domingo, abril 29, 2012

Miguel Portas

O Dear Zé enviou-me por e-mail este texto de Miguel Portas . É muito extenso para um post do 100 Cabeças mas não demasiado extenso para ser lido e fruído com a calma e a atenção que me parece merecer. Miguel Portas faleceu no passado dia 24 de Abril, com 53 anos.

Não estarão todos os que gostaria que estivessem, mas todos os que estão, queria que estivessem.
Pelos 50, tiram-se balanços de meia estrada e já perceberam porque continuo um optimista inveterado.
Nesta ocasião, gostaria de fazer três elogios.

O elogio da família

Estão cá os meus pais. Deveria acrescentar, claro.
Na realidade, espanto-me com a sua persistência.

Devo-lhes a vida e nunca lhes devolverei metade do que eles me deram. Duvido que o meu nascimento, pela uma da manhã do dia primeiro de Maio, lhes possa ser assacado. Suspeito que essa terá sido a minha primeira vontade, o meu primeiro protesto. Não saio enquanto não for o dia do trabalhador…

A sina que lhes estava reservada! Se não fui fácil para muitos de vós, imaginem como terei sido para eles.

A minha mãe não era pêra doce, isto digo eu, não ela.
Depois de ter retardado o nascimento, e de muitos pormenores a que vos poupo, fugi de casa aos 12 anos. Para ir à missa. Sábia, ela preferia a praia e deixou-me em casa. Eu bazei, deixando-lhe um bilhete. Ela jura que lá estava escrito “entre deus e a mãe, escolho deus”. Recorda-mo de cinco em cinco anos. E eu procuro esquecer.
Suspeito ter-lhe dito coisas bem piores. Apesar disso, olhem para ela. Tem um riso e um sorriso que não se comparam a qualquer outro que conheça.

O meu pai não sofreu menos.
Apareci-lhe em casa, aí pelos 12 ou 13 anos, e devo ter-lhe dito Pai, aqui estou eu! Se uma coisa destas se faz a um pai…
Foi só o começo. Durante anos, pagou a minha militância mais do que os estudos. Para um socialista, isto devia equivaler à cobrança regular de um imposto revolucionário. Apesar disso, aguentou-se à bronca. E ainda me criou o gosto pelo jazz e ensinou a olhar as cidades.

Estão também aqui os meus padrastos. Já devem ter percebido que apanharam por tabela.

O Afonso era administrador nacional de uma das “sete irmãs” do petróleo e tinha um jaguar. Essa foi a parte que deve ter influenciado o meu querido irmão.

Eu fiquei com a outra. O Afonso tinha uma impecável biblioteca. Literatura erótica de um lado, e marxista, rigorosamente encadernada, do outro. Servi-me de ambas um pouco cedo demais. Nesta sala estão amigas e amigos que me aturaram por causa delas. Por causa de ambas ou de cada uma delas. Agora já sabem quem é o primeiro responsável: um capitalista com inclinação para literaturas proibidas.

A Margarida, a minha “madrasta”, não era capitalista. Queria ser arquitecta e terá sido por isso que conheceu o meu pai. Por acaso do destino, era a minha professora preferida na pré-primária. Corria para as aulas dela, porque começavam sempre com um episódio da vida do Mogli. Isto foi antes do Marx e da Playboy, mas não sei o que me terá marcado mais. Afinal, foram esses relatos de paraísos perdidos que me fizeram viajante.

A Guida deu-me também uma irmã. Quer dizer, teve a ajuda do meu pai, mas isso agora não vem ao caso. A Catarina não pôde mesmo estar presente hoje.
Esta família é assim. Definitivamente, não é “normal”.

Atacado de marxismo imberbe, achei que não precisava dela. Foi na adolescência, quando o meu preferido entre os três magníficos era Engels, que zurzia nas instituições burguesas, a começar pela família e pelo casamento. Vejam, entretanto, ao que cheguei: até defendo o casamento para gays e lésbicas…

A verdade é que pelos meus 13 ou 14 anos, tinha trocado tudo. O cristinianismo pelo comunismo e a família pelo partido. Demorei estes anos todos a perceber que só se substitui o que desaparece e mesmo assim...

