se não católicos pelo menos cristãos de uma seita qualquer) ficaram aos gritos de "aijesusdeusnosvalha" que isto é pornografia.

    Não fosse o despedimento da directora da escola e a coisa seria mero acrescento ao extenso anedotário da cretinice universal. O que passará nas cabeçorras dos pais das pobres crianças, agora traumatizadas pelo vislumbre do corpo desnudo do David? Como pode alguém ser tão burro ou, pelo menos, tão ignorante? Pensando melhor até que faz sentido. Afinal de contas são americanos daqueles que se empanturram com gordura e passam demasiado tempo a olhar por sobre o ombro tentando perceber se Deus estará por ali, vigilante e bisbilhoteiro, a micá-los com vontade de os castigar ao menor sinal de pecado. Provavelmente são americanos daqueles que consideram a mentira um pecado capital e depois votam em Trump e olham para ele como se fosse um instrumento do tal Deus sobre a Terra. Faz sentido.

terça-feira, março 28, 2023

Macacôa olé!

     É a célebre "macacôa". Estou com a macacôa. Sinto-me alquebrado, doem-me os pés, apetece-me ser um calhau posto à sombra num pinhal. Se pudesse obliterar o cérebro não hesitaria.

    Resolvi googlar a palavra sem grandes esperanças de receber algo de volta mas..., eis senão quando, sou informado que macacôa é "popular - doença de pouca gravidade; indisposição; achaque". Umas vezes com acento circunflexo, outras vezes sem, a palavra aparece em todos os dicionários online sendo que a Infopédia é o lugar que fornece mais e mais variada informação sobre a macacôa, chegando mesmo a sugerir que a palavra terá origem na sua hermana espanhola "macacoa" (esta sim, sem acento) que significa, na hermosa língua de Cervantes, "tristeza ou melancolia".

    Não me sinto doentinho, nem posso afirmar que sinta o que quer que seja que deixe adivinhar alguma indisposição ou achaque. Ainda bem que a Infopédia trazia aquele rematezinho elegante com voltinha em curva de ida e volta pelo lado de lá da raia. Concluo que a minha macacôa é mais espanhola que portuguesa. 

    Olé!

sábado, março 25, 2023

Ironia macabra

     Li no jornal uma espécie de notícia que informa que a "ONU denuncia execuções sumárias de prisioneiros russos e ucranianos". O texto desenrola-se citando situações um tanto abstractas das quais ressaltam números aproximados. De prisioneiros mortos ou torturados, de civis trucidados, queimados, explodidos e, a rematar, refere 133 casos de violência sexual. É um texto que não vem assinado (por lapso?). Seco, despersonalizado, agreste, o texto lê-se penosamente. Talvez seja um bom retrato do que é a guerra para quem a acompanha ao minuto via CNN de rabinho no sofá, um espaço de violência virtual habitado por fantasmas exaustos e andrajosos.

    Houve um pequeno parágrafo que me chamou a atenção: "O relatório constata que, embora o abuso de prisioneiros de guerra ocorresse em ambos os lados, os prisioneiros russos "foram mais bem tratados", sendo que a violência era mais comum contra ucranianos."

    Sublinho o "foram mais bem tratados", entre aspas, uma manifestação de desejo ligeiramente ardente de que os criminosos que apoiamos sejam um pouco mais humanos que os outros criminosos, que supostamente odiamos ou, pelo menos, desprezamos. Pergunto-me: odiamos e desprezamos esses tipos por serem criminosos?

quinta-feira, março 23, 2023

O sentido das coisas

     Pensar nas coisas tentando encontrar-lhes um sentido é uma tarefa de complexidade variável. O grau de complexidade pode ser desconcertante pois que uma questão aparentemente simples poderá revelar-se demasiado difícil e o contrário também pode acontecer. Estamos, portanto, num eventual estado de eterna estupidificação perante as coisas que constituem o Mundo (Mundo entendido como a soma das coisas físicas com as metafísicas).

    Pronto, bastou o parágrafo anterior para me ter metido numa embrulhada da pior espécie. Encontrar um sentido seja para o que for, parece obrigar-nos a um intrincado exercício dialético que nos conduz sempre em direcção a um ponto limite ou uma linha de fronteira. No extremo de uma reflexão sincera não deparamos nunca com um muro, antes vamos encontrar-nos na orla de uma densa floresta. Podemos voltar para trás, acampar no local ou pegar na catana da Razão e insistir, prosseguindo caminho.

