domingo, setembro 29, 2019

Dada

Disse um Dada: todos os dias acumulo cá dentro uma coisa selvagem que transformo em sossego, uma pulsão de morte que transmuto em sentido de vida. Por estranho que possa parecer acredito ser amor, essa coisa que surge do que fica dentro de mim.

Respondeu-lhe um Outro: se encontras um sentido para aquilo que constróis é porque viver consiste, quase sempre, na necessidade que tens de distrair a morte. Digo "quase sempre" porque no fim será a morte que encontras.

Concluiu o primeiro Dada: vou beber um café sem açúcar.

sexta-feira, setembro 27, 2019

O coração da Coisa

Começam a ouvir-se algumas vozes que admitem termos ultrapassado o ponto de não-retorno. Pessoas que falam alto nos media, que afirmam que não há volta a dar-lhe, que, apesar de estarmos a empurrar o nosso sistema de sociedade global em direcção ao abismo esse mesmo sistema permitiu reduzir (e muito) a pobreza. Apesar de aumentar as desigualdades, as diferenças entre ricos e pobres, apesar disso reduzimos muito a pobreza. Estamos de parabéns?

Estas pessoas compreendem a angústia, a fúria e o desvario dos que se revoltam contra a crescente poluição ambiental mas, dizem, e dizem-no alto, nos mass media, é impensável mudar o que quer que seja assim de um momento para o outro, sem provocar uma convulsão social e política de tal magnitude que o mundo, tal como o habitamos, acabasse por se devorar a si próprio. Não é bonito de ser visto mas tem de ser assim. Tem muita força.

Compreendo. Compreendo que os jovens se revoltem, compreendo que os tipos de meia-idade se acomodem e compreendo os velhos agarrados à saudade que têm da juventude perdida, parece-me que sou capaz de compreender esta malta toda. Ok, podem ficar tranquilos, todos têm razões suficientemente fortes, razões suficientemente válidas que justifiquem essas ideias que lhes estão a passar pela cabeça. Todos os seus actos são aceitáveis apesar de contraditórios. Vivemos numa sociedade livre... vivemos, não vivemos?

A reflexão fica por aqui, salto directo para a conclusão: estamos a trabalhar arduamente para a extinção, não da espécie humana mas do sistema capitalista enquanto paradigma sócio-económico. Enquanto a coisa foi mais ou menos localizada, mais ou menos parcial (a Coisa é a exploração capitalista, exploração dos seres vivos e dos recursos naturais com o fim absoluto do enriquecimento de uma casta de cabrões enxertados numa outra, de filhos da puta) o mundo apenas vacilou. A partir do momento em que a Coisa se globalizou, já fomos! Não há retrocesso nem , como dizem as tais vozes que referi lá mais atrás, volta a dar a isto sem que tudo acabe a ruir à nossa volta.

Assim, o melhor, é deixarmos andar, ir aproveitando enquanto pudermos viver como vivemos, os que vierem depois de nós é que se fodem.

terça-feira, setembro 24, 2019

Melancolia (esboço)

Por vezes não sei se sinto raiva se compaixão. É uma pressão que se me instala entre o peito e o estômago e ali fica, a pressionar-me os sentimentos ou lá o que é. Após uns momentos de pressão a coisa começa a transformar-se em angústia. Inspiro, sustenho a respiração, tento expelir aquela sensação através dos poros, pelas narinas, pelos ouvidos, nem sei que faço!

Quando nos sentimos encurralados reagimos por instinto, as nossas acções fazem um certo sentido que, naquele momento, nos escapa. Debatemo-nos.

Se porventura consigo expulsar de dentro de mim aquele feto de demónio (surgiu-me agora mesmo essa imagem, aquela pressão ser provocada por um ser maligno que começa a crescer cá dentro, tipo o Alien do filme de Ridley Scott), se consigo expulsá-lo (até hoje sempre consegui) fico melancólico.

A melancolia provém do facto de perceber que os demónios existem e vivem dentro de nós. Embora vá conseguindo vencê-los percebo facilmente que muitos de nós sucumbem à angústia e aceitam que a bestiola se instale, alimentam-na e deixam-na crescer. Nestes casos é frequente que o demónio acabe por substituir a pessoa e lhe substitua a alma por um espírito maligno.

Quando o demónio é muito poderoso e ambicioso transforma-se numa pessoa poderosa e ambiciosa, um gestor de empresas, um explorador de seres humanos. Quando ascendem a lugares de chefia tornam-se capazes de semear a angústia nos corações de centenas, de milhares, de milhões de pessoas, proporcionando um ambiente favorável ao surgimento de centenas, de milhares, de milhões de demónios.

Ao contrário do que muita gente acredita os demónios nem sempre são agressivos como os pintam. Cada demónio tem a sua personalidade própria. Quando o demónio é fracote e cobardolas transforma a pessoa numa verdadeira filha da puta. Este é o demónio mais comum.

segunda-feira, setembro 23, 2019

Se Midas cagasse...

... transformava todas as sanitas do mundo em objectos de ouro, tal qual a sanita engendrada pelo Maurizio Catellan que foi roubada aqui há uns dias de um palácio inglês onde havia sido montada para exposição. Midas não podia tocar em nada que não endurecesse e ficasse brilhante e consistente como é apanágio do ouro. Não consta que o toque de Midas fosse exclusivo da ponta dos seus dedos, daí que quase tivesse morrido à fome (nem quero pensar no que seria cagar ou mijar para este  imbecil absoluto).