Aos 50, chego à conclusão que não substituí nada. A minha família não é “normal”, pois não, mas é a minha.

Não tenho sido grande pai, mas os meus filhos, o André e o Frederico, têm sobrevivido muito bem à vida que levo, de aeroporto em aeroporto.
Também nunca fui grande companheiro. As mães dos meus filhos foram sempre muito mais maduras do que eu. Espero ter sido, contudo, um amável amante. E com a Teresa atingirei a idade da sabedoria.
É esta a minha família. Infinitamente agradecido.

Agora a política, em versão abreviada

Transitei do cristianismo para o comunismo porque queria mudar o mundo e acreditava na Humanidade.
O comunismo ainda cá mora, suspeito que devido ao cristianismo. O comunismo representou, por assim dizer, um upgrade na minha fé: ela passou a ter um certificado científico.
Mas o comunismo foi, principalmente, uma família, uma comunidade de crentes. Foi a minha durante 18 anos. Ter saído sem rancor ou amargura, é um dos meus pequenos orgulhos.

A Revolução confirmou a certeza de adolescência. Enchi-me, aliás, de certezas. Tinha sempre uma pronta a vestir, qualquer que fosse a ocorrência. Mas não troco esses anos por quaisquer outros. Foram os mais importantes da minha vida.

Substituí Deus pela classe operária e não me dei mal. Acabada a festa, pá, mantive-me “firme e hirto”.
Alguns dos que aqui estão, sabem que queria ser revolucionário profissional. Há gente para tudo, não é? Convenhamos que tal ideia me aproximava mais de um missionário do que de um político, tal como hoje estes se reconhecem.
Mas, sabiamente, o partido, esse plural que soletrávamos na primeira pessoa do singular, desconfiava do adepto. Lá teria as suas razões e, em certo sentido, ainda bem. Se tirei um curso, embora em dois planos quinquenais, talvez lho deva. E se arranjei posteriormente uma profissão, a de jornalista, é porque tinha aprendido a fazer comunicados.

Só na universidade a minha crença nas massas foi abalada.
Um certo dia, percebi que as Assembleias não votavam argumentos, mas interesses. Espertas, decidiam por mil razões diferentes das que escutavam e cada presente tinha as suas.
Esta foi uma descoberta dolorosa.
Desde então, penso que as massas são como o deus da bíblia, capazes do melhor e do pior, tudo dependendo da circunstância. Pelos 25 anos deixei, finalmente, de ser crente.

Mas nenhum pecado fica por pagar. Ao longo dos últimos 10 anos tenho-me dedicado a compreender porque vive a fé no coração de tanta gente. E a dar esperança a uma pequena multidão de almas que a vida tem expropriado de promessa.
Deus não existirá, mas em seu nome muitos continuam a escrever direito por linhas tortas.
O comunismo existirá, mas habituou-se a escrever torto, mesmo que direitas sejam as suas linhas.

Porque continuo então, eu, um descrente, a fazer política?
Principalmente, porque o faço quando nutro pelo poder - afinal a razão de ser da política - um desdém que cresce na exacta medida em que o vou descobrindo?
Suspeito que pela pior das razões – o egoísmo.

Quando chegar ao fim dos dias, quero olhar para trás e dizer, ok, fiz esta ou aquela asneira, mas no conjunto valeu a pena, fui um tipo decente, que procurou fazer pelos outros mais do que por si próprio.

Há muitos modos de se atingir este céu. A política é apenas uma das vias e das mais ínvias, asseguro-vos.
Tão difícil é um rico entrar no reino de Deus, como um político decidir em função do que é certo ou errado e justo ou injusto, e não do que garanta a sua posição no sistema. Enquanto assim for, a política continuará a ser, para mim, um protesto, uma convicção e uma promessa.