    Acontece por vezes, termos um vislumbre de algo que nos parece uma resposta. Podemos mesmo encontrar uma forma perceptível no meio da floresta. Mas serão fugidios momentos de felicidade, sensações passageiras de plenitude. 

    Estou em crer que cada vez que algo faz sentido apenas acrescenta maior necessidade de reflexão para que possamos continuar a tentar compreender o mundo que nos rodeia. Ou seja, cada resposta encontrada apenas amplia o campo das questões a colocar seguidamente. Quanto mais penetramos a floresta mais densa ela se torna, embora nos ofereça, aqui e ali, uma nova clareira onde poderemos acampar e ficar. Mas, há alguém que resista à tentação de continuar a desbravar?

(estou a entrar no capítulo final de O Princípio de Tudo)

segunda-feira, março 20, 2023

Águas mornas

     

    A conversa não é fácil nem sequer muito clara. Discute-se uma eventual diluição da fronteira entre territórios políticos, uma terra de ninguém entre "esquerda" e "direita". Para João Miguel Tavares será uma espécie de "terra prometida" que o Deus do Bom Senso reservou aos liberais, o povo eleito. É aí que se vai construindo o discurso equilibrado merecedor de constituir o evangelho socioeconómico que nos levará à redenção enquanto projecto de sociedade. Apesar de normalmente tomar banho com água muito quente até posso concordar com parte substancial do discurso de JMT.

    O problema é quando a nossa reflexão é feita em abstracto, principalmente se formos pessoas com uma vida razoavelmente confortável que, apesar da inflacção e dos salários baixos, ainda conseguimos pagar as contas e ter dinheiro de sobra ao fim do mês para comprar um livro ou ir a uma sala de teatro. É que há uma multidão que não se pode dar a estes "luxos”. São os tais deserdados que nunca tiveram herança que não fosse fome e miséria. São os tais que, apesar de trabalharem, não conseguem ganhar dinheiro suficiente para pagar a renda de casa e poder comer decentemente uma vez por outra. E o tempo é curto.

    A morte de Rui Nabeiro veio lembrar a todos nós que a solução se encontra na redistribuição da riqueza. Não há que abominar o capitalismo. Há que abominar os abutres, as sanguessugas e os vampiros que se aproveitam da nossa incapacidade para encontrarmos o tal lugar sem fronteiras onde todos seremos (mais ou menos) felizes.

   carta enviada ao Director do jornal Público

domingo, março 19, 2023

17 horas

     Apercebeu-se de que nunca mais haveria aquela pessoa do outro lado da chamada telefónica. Tudo porque passavam as 17 horas no mostradorzeco do telemóvel. Sentiu um aperto na garganta que desceu ao peito, um desconforto, uma ausência. As lágrimas voltaram. Nos últimos dias as lágrimas iam e vinham como se fossem um mar. Foi então que constatou o facto de não ter visto o corpo. Um calor inesperado ruborizou-lhe o rosto. Poupara-se ao cadáver?

    Reflectiu sobre a questão. Quem poupara ele ou o que poupara? No deve e haver dos afectos nunca houvera qualquer tipo de poupança. Concluiu que não poupara nada, pelo menos conscientemente, não houvera poupança. Apenas entrega, amor e, agora, instalava-se a saudade. Todos os dias, quando as 17 horas passearem em direcção ao fim da tarde. Para sempre.

domingo, março 12, 2023

Oxalá

     Pergunto-me se a crueldade nasce do ponto máximo da capacidade humana em suportar a dor e a angústia, aquele momento extremo em que alguém pensa: "que se foda!" e a partir do qual tudo perde o sentido e tudo passa a ser possível. Deixa de haver amor, deixa de haver ódio, tudo se transforma em indiferença paranóica.

    A pessoa cruel não terá de ser necessariamente monstruosa, muito provavelmente será triste e angustiada: tristeza e angústia, instrumentos terríveis das forças obscuras que teimam em manter viva a nossa crença na existência do Inferno. 

