terça-feira, abril 26, 2022

Montanha-russa

     Lá se passou mais um 25 de Abril, cada vez mais longe vai ficando 1974. Os cabelos embranquecem, a barriga ganha contornos de redondez mais acentuada, um ou outro músculo já se vai queixando sem grandes esforços que o justifiquem. A idade avança mas os sonhos continuam a ser sonhados, talvez a realidade não se compadeça com a sua realização.

    A evolução social do nosso país tem sido uma espécie de cometa disparado na imensidão do espaço. O país que éramos, o país que somos! Sinto orgulho em fazer parte desta pandilha de tótós, capazes de feitos imensos logo abafados por atitudes colectivas desconcertantes. Somos uma sociedade um tanto bipolar, vamos da euforia à depressão profunda em menos de 10 segundos. E vice-versa.

    Vivemos tempos complicados, tempos em que a tal evolução social vai sendo posta à prova e o aparente crescimento imparável conhece obstáculos difíceis de ultrapassar. É para mim um mistério este renascimento da pulsão fascista que ensombra os dias luminosos da Europa. Temo que tenhamos chegado ao topo da montanha-russa. Segue-se a vertigem da descida?

segunda-feira, abril 25, 2022

A Paz

     A Paz, a Paz, a Paz, anda tanta gente com ela pendurada na boca que a Paz começa a parecer-se com baba a escorrer de uma expressão aparvalhada, olhos perdidos, lábios entreabertos. A Paz. Não estou a ver como poderá a Paz ser feita recorrendo à matéria-prima que é esta guerra na Ucrânia. Não me parece que haja maneira de conjugar tão diferentes materiais e linguagens políticas num objecto capaz de não se desmoronar com a simples força da gravidade. A Paz...

    

sábado, abril 23, 2022

Uma nota desiludida com PS

    A guerra na Ucrânia mantém-se com a solução cada vez mais distante. Os argumentos a favor e contra esta desgraça deixam-me triste e estupefacto. Bem vistas as coisas, por aqui, toda a gente se considera pacifista e anti-guerra mas ninguém consegue vislumbrar forma de pôr fim a isto. Na minha muito humilde opinião há uma solução óbvia: a Rússia travar a agressão e retirar da Ucrânia. Mas sei que os unicórnios não existem e que as fadas morrem por não acreditarmos nelas.

    Post Scriptum - A intervenção cirúrgica a que fui submetido correu bem. Foi um sucesso. Agora tenho de aguardar uns tempos para perceber se recuperei a audição. O tempo cura tudo (o que seja curável). Neste caso trata-se de esperar que a prótese que me foi colocada no ouvido interno se aconchegue a ponto de me fazer ouvir alguma coisinha, algo de que o meu ouvido direito já há muito se esqueceu do que seja.

quarta-feira, abril 13, 2022

Surdez parcial

     Tenho vivido os últimos anos da minha vida com uma surdez progressiva a atormentar-me o ouvido direito. Hoje tenho 10% de audição nesse ouvido, segundo uma medição audiométrica recente. Amanhã vou submeter-me a uma intervenção cirúrgica (uma estapedectomia) na tentativa de recuperar a capacidade aditiva daquele lado da cabeça.

    Trata-se de uma cirurgia razoavelmente comum e, segundo me dizem, pouco arriscada. Oxalá. O que me preocupa, de facto, é a possibilidade de recuperação da capacidade auditiva a um ponto que possa incomodar-me. Ser surdo de um ouvido não tem apenas inconvenientes.

terça-feira, abril 12, 2022

Pio tardio

     Se para alguma coisa tem servido a guerra na Ucrânia é para mostrar que não há nesta merda grandiosidade nenhuma. Sangue, tripas, fedor, fumo, ruínas... uma lista interminável de palavras separadas por vírgulas, uma cadeia de palavras com a qual prendemos o mastim da raiva que nos consome o peito. Palavras isoladas, palavras sem frase: morte, violação, óbus, cão, avião, floresta, ruínas... um ideal de civilização despedaçado pela brutalidade da guerra. Nesta merda não há grandiosidade nenhuma.

    Nesta guerra em particular, além da miséria, da dor, do sofrimento, há também doses incalculáveis de cretinice arrogante, gente que disseca os acontecimentos de forma mais analítica que sintética, encontrando sempre uma forma luminosa (e iluminada) de expor a sua visão, provar a razoabilidade absoluta da sua razão; sua ou da facção em que se enquadra que, nestas coisas, sozinhos não somos ninguém (onde haveríamos de oferecer pasto à besta da nossa narrativa?). Gente que vê sempre mais que o seu vizinho que por sua vez vê muito mais que aqueloutro, um crescendo de capacidade interpretativa e visionária capaz de espantar o mais encardido dos burgueses, o mais extraordinário dos heróis da classe operária.