É ainda uma responsabilidade. Como deputado europeu, respondo pelos votos recebidos. Mas não vos escondo que me sinto mais útil usando essa qualidade observando as eleições palestinianas, denunciando o que vi no centro de detenção de imigrantes de Lampedusa, ou dando o rosto pela voz de trabalhadores portugueses explorados na Holanda, do que a fazer emendas num relatório.

Sinto-me em comissão de serviço e assim continuará a ser, se o bloco quiser que eu repita a dose. Mas a política é, para mim, uma escolha livre. Sempre fiz e continuarei a fazer outros ofícios.

Aos 50 anos posso, aliás, garantir-vos que não tenciono ficar na História. Aprendi a gostar mais das pessoas do que das massas. Quando muito, o que não será pouco, gostaria de ficar no coração de alguns de vós. O que me leva ao

Elogio da amizade

Parto muito atrasado para essa corrida.
Nas profissões que se ocupam dos poderes ou que são, em si mesmas, o poder de uns sobre outros, a amizade nasce se é útil e cresce, não raro, como utilidade mascarada de cumplicidade.

Com a militância, a minha vida, não foi muito diferente. O amor à causa é um excelente pretexto para evitarmos o que é, verdadeiramente, difícil – encarar cada um dos outros, como gente de carne e osso, com todos os defeitos que adoravelmente carregam.

Encontro-me entre amigos e amigas e estou-vos imensamente agradecido. Se hoje penso deste modo, a muitos de vós, por esta ou aquela razão e pormenor, o devo. Termino como comecei. Ainda tenho 50 anos para aprender o que a maioria das mulheres sabe tão bem como uma pequena minoria de homens – que na vida, importantes são os detalhes.
Lá chegarei. Minorias é comigo…

sábado, abril 28, 2012

A mula e o unicórnio

 Paul Cadden a dar ao lápis

Um belo dia (não tão belo quanto isso), era eu um novíssimo estudante nas Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, tive um dos meus primeiros baldes de água fria.

Mostrava um desenho da minha autoria a um professor, já não recordo qual professor, um desenho que me parecia algo digno de elogios, quando o mestre me atirou uma frase que ainda agora recordo. Disse-me ele "Isto não é um circo, não estou interessado nas suas habilidades".

Devo ter ficado com cara de parvo daqui até à lua. Então, se não eram as minhas habilidades que ele queria ver, o que devia eu fazer?

Percebi mais tarde que era suposto executar com mais objectividade o exercício proposto, exercício esse que não pedia tamanho virtuosismo nem tanta soberba da minha parte. Era algo mais modesto na habilidade mas bem mais exigente em termos expressivos. Eu exibia beleza quando me era pedido que mostrasse alma. Naquele tempo eu não compreendia uma coisa assim.

Agora compreendo.

Vem isto a propósito de uma notícia que li no Público online que faz eco do espanto que causam por aí os desenhos de um artista escocês, Paul Cadden. Uma rápida pesquisa mostra mais uns quantos jornais, um pouco por esse mundo, a publicar, mais coisa menos coisa, a mesma notícia.

O espanto dos desenhos de Cadden é a extrema dificuldade que o observador tem em distingui-los de fotografias. Ele desenha magnificamente! Os seus desenhos são verdadeiras fotografias.

A partir daqui este post poderá parecer pretensioso ou mostrar alguma inveja da minha parte por não ser capaz de desenhar de forma tão semelhante a uma máquina fotográfica. A verdade é que não pretendo comparar as minhas capacidades no campo do desenho com as de Cadden. Seria como comparar uma mula a um unicórnio.

Queria, apenas, deixar uma pergunta sem estar, na verdade, à espera de resposta, até porque é uma pergunta meio parva.

Pergunto: ficaríamos assim tão espantados se um fotógrafo fizesse fotografias que não pudéssemos distinguir de um desenho? Um ser humano capaz de imitar uma máquina tem mais valor que uma máquina capaz de imitar um ser humano?

Eu sei, isto soa a provocação barata.


quinta-feira, abril 26, 2012

O meu reino por uma prateleira (ou por um simples bagaço)


Andamos a tentar arrumar umas quantas questões na prateleira das respostas e a coisa não é nada fácil.

