Pensando bem sobre o assunto, toda a vida fiz parte de um grupo de privilegiados. Considerando que não passar fome é um privilégio, que ter uma casa decente é um privilégio, que viver a vida adulta sem a sombra de uma guerra a toldar-me o futuro é um privilégio, que ter, pelo menos, a ilusão de viver num Estado de Direito é um privilégio... poderia continuar a lista dos privilégios que me douram a pílula mas penso que já percebeste onde quero chegar, melancólico leitor.
Pensando bem sobre o assunto, nunca fiz grande coisa para combater as injustiças que, assim como assim, vão empestando o dócil ambiente desta minha existência privilegiada. Participei em várias manifestações, assisti a um par de cargas de polícia de choque (nunca levei nenhuma bastonada nem inspirei gás lacrimogéneo), participei em acesas discussões (normalmente na tasca ou à porta dela), escrevi uns quantos textos mais ou menos incendiários que foram publicados no espaço das Cartas ao Director do jornal Público, participei em exposições de artes plásticas, algumas provocatórias outras nem por isso, enfim, coisas de burguês, talvez mesmo de pequeno burguês, nem mais nem muito menos.
Faço parte do Sindicato desde que comecei a trabalhar (apesar de não depositar grande fé no Sindicato), participei em Fanzines e grupos de Teatro, escrevi peças de carácter eventualmente revolucionário ou, pelo menos, contestatárias, nas minhas aulas não se pode dizer que fomente a apatia intelectual o que, só por si, é já um acto político. Enfim, coisas de alguém para quem é fácil acreditar numa série de chavões relacionados com a Paz, com a Justiça Social, com a Solidariedade; tudo muito baseado na imagem e na palavra, uma vez ou outra relacionado com acções efectivas e consequentes.
Tudo isto para te dizer, caso ainda aí estejas, que não é preciso grande coisa para sermos uns privilegiados. Basta não termos uma vida de merda.