domingo, março 29, 2020

Sofrimento

Poderia ter vontade de desenhar, de pintar, poderia sentir-me particularmente criativo nestes dias de reclusão mas... não. Nem por isso. Ando murcho, aborrecido, sem grande impulso ou imaginação.

Alguém me propôs que, dadas as circunstâncias, criasse imagens positivas. Pareceu-me boa ideia mas, essa intenção, para mim, que sou um gajo com uma forma de expressão plástica, no mínimo, soturna, acrescentou lentidão ao meu relentado processo criativo nos dias que correm.

Sofro.

Boa merda de sofrimento, este. Sofro? Sofro uma merda, é que sofro! Estou chateadinho? Oh, que problema! Não consigo desatar o nó criativo... grande perda para a Humanidade. A verdade é que, tal como milhões de pessoas em todo o mundo, aguardo.

Aguardo o dia em que a vida volte a ser vagamente semelhante àquilo que me habituei a pensar que era.

quinta-feira, março 26, 2020

Traidores

Olhando para a TV vejo coisas.
Vejo uma conferência de imprensa de Donald Trump. Ouço as enormidades que ele diz e a forma destemperada como reage perante as perguntas de um jornalista, a forma arrogante e prepotente como ignora essas perguntas e responde ao jornalista com ameaças directas.

A ignorância e a prepotência fazem com que, tão importantes como as questões que se colocam sejam muitas questões que alguns de nós têm de calar.

Antes da pandemia várias vezes declarei aqui a minha estupefacção perante a evidente estupidez de Trump e de Bolsonaro. Mais do que estúpidos, estes dois são arrogantes e orgulhosos da sua óbvia ignorância. Como foi possível terem chegado aos cargos que ocupam?

No actual contexto da pandemia os EUA e o Brasil não podiam ter piores líderes que estes mentecaptos, aliados do vírus graças à sua imensa imbecilidade. Oxalá as suas desastrosas lideranças não provoquem os desastres humanitários que se imaginam.

Mais do que nunca, até mesmo deus merece maior confiança que estas amibas falantes, traidores da Humanidade.

terça-feira, março 24, 2020

Tempo

Com o passar dos dias fechado em casa apercebo-me que começo a deixar de ter pressa. Coisas que poderiam causar-me alguma inquietação por ficar com a sensação de estar a perder tempo passaram a ser percepcionadas de outra forma. E a ideia de "perder tempo" vai deixando de fazer sentido.

Não sei ao certo o que isto significa, nem sei se alguma vez significará algo de concreto, é apenas uma sensação e as sensações não são propriamente fiáveis. Dentro de alguns dias talvez possa compreender um pouco melhor o que quero dizer com isto, mas também isso é incerto.

A verdade é que o mundo me está a surpreender de tal modo que, depois disto, imagino, nada será como dantes.

sábado, março 21, 2020

Uma semana

Desta vez não posso usar aquela frase feita "foi uma semana como as outras" porque esta semana foi completamente diferente de todas as outras que me lembro de ter vivido. Uma semana metido em casa sem grande opção de sair que não fosse ir ali ao outro lado da rua, ao supermercado.

Esta manhã aventurei uma ida à praia, caminhar um pouco e ver o mar. Pareceu-me bem mais seguro que ir comprar laranjas. Cruzei-me com algumas pessoas, todas a mais de 10 metros de distância e não toquei em nada a não ser no meu carro. Poucas vezes a praia me pareceu tão pacífica e tão bonita.

Os dias passam. Como será daqui a mais uma semana? Por enquanto está tudo pacífico dentro da minha cabeça e à volta dela. De uma coisa estou certo, quando tudo isto parar iremos viver num mundo diferente, resta saber que mundo será esse.

Aguardemos serenamente.

quinta-feira, março 19, 2020

Ensino


Não sou grande adepto do ensino à distância. Talvez porque “burro velho não aprende línguas”, admito, mas tenho as minhas reservas quanto à qualidade do ensino assim ministrado. Acredito no contacto humano, na comunicação directa, na entoação da voz, na expressão facial, no gesto teatral. 

Duvido da eficácia de um tweet.

As ferramentas utilizadas no ensino à distância são apenas isso: ferramentas. Estou convicto de que a potencialidade de uma ferramenta depende muito do modo como é utilizada. Seja um i-phone ou uma trincha e duas latas de tinta, o utilizador determinará a qualidade do resultado do trabalho desenvolvido.

A tecnologia não é magia e, portanto, não opera milagres. Um bom professor será sempre isso mesmo e um mau professor idem aspas. O ensino à distância é, a meu ver, um recurso de emergência ou, em certas circunstâncias, um mal menor.

Quero acreditar que os resultados do ensino presencial não são melhores nem piores que os do ensino à distância, são diferentes.

segunda-feira, março 16, 2020

Uma morte

As notícias sobre a pandemia tornaram-se de tal modo absorventes que tendemos a esquecer que há tantas outras doenças a provocar medo, morte e sofrimento. Acabo de ouvir a notícia do primeiro doente falecido em Portugal em consequência de infecção com covid-19. Sabia-se que seria uma questão de tempo. Aconteceu. Morreu o primeiro de uma lista que se deseja curta. Irá isto ter alguma consequência prática no modo de agir de tantos que continuam a minimizar a gravidade da situação?

Da parte que me toca estou em recolhimento o mais absoluto que me for possível. Hoje não pus pé fora de casa. É o meu primeiro dia totalmente recolhido. Quantos se seguirão? O mais estranho de toda esta história é que não tenho como saber se estou ou não infectado. Para já não apresento qualquer sintoma mas, presumindo que o período de incubação do vírus é longo, nada me garante estar limpo.