Nos últimos tempos, tempos tão recentes que o passado e o presente se enrolam naquilo que imaginamos possa vir a ser futuro, vimos assistindo a exibições de força bruta por parte das "forças da ordem" que nos deixam os queixos a modos que um pouco descaídos, alguns de nós a babar-se de espanto (é o meu caso).

Por um lado as forças policiais parecem mais nervosas que os mercados e desancam por aí no pessoal a torto e a direito. Não se percebe porque batem com tanta força em pessoas nítidamente fraquinhas e sem potencial destrutivo que justifique tamanhas cachaporradas.

Por outro são os tribunais a condenar quem rouba um chocolate e a fazer vista grossa a quem rouba uns milhares. Quando se roubam milhões os tribunais ficam mesmo cegos. Ceguinhos de todo, completamente às escuras.

Ora, a questão que quero arrumar e à qual não encontro lugar em prateleira alguma é a seguinte: o que é a Democracia?

Eu a julgar que bastava procurar no google... não basta, apesar de aparecer a Wikipédia em 1º lugar nos resultados e a explicação ser bastante concisa e regular, como é timbre desta democrática enciclopédia.

Talvez porque o conceito de Democracia varia quase tanto como uma nuvem de fumo levada por um furacão, as dúvidas roem o juízo a qualquer um que habite em Portugal, este rectângulo de uma coisa maior e sem forma geométrica definida que é a União Europeia.

Prometo a mim próprio não desistir de tentar perceber. Anseio o dia em que possa colocar o rótulo que me permita guardar a coisa no lugar a que tem direito. 26 de Abril é um dia que me provoca sempre este efeito de desfocagem espiritual, política e, mesmo, filosófica. Uma espécie de ressaca após uma bebedeira de sonhos.

É em dias como este que sinto saudades das velhas tascas escuras, com mesas de pernas em madeira e tampo de mármore, rodeadas de velhos alcoólicos. Cabeças enterradas nos chapéus pretos e cartas de jogar a sueca à espera de ser atiradas para o centro da tempestade. Aí bebia-se um penalty (tinto) ou um bagaço (caraças!) e as dúvidas deixavam de o ser. Transformavam-se imediatamente em menos que nada!

Foi assim que aguentámos 40 anos de salazarismo. Assim haveríamos de aguentar mais 40 anos de outra merda qualquer. Mas agora não há tascas, nem tinto, nem bagaço. As pessoas já nem sequer bebem água. É tudo beberagens estrangeiras, cheias de açúcar e metidas em embalagens coloridas e descartáveis.

É o futuro. O futuro não tem prateleiras, guarda-se tudo em ficheiros de computador.

quarta-feira, abril 25, 2012

25 de Abril


Em jeito de comemoração da revolução de 25 de Abril deixo aqui este tema de Gabriel O Pensador.
Gosto de o ler e de o ouvir e de pensar com O Pensador e perceber que aquilo que, para mim, significa este dia é algo que não fica por aqui, enfiado nas estreitas fronteiras do nosso país.
O sonho é universal.

Post Scriptum: paz para Miguel Portas que morreu antes do dia.

domingo, abril 22, 2012

Naifada

Esta noite, no Teatro Azul (vulgarmente conhecido como Municipal de Almada), A Naifa deu um concerto memorável, uma coisa linda de se ver e perfeita de se ouvir.

sexta-feira, abril 20, 2012

Purificação

Chega-nos a notícia de que um artista plástico que fundou e dirige um museu de arte contemporânea em Casoria, perto de Nápoles, começou a queimar obras de arte em sinal de protesto contra as políticas culturais do governo italiano.
Antoni Manfredi ameaça continuar a queimar obras, à razão de 3 por semana, caso a situação de míngua se mantenha. Parece coisa de sequestrador em conversações com a polícia que ameaça executar reféns caso as suas exigências não venham a ser atendidas. Ameaçador.

Segundo Manfredi, as obras acabarão por desaparecer de qualquer modo, votadas ao abandono pelas forças vivas do poder e dos poderosos. A fogueira apenas acelera o processo (e atrai a atenção dos mass media).

