quarta-feira, dezembro 30, 2020

2020

Bem vistas as coisas é apenas mais um ano que se vai apagando. Já lá vão dois mil e vinte anos na nossa Era. A civilização egípcia, que se aprende nas escolas com a pirâmide de Gizé como ícone principal, durou mais de três mil, três mil anos, caraças! Quantas epidemias terá suportado além das pragas que lhe rogou o deus dos judeus? O nosso deus.

A pandemia envenena os nossos sonhos? Os sonhos de quem, de quantos? Arruinou o futuro das crianças sírias? Empurrou para o mar vagas incessantes de pessoas que fogem do mundo para dentro dele? A pandemia veio pôr a nu fragilidades e incongruências do sistema capitalista? Alarma-nos para a evidência da decrepitude do nosso modo de vida? Valha-nos Nossa Senhora. Pode ser a dos Aflitos.

Bem vistas as coisas 2020 é apenas mais um ano de merda para a espécie humana e nem sequer podemos ter a certeza que tenha sido o pior. Decerto houve outros bem mais devastadores. A verdade é que a espécie humana não sofre como um todo. O sofrimento é um coisinha muito parcelar, muito parcial e extremamente privada.

Bom Ano Novo.

segunda-feira, dezembro 21, 2020

O acto de criar

Trago pinturas dentro da cabeça que não consigo espremer até à ponta dos meus dedos. São imagens fantasma, ideias perdidas na fronteira, coisas sem forma definida, coisas por nomear, pequenos querubins perdidos no limbo que imploram ajuda para virem até este mundo. Por favor!

Entre o que trago dentro de mim e este mundo existe uma fronteira implacável que é o meu corpo. Fronteira e presídio ou hospício, algo assim, é como me sinto. Impeço a beleza, não premeditadamente, antes por incapacidade de a compreender completamente. E ela fica dentro de mim, não consegue sair.

Trago pinturas dentro de mim que, com extrema dificuldade, vagamente vislumbro. Envoltas numa neblina (que nada tem de mística), as formas hesitam, as cores esbatem-se, peco-lhes o sentido. Para criar é necessário ser capaz de parir.


terça-feira, dezembro 15, 2020

Coisas monstruosas

Muito se preocupam as mentes brilhantes que governam o nosso futuro com as competências das jovens gerações no que à matemática diz respeito. Estão fraquinhos, os putos, no desvendamento dos segredos da linguagem numérica; não pode ser! Precisam de mais horas de aulas, mais tempo de trabalho nas grutas dos números, haja quem lhes martele o juízo com a complexidade das operações que lhes falecem. O resto não interessa muito. A literatura, a arte, a história, coisas menores, universos dispensáveis.

E cada vez mais as jovens gerações vão sendo cada vez menos... jovens? Receio que estejamos a fomentar comportamentos zombies entre a petizada. Absortos nos seus gadgets tecnológicos, imersos em mundos exclusivamente eléctricos e virtuais, com a cabeça atulhada de números: zero um, um um, zero zero, um zero. O mundo, assim descrito, perde a sua dimensão animal, confunde sensações e sentimentos. Ficam pobrezinhos, os jovens. Pobrezinhos que nem pedir sabem, sentados nas soleiras das portas das suas catedrais tecnológicas.

E são estes pobres-de-pedir quem escreve os algoritmos que depois se autonomizam e crescem como divindades absolutas que zelam pelo nosso quotidiano, os algoritmos que a cada dia que passa nos assustam um pouco mais. Tememos a autonomização das máquinas, a dificuldade que temos em ensinar-lhes o que é Ser Humano; tememos a substituição, tememos ser dispensáveis, descartáveis, tememos tornar-nos absolutamente inúteis.

Penso que, na verdade, devemos temer não os algoritmos mas aqueles que os criam. Penso que quem não compreende o Ser Humano somos nós. As máquinas reflectem aquilo que somos e tornam-se coisas monstruosas.

quarta-feira, dezembro 09, 2020

Do auroque ao santo de pau carunchoso (3.º episódio)

(no episódio anterior) A relação entre a nossa imaginação e a nossa capacidade plástica corporizou-se na criação de objectos sagrados ao ponto de precisarmos de construir espaços artificiais que servissem de habitação às representações das divindades. Imagino que tenha sido mais ou menos assim que surgiu a ideia do Templo. A escultura, com a sua tridimensionalidade, revelou-se a técnica mais capaz de revelar as formas divinas.

Adorar um pedaço de madeira ou um calhau transformados em figuras significativas é atitude que implica uma fé imensa. Temos milénios de treino e prática da imaginação para lá chegarmos, olhar um boneco e ver um deus! O esforço necessário para realizar tal transferência de poderes entre o dinamismo universal e objectos inanimados é feito digno de nota, não está ao alcance de qualquer macaco. É um acto de magia.

Curiosamente, os mágicos mais importantes desta história até nem são aqueles que criam os bonecos (os artistas/artesãos), os mágicos mais importantes são aqueles que criam as narrativas em volta dos bonecos (os sacerdotes/shamãs). Seja como for é espantoso todo o poder acumulado em redor de algumas destas figuras.

O boneco adorado é uma materialização do conceito que encerra, uma transposição de energia vinda directamente do cosmos para a nossa mesinha-de-cabeceira, parece-me fascinante. Uma oração ao boneco antes de ir para a cama e depois do chichi, eis uma actividade muito praticada por esse mundo fora.

Nos tempos que correm, nos países onde existe liberdade religiosa, isto não é nada de mais. Mas nem sempre foi assim. Por estranho que possa parecer a adoração da bonecada foi motivo para lutas intestinas e muito boa gente bateu a caçoleta à conta de perspectivas diferentes em relação ao assunto.

(continua)

quarta-feira, dezembro 02, 2020

Até breve

É sempre assim, o aniversário destas 100 Cabeças passa sem eu dar por ele. 

É um aniversário sem festa nem convidados. É uma marca no tempo, sem calendário. Nasceu em 2005 e por aqui continua, em busca de uma idade que seja adulta embora não compreenda bem o que distingue uma idade adulta de outra idade qualquer.

Esta espécie de arquivo de ideias serve-me com rara frequência para resolver um ou outro problema que me vá surgindo no quotidiano. Noutras ocasiões perco-me um pouco em leituras avulsas, reencontrando-me em momentos esquecidos, pensamentos que, por vezes, me surpreendem: "fui eu quem escreveu isto?", surpresas nem sempre agradáveis, nem sempre embaraçosas.

E pronto, vou cortar aqui a raiz a este pensamento, não com um machado (pois a canção ensina que isso é impossível) mas com um até breve.

Até breve.