    Com a guerra aqui a "apenas" 4000 quilómetros, ouvem-se perfeitamente os gritos de Deus. Grita agora, Deus, grita agora... como diz o povo, Tu precisas de ouvir: "tarde piaste"!

sexta-feira, abril 08, 2022

Uma questão de narizes

     É uma questão de escala. Se encostar o meu nariz ao nariz da Mona Lisa mantendo os meus olhos abertos vou deixar de lhe ver o contorno do sorriso maroto e fico com o campo de visão ocupado por manchas difusas e incoerentes. Assim acontece com a História.

    Viver o tempo presente impede-nos de perceber os contornos dos acontecimentos. Precisamos de distância temporal e de alguém que reúna e interprete informação pertinente, alguém que nos prepare a papinha e no-la ofereça pronta-a-comer. Seja como for teremos sempre uma visão parcial. A realidade e a verdade são impossibilidades, não só não estão ao nosso alcance, são coisas que não existem.

    Sim, eu sei que esta conclusão é frágil, que haverá um sem número de obras e pensamentos que provam como ando longe de uma ideia clara. Mas isso é a raiz do meu problema: a incapacidade de compreender e abarcar a totalidade dos dados de uma questão extremamente complexa. O meu problema é ter a sensação de que as minhas opiniões são como fumo numa garrafa de vidro e que, quando reflicto sobre elas, é como se retirasse a tampa da garrafa.

    Dou dois passos atrás, afasto-me da Mona Lisa. Na imprecisão do que vejo agora encontro um sentido formal, uma expressão perceptível. O rosto, a pose, as mãos, a inconstante paisagem. Houve um momento em que terei percebido todos os pormenores, todas as linhas, todos os volumes; um momento de afastamento ideal. Mas nem me apercebi dele, tantas as solicitações simultâneas que a imagem colocou aos meus limitados sentidos.

    Uma coisa é perceber o que vejo, outra coisa, muito diferente, é interpretar-lhe o sentido. Talvez seja melhor voltar a encostar os nossos narizes. A visão abstracta da realidade liberta-nos o pensamento ainda que andemos longe (muitíssimo longe) de perceber o que vemos.

quinta-feira, abril 07, 2022

Animalidade

     Tinha o olhar de um pássaro e a brusquidão com que movia cabeça acentuava a sensação de ter parentesco com os pardais ou os papagaios. Pegava num livro e, mal o abria, desfolhava-o rapidamente antes de o largar com a urgência provocada pela necessidade de pegar naqueloutro. A cabeça a saltitar-lhe entre os ombros, como que segura por elásticos.

    Tentei alhear-me da personagem mas não fui capaz de o fazer. Penso que estive sempre à espera que, largado um livro, levantasse vôo e lá fosse, à sua vida, que imaginei tão diferente da minha. Mas não. Entretanto chegou alguém, a sua companhia, e de imediato tudo mudou. O estranho pássaro transformou-se num felino aveludado.

    Tratava-se, afinal, de um camaleão.

quarta-feira, abril 06, 2022

Nada bonito

     Os dias vão passando e a guerra corre o risco de banalização. A distância atenua qualquer dor e, na maior parte dos casos, anula por completo o cagaço. Que medo atroz não corroerá o peito dos cidadãos ucranianos debaixo do fogo que cai do céu! Por estes lados vamos construindo teorias para tudo e um par de botas que possa caber nas discussões geradas pela guerra. Como é fácil, é tão fácil encher a boca de merda sem a cuspir de imediato. Nunca pensei que fosse tão fácil.

    Com tanta informação, tantos jornalistas no terreno, canais de TV que prometem a "guerra ao minuto", andamos para aqui a ruminar violência com a bonomia de vacas açorianas. Agora fala-se muito em manipulação. De opiniões, de imagens, de tudo e mais um pouco. Não creio que a destruição de um país inteiro possa ser encenada. Mas há quem ache isso possível.

    A cena dos crimes de guerra volta à baila. As atrocidades tendem a aumentar com o avanço dos fantasmas da guerra nas mentes e nos corações dos soldados. Ao fim de tantos dias as almas deles estão a ser substituídas por vampiros, lobisomens e outros seres irreais... irreais até ao dia em que ganham a consistência de crimes inumanos.

    Continuo a pensar que a guerra é o maior de todos os crimes. Não há regras que possam ser aplicadas a dois bandos de soldados que pretendem matar-se uns aos outros. O que muitos dos vencedores fazem a seguir ao habitantes locais está a ver-se. E não é nada bonito.