A notícia é um pouco mais complexa e tem outras variantes mas, o que me deixa a pensar nesta coisa, é a fogueira.

Porque queima Manfredi as obras? Qual o simbolismo de tal gesto? Podia rasgá-las com uma faca ou disparar sobre elas uma pistola metralhadora. Poderia enterrá-las (vivas) ou atirá-las a um poço, mas não: ele queima-as.

Quererá imitar os autos de fé, esses actos extremos de máxima purificação? A fogueira traz consigo algo de bárbaro e primitivo, a redução a cinzas não permite sonhar com qualquer tipo de regresso do objecto incinerado.

Manfredi está a enviar obras de arte para lá do esquecimento em sinal de protesto contra aquilo que ele considera um desrespeito para com a Arte: o esquecimento da governo italiano. Não consigo decidir qual o acto mais reprovável.

Talvez Manfredi esteja a pensar naqueles activistas que, desesperados, se imolam na praça pública, chamando a atenção para as injustiças que os atormentam. Foi assim que começou a Primavera Árabe.

Terá o fogo tanto poder que seja capaz de transformar um mundo de injustiças em revolução redentora? A Santa Inquisição parecia acreditar em algo semelhante.

sábado, abril 14, 2012

Uma coisa (potencialmente) confusa

Recordo-me do tempo em que o futuro me parecia ir ser, o mais tardar, amanhã.

Também me recordo quando me começou a parecer ter sido já ontem.

Foi quando percebi que o presente raramente nos devolve aquilo que o futuro prometera na sua condição de passado.

terça-feira, abril 10, 2012

FIB

FIB é a sigla para Felicidade Interna Bruta. Ora bem, ia sendo tempo de tentar encontrar outras formas de medir o desenvolvimento político e social que não fosse a frieza fedorenta de um monte de notas de dólar! A ideia terá partido do rei do Butão, numa tentativa para demonstrar que a felicidade não implica, obrigatoriamente, o sofrimento de uma maioria em nome de uma Balança Comercial equilibrada.

A publicação de primeiro Relatório Mundial sobre Felicidade, elaborado pela Universidade de Colúmbia a pedido das Nações Unidas estabeleceu um ranking que, ainda assim, mostra como um PIB equilibrado pode contribuir fortemente para trazer as pessoas bem dispostas e com uma sensação de bem estar reluzente. Isto parece confirmar aquela velha ideia de que o dinheiro não compra a felicidade mas ajuda a encontrá-la.

Convém não esquecer que este estudo, sendo realizado por uma instituição ocidental, terá sido influenciado por valores ocidentais no estabelecimento dos principais factores que contribuem para definir e quantificar a felicidade humana.

É interessante que se comece a pensar de modo diverso, que o enriquecimento e os valores do capitalismo selvagem sejam questionados enquanto finalidade máxima das nossas sociedades. Poderá esta nova atitude vir a influenciar, a médio ou longo prazo, a forma como pensamos e projectamos a vida do planeta?

Sem grande surpresa Portugal surge classificado no lugar 73, a meio de um ranking com 156 nações. É aquela nossa velha atitude de nunca assumirmos as coisas nos seus limites. Nunca estamos demasiado bem nem admitimos estar demasiado mal, estamos sempre mais ou menos ou assim-assim, como se costuma dizer.

"Vai-se andando" ou "o que tem de ser tem muita força", não são meras expressões vazias de significado; são aforismos reveladores que sintetizam uma filosofia existencial milenar característica do nosso povo. É desta forma que combatemos a infelicidade, admitindo a fatalidade do destino. É também assim que descobrimos uma nesga que nos permita procurar a felicidade.

Se tivermos de ser felizes, seremos. Se isso não for possível... paciência.

quinta-feira, abril 05, 2012

Nostalgia


Aqui há uns dias fui ver o filme "John Carter de Marte". Pura nostalgia. Quando era um adolescente apaixonado por Banda Desenhada (Histórias em Quadrinhos) e coleccionava várias revistas do género, as aventuras de John Carter foram publicadas, durante algum tempo, no Mundo de Aventuras.