Isto é como viver dentro de um conto de ficção científica.

domingo, março 15, 2020

Estranheza

A coisa está no início. Ontem foi o primeiro dia em que eu e a minha família evitámos ao máximo sair de casa. Ainda assim fui comprar o jornal e um maço de tabaco, depois fui, com a Ana, ao mercado de rua comprar legumes frescos e, à tarde, desloquei-me ao supermercado em frente a minha casa adquirir outros bens alimentares.

Hoje fomos à farmácia comprar alguns medicamentos para caso de emergência, passámos pela bomba de gasolina onde comprei o jornal e não um, mas dez maços de cigarros. Amanhã, penso evitar sair, de todo.

É estranho. O recolhimento voluntário, a capacidade de nos fecharmos em casa... é estranho.

sexta-feira, março 13, 2020

Encerrado

O primeiro-ministro anunciou, ontem, mais ou menos à hora da papa, uma série de medidas práticas com a finalidade de refrear o ímpeto infeccioso do covid-19. A ideia é, basicamente, fechar o país. Encerrá-lo.

Estamos desamparados perante a ameaça viral, não sabendo ao certo como combater o bicho fecham-se as portas, recolhemo-nos atrás das paredes na aparente segurança do lar e esperamos. Entretanto a vida continuará lá fora, a vida continuará cá dentro. Dentro de casa, dentro do nosso corpo, dentro dos nossos corpos. A vida não será encerrada.

É-nos sugerido um retiro auto-imposto. Apelam ao nosso espírito cívico, à nossa consciência cidadã, ao nosso amor pelo próximo. A ideia é a de um retiro espiritual em massa. Seremos capazes de realizar esta espécie de mergulho para dentro de nós próprios? Todos, em simultâneo, uma nação em recolhimento.

Tenho as mais sérias dúvidas, parece-me que será pedir demasiado ao povão mas, como diz o próprio povo, pedir não custa. O povo diz muitas coisas, umas acertadas, outras nem tanto.

Iremos nós conhecer um pouco melhor o povo português? É esta a oportunidade para nos olharmos ao espelho colectivo da nação e perceber um pouco mais os contornos da coisa que somos. Seremos algo próximo daquilo que imaginamos (se é que imaginamos ser alguma coisa)?


quinta-feira, março 12, 2020

Covid-19

Era de prever: a histeria instala-se, a vozearia confunde, os opinadores profissionais começam a delirar, seja em directo, nas televisões, seja em diferido, nos jornais, é um regabofe de prosápia e pés pelas mãos. Os decisores políticos acordam transformados em baratas tontas, as medidas de contenção da pandemia formam um novelo intrincado ao qual não se encontra ponta por onde se lhe pegue. Anda tudo para trás e para a frente, para um lado e para o outro, a nau vai de rojo no meio da tempestade. O povinho cá vai andando, a cabeça entre as orelhas, pensando que não sabe o que pensar ou que, sabendo, o mais provável é que esteja enganado.

A pandemia do covid-19 revela a consistência frágil deste nosso mundo, um mundozinho de cristal, desprotegido e incapaz de encontrar formas robustas de se afirmar perante si próprio. Quanto tempo durará esta barafunda? Qual será o aspecto do mundo global quando a poeira assentar? Aguardemos com a serenidade possível.

domingo, março 08, 2020

Vertigem de merda

Não me tinha apercebido (nem sequer pensado) que a simples presença de um monte de merda levasse tantos dos que lhe estão próximos a desejarem assemelhar-se a cagalhões. Acontece em muitos lugares e em diferentes contextos, quando os transformistas, de pessoa para cagalhão, pressentem que o monte de merda tem aceitação pública e se aproxima dos seus objectivos.

Vivemos tempos de "vale tudo" e esta vertigem mimética contribui para a paulatina transformação do ambiente social numa esterqueira, uma pocilga tão nojenta que causa repulsa ao mais porco dos porcos.

sexta-feira, março 06, 2020

Ressurreição

Uma dúvida me assalta vinda sabe Deus de onde: quando ressuscitarmos que corpos vamos utilizar no nosso regresso a este mundo? Dadas as primeiras imagens que se me formam no espírito depreendo que esta dúvida que me assalta é formada e influenciada por um misto de série de TV e educação católica demasiado esquecida.

O paraíso terreal habitado por uma multidão de zombies tipo Walking Dead, 10ª temporada, quando os corpos meio destruídos da zombieria já trazem ramos agarrados e restos dos corpos devorados pelo caminho? Não posso dizer que seja uma imagem bonita de reter mas poderei afirmar que é apropriada.

Ou bem que Deus se esmera e faz o maior de todos os milagres, restituindo um corpo limpinho aos ressuscitados ou vai haver reclamações em barda.

Mas, por falar em corpos limpinhos e partindo do princípio que os vamos ter, ressuscitaremos com que idade? Com a idade da hora da nossa morte? Regressaremos todos em corpos jovens e vigorosos? Convenhamos que são dúvidas perfeitamente plausíveis, capazes de influenciar a minha mente na hora de bater a caçoleta. Convinha estar informado.

quarta-feira, março 04, 2020

Fronteira

Todo o dia senti a proximidade da fronteira. Pequenos sinais na base da nuca, sensações mornas, vislumbres que não fui capaz de reter por mais que um momento fugaz. Sinto que são coisas de sonhos passados mas não consigo ligá-las; são coisas perdidas.

Há muito que não sentia a fronteira. Porque se aproxima ela num dia aparentemente tão normal como este, quase chegada a hora do soninho? Esta fronteira movediça que separa o lado de cá daquele outro lugar indefinível onde os animais dos sonhos se passeiam aguardando a sua oportunidade.

Todo o dia senti a proximidade da fronteira.