Mas isso é outra história, a sanita de Catellan, cuja instalação toma o nome de América, possui o fascínio que sempre acompanha todo o objecto que luz e é de oiro fino. Objectos brilhantes atraem os corvos, objectos de ouro atraem gente a dar para o abutre ou para a hiena, pobres animais incompreendidos porque necrófagos. Estes objectos correm o risco de serem roubados.

América tem algumas vantagens em relação a A Fonte, de Duchamp, desde logo porque uma sanita é, em potência, mais polivalente do que um urinol. Outra razão de peso é a da matéria prima: de um lado ouro, do outro loiça industrial. O valor material dos objectos é nitidamente desequilibrado. Já quanto a um suposto valor artístico a coisa pia mais fino.

Chegamos aqui ao pormenor curioso, diria mesmo, pitoresco: então não é que um pedaço de loiça pode ser mais valioso que um pedaço de oiro bem mais volumoso e pesado? Depende da perspectiva que orienta a avaliação. Imagino que a Teoria da Relatividade ande mais ou menos por estes caminhos mas é quando me meto nestas andanças que percebo aquela pintura do Brueghel, do cego a guiar outros cegos.




quinta-feira, setembro 12, 2019

Felicidade

Descontos, vales de oferta, negócios mirabolantes: oportunidades, oportunidades, oportunidades! Há ali fora um mundo de oportunidades que se te oferece, queridíssimo leitor, um mundo que se rege por uma única regra: fazer-te feliz! Em nome da tua felicidade o carapau vende-se ao preço da uva mijona, a varinha mágica é praticamente oferecida e o corte de cabelo!? Valha-te Deus, que mundo este, que loucura!

Comes o carapau acompanhado por um batido desfeito com a nova varinha enquanto miras de soslaio o teu novo corte de cabelo no espelho da cozinha. Continuas pouco feliz. O problema deve ser teu. Decerto não aproveitaste todas as oportunidades que tão gentilmente te ofereceram. Tens de regressar ao Templo e desejar a felicidade com mais fervor, de carteira mais aberta.

O problema só pode ser teu!

quarta-feira, setembro 11, 2019

Da inutilidade

Parecemos cansados. Mais: parecemos enfastiados. Alguma daquela informação poderia ser passada em mandarim, soaria exactamente ao mesmo. Após assinadas e carimbadas e validadas, as actas poderiam ser enviadas para a República Popular da China, os resultados seriam, decerto, muito semelhantes.

Olho em volta discretamente. Somos apenas um grupo formado por gente moderadamente só a fazer de conta que o Caos pode organizar-se um bocadinho. Sinto-me inútil.

terça-feira, setembro 10, 2019

Ir indo

Acabo de compreender que para se ter uma grande história não é preciso nada de especial. Uma grande história é sempre uma viagem. Só precisamos ir.

quinta-feira, setembro 05, 2019

Especial

Não sei como é contigo, amigo leitor, a mim, as lojas personalizadas provocam-me engulhos. Detesto ir comprar café  e ter uma senhora extraodinariamente simpática a oferecer-me uma chaveninha de um novo produto, uma coisa excelente. Não gosto de estar a mirar uma coisa qualquer e ter de suportar a aproximação solícita de quem ali trabalha a perguntar-me se preciso de alguma coisa, que esteja à vontade, que faça de contas que estou em minha casa. Que coisa mais parva!

Se fosse o dono da mercearia, ainda vá que não vá, o gajo quer que eu lá volte, faz uma atençãozinha, tenta cativar-me com o jeito característico do merceeiro. Ok, lícito e límpido como água da chuva. Já uma miúda daquelas que trabalham nas lojas do centro comercial... soa a falso, tal como o merceeiro, mas sem aquela limpidez. É um "sentimento" de plástico. Desagrada-me. Tento não ser rude mas é difícil.

Parece-me ser uma estratégia mais ou menos comum, fazer com que o cliente se sinta especial. Mas é tão artificial! Talvez seja isso, talvez que ser-se especial seja uma absoluta artificialidade. Não dizem certos credos religiosos e certos credos políticos que somos todos iguais, seja perante Deus ou perante a Lei?

segunda-feira, setembro 02, 2019

A cabeça e as suas orelhas

O tempo vai passando, e a tua vontade de mudar o mundo vai-se transformando. Já não é aquele ímpeto avassalador que te fez acreditar piamente que a razão era toda tua, já não é aquele discurso estruturado e lógico que encurralava os argumentos dos teus adversários fazendo brilhar a visão do Mundo que professas, muito menos é a perspectiva do grupo com o qual te identificas uma vez que há ali muitas falhas que tentas ignorar para poderes fazer parte, sentires-te integrado.

Com o tempo nasce dentro de ti uma outra coisa, um misto de irritação, fastio e desencanto, um bicho informe que te rói o pensamento e te faz azedo aos olhos dos outros. Começas a creditar que, afinal, não há volta a dar a esta merda, começas a acreditar que foste ingénuo, que sonhar é coisa frágil. Quando chegas a este ponto estás lixado.

Que fazer, então? Como podes conviver com o tal bicho que, na verdade, és tu, um reflexo de ti? Não sei. Não tenho respostas para tais questões. Pessoalmente opto por ir alimentando o bicho na esperança de que, mais adiante, haja ainda outra coisa, uma salvação qualquer que de momento nem sequer posso adivinhar qual seja.

Como diz a canção: "cá se vai andando co'a cabeça entre as orelhas".