As historietas de John Carter, criadas por Edgar Rice Burroughs, o autor de Tarzan, fizeram-me sonhar e passar bons bocados. Subitamente o herói marciano desapareceu e nunca mais ouvi falar dele ou sequer dele me lembrei. Como tantas outras coisas, perdeu-se no esquecimento.

Agora, ao que parece para celebrar o centenário da publicação das primeiras aventuras escritas por E. R. B., a Disney lançou este filme em 3D com grande alarido e baldes de pipocas. Não pude resistir ao apelo nostálgico e lá fui.

É um filme daqueles, de aventuras, seres abstrusos e muita moral. Um filme para toda a família, como a Disney gosta de fazer. Fui sozinho, sem pipocas mas com uns óculos 3D para colocar sobre os meus óculos de lentes progressivas.

Quando lia o Mundo de Aventuras estava longe de imaginar que um dia iria usar óculos para, simplesmente, poder ver e muito menos imaginava óculos e filmes em 3D ou uma técnica digital capaz de tornar reais os monstros mais extraordinários que a mente humana possa inventar.

Mas assim é. A realidade tecnológica encarregou-se de transformar em objectos quase tangíveis coisas que apenas fui capaz de sonhar olhando fixamente desenhos sem movimento. As coisas transformavam-se dentro da minha cabeça, ao ler as pranchas de Banda Desenhada. Agora, além do deslumbramento do 3D e das pipocas em baldes, as crianças ainda hão-de ter um jogo de computador à sua disposição.

Se não sentes esta nostalgia, caro leitor, não valerá a pena ires ao cinema ver esta coisa. O esforço sublime de imaginar o maravilhoso é cada vez mais servido como um pronto-a-comer que te oferecem já devida e previamente mastigado. Há quem considere isso aborrecido.

segunda-feira, abril 02, 2012

Sonhos


O meu sonho era poder discutir estética com o homem do talho; a beleza de um bife bem cortado, a grandiosidade de uma carcaça de vaca pendurada do gancho ou o mistério contido numa fileira interminável de chouriças de porco.

O meu sonho era debater questões religiosas com a senhora que limpa as escadas; como lavar o pecado da alma sem recorrer a produtos corrosivos ou como interpretar as manchas de gordura deixadas pelos vizinhos evitando a tentação de os considerar animais indignos de piedade?

O meu sonho era falar de futebol com um grande filósofo; como considerar epistemologicamente os erros dos árbitros ou como superar os limites da brutalidade provocada pela paixão clubística?

O meu sonho era discorrer sobre meteorologia com um economista encartado; acha que vai chover hoje? Ainda há pouco estava tanto calor, como é possível esta súbita sensação, este calafrio que sinto, agora que estou ao pé de si?

O meu sonho era saber o que sonhei esta noite. Infelizmente o meu sonho é estar acordado.

domingo, abril 01, 2012

Um dia como os outros

Hoje é o 1º de Abril, Dia das Mentiras em Portugal e noutras partes do mundo. É supostamente um dia especial, no qual toda a gente tem licença para mentir. Ainda assim convém que sejam mentirinhas simples, inofensivas, coisinhas de trazer por casa.

É um dia para os adultos poderem comportar-se como crianças e os mentirosos terem uma oportunidade de olhar as outras pessoas como iguais. Mentiras como a da existência de armas de destruição maciça no Iraque ou das aparições de Nossa Senhora um pouco por todo o lado, não são coisas chamadas à celebração desta data.

Aliás, as mentiras do 1º de Abril são sempre desmentidas no dia seguinte e não provocam danos de maior que não seja a sensação de sermos demasiado crédulos para nelas termos acreditado. Os exemplos citados no parágrafo anterior perduram e trazem dor e sofrimento a muita gente.

Se ponderarmos bem a catadupa de mentiras que chovem diariamente por todo o lado talvez este dia não seja assim tããããão especial. Mais mentira, menos mentira, lá no fundo é um dia como os outros.