    A crueldade é uma doença do espírito? Para que isso fosse verdadeiro a nossa condição natural teria de ser a da bondade. Oxalá.

sexta-feira, março 10, 2023

TINA

     Não há volta a dar-lhe, dizem que vivemos sob o patrocínio da TINA (a tal que diz "there's no alternative) mas, está na cara, é uma conversa da treta. Alternativa há sempre, o problema consiste em percepcioná-la e, mais complicado ainda, conseguir criar sinergias capazes de pôr a coisa em marcha. 

    O nosso modo de vida fomenta a fragmentação do grupo. Metemo-nos em casa a olhar para rectângulos com imagens (televisores, computadores, telemóveis) acreditando que através dessas janelas virtuais comunicamos com o Mundo. Talvez até seja verdade, talvez haja comunicação (olha para nós, aqui, a "conversarmos"), mas acaba por ser uma comunicação estéril em termos sociais. A haver algum benefício no processo será tendencialmente individual.

    E é esse o nosso fado: sermos indivíduos com barrigas salientes e um umbigo na ponta, o qual contemplamos embevecidos, convencidos de que o Mundo não nos merece ou, nos casos mais desesperados, que não merecemos o Mundo.

    Quando saímos à rua em grandes grupos e manifestamos desacordo com algum aspecto menos atraente da TINA ficamos com a sensação de que fizemos algo socialmente radical mas, no fim das contas, a TINA acaba sempre a rir-se. A puta!

carta enviada ao Director do jornal Público

quarta-feira, março 08, 2023

Reflexos do passado (e do futuro)

     Não sou gajo de perder muito tempo defronte ao espelho. Com o andar da carruagem tenho-me tornado numa espécie de burro velho e grisalho, não sinto grande atracção pelo meu próprio reflexo. Isso não quer dizer que me estou absolutamente nas tintas para o meu aspecto. Nada disso. Apenas não perco muito tempo a pensar no que me transformei nem sinto particular saudade por aquilo que fui outrora. A barriga teima em ficar como está.

    Ainda assim, quando dou por ela, estico a nuca e tento manter uma certa postura ao caminhar na rua. Depressa esqueço e volto ao andar marreco. Estica, marreco, marreco, estica, sempre dá um certo colorido ao acto banal de pisar o passeio.

    Gosto de me imaginar como sendo jovial e bem-disposto. Daí que me ria bastante comigo próprio quando vejo o tal gajo grisalho, com a sua barriguita e meio marrequito a olhar-se no espelho depois de uma bela banhoca matinal. Sei que não sente grande tristeza por ser assim. Sei também que se vai tentando convencer de que a beleza é algo interior, uma confusão qualquer entre Ética e Estética, mas, lá no fundo, pensa que a beleza e a perfeição não precisam dele para nada. E ficamos bem assim.

terça-feira, março 07, 2023

Frutos do futuro

     A mulher já teria tido a ilusão de ser bela. Agora ajeitava timidamente o cabelo e caminhava rente à parede da clínica. Lá mais prá frente todos nos transformaremos em coisas que antes não conhecíamos.

segunda-feira, março 06, 2023

Coisas sem sentido

     Deuses que viajam de barco. Anjos que vislumbramos na berma da estrada. Personagens de fábulas nas quais somos os animais que falam. 

    É como quando te proteges de um frio que não sentes.

    Queremos do mundo coisas que não tem para nos oferecer e o corpo revela-se: é uma atrapalhação do espírito.

    Vivemos os nossos últimos dias.

domingo, março 05, 2023

Da beleza

     A beleza nem sempre é uma mentira. Por vezes ela é difícil de compreender por não ter equilíbrio nem simetria nem proporção. Por vezes está ali mesmo, à espera de ser vista, e não há quem a vislumbre. A beleza pode ser uma coisa triste (nesses casos dizemos que é coisa melancólica), pode ser um abandono, um vento levemente soprado que verga com graciosidade flores à beira do Inverno, pode ser uma ausência que se transforma em saudade.

    Sinto-me atraído pela beleza imperfeita embora seja sensível à sua extrema perfeição (quando o milagre acontece). Não é que a procure, não. Penso que seja preferível deixá-la acontecer. Forçar a beleza é pedir ao mundo que nos dê algo que pode não ter para oferecer.