sábado, abril 17, 2021

Rotina quebrada

O mundo virado de pernas para o ar é uma coisa confusa de ser vista. Se porventura já duvidávamos do lugar ocupado pelo nosso corpo em cima do planeta, alterar hábitos e distrair costumes faz dos dias máquinas de lavar minutos, cada hora uma centrifugadora da alma. Nunca gostei de lançar as ideias na vertigem da montanha russa: abrir os olhos aterroriza, fechá-los agonia; os sentidos sempre a tremerem. Para um burguês acomodado, como eu sou, a alteração das rotinas é um purgante que se toma apenas como último recurso.

É assim que se alinham os dias próximos que haverei de viver. Obras em casa, mudança para habitação emprestada, sem os meus livros nem o meu atelier, sem os meus papéis, os meus pincéis, os meus pastéis nem as minhas canetas, sem os meus lápis nem as minhas telas. As coisas que temos por nossas fazem-nos falta mesmo que as não utilizemos todos os santos dias? Até que ponto nos tornamos escravos daquilo que possuímos? São os objectos que me pertencem ou acontecerá o contrário?

Lá se enfileira mais uma coluna de perguntas de merda, como se fossem soldados a marchar entediados para combaterem na minha patética guerra contra o mundo. A verdade é que faço esta luta sozinho, esta guerra que declarei por mero fastio.

segunda-feira, abril 12, 2021

Incompatibilidade

A realidade e a ficção serão da mesma família? Imaginando que sejam, podemos especular o que aconteceria caso se encontrassem num jantar de Natal. Ou nas celebrações pascais. Ou, então, caso se encontrassem por ocasião dos festejos do 25 de Abril. Imaginemos uma dessas ocasiões em que não podemos virar o trombil a um familiar, por muito asco que ele nos provoque, independentemente do facto de termos fundadas razões para fingir que o vemos (ou não), que é transparente ou que o nosso olhar é opaco como o olhar de um calhau.

A verdade é que construímos narrativas mais ou menos complexas. Atribuímos a nós próprios um papel nessa historieta que descuidadamente engendramos e é a partir dessa ficção que imaginamos quem somos, o que fazemos, de onde vimos e, com um bocado de sorte, imaginamos para onde vamos.

Certo é o fim. O buraco na terra, o caixão, a cessação dos sentidos; a isso ninguém foge embora tendamos a acreditar em narrativas que nos prolongam a existência para lá deste mundo mesquinho e merdoso ao qual, com este corpinho, não temos por onde fugir. Somos seres fugitivos enfiados numa gaiola. A morte a todos acaba por abocanhar.

Voltando ao primeiro parágrafo: realidade e ficção encontram-se à mesma mesa. Uma come a sopa, a outra não. Uma senta-se a outra fica de pé. Uma abre os olhos sempre que a outra os fecha e sorri sempre que adivinha uma expressão carrancuda.

Admito que realidade e ficção sejam da mesma família mas, estou convicto, não jogam o mesmo jogo nem que alguém as queira obrigar a fazê-lo.

terça-feira, abril 06, 2021

Apesar das máscaras

É a Primavera! Um passinho em direcção ao renascimento social. O início do desconfinamento chega com o sol e as cadeiras nascem nos passeios como flores, como ervas, brotam da calçada e são ocupadas por pessoas que parecem passarinhos. É a Primavera, tempo de renascimentos, é a Páscoa, tempo de ressurreições, é a sociedade a reaprender ser lugar de convívio entre pessoas.

Apesar das máscaras.