domingo, janeiro 31, 2010

O medo


Agora que o vírus da gripe A até já é olhado com alguma simpatia por se ter mostrado tão mansinho dá para uma pessoa pensar que raio de coisa foi aquela! Que raio de alarmismo ensandecido varreu os meios de comunicação de massas por todo o mundo ocidental, de onde veio aquele maremoto informativo, onde teve origem e que objectivos estiveram por trás deste tremendo loooogro que nos impingiram à martelada nas nossas pobres cabeçorras?

Mais uma vez a técnica utilizada foi a do terror. Enfiaram-nos pelos olhos dentro a imagem de um vírus tremendo, mais letal que um tiro de metralhadora, capaz de nos deixar estendidos num caixão em menos de nada. Metralharam-nos diáriamente com notícias de novos casos e óbitos tenebrosos, convenceram-nos que a única esperança para a nossa espécie seria a vacinação em massa das populações. Estabeleceram-se listas prioritárias de pessoas a beneficiarem da milagrosa inoculação. Grávidas, crianças, pessoas com problemas respiratórios, por aí fora. Durante algum tempo estabeleceu-se um clima de terror pânico. Muitos de nós estavam dispostos a tudo para conseguirem a milagrosa vacina antes dos outros, fossem lá eles quem fossem.

Agora que o medo se vai transformando em estupefacção por termos sido tão crédulos, começam a surgir suspeitas de que tudo não passou de uma sádica maquinação fabricada nos mesmos laboratórios de onde saíram as tais vacinas. Fomos enganados! Fomos?

Esta história nada edificante mostra como as campanhas madiáticas que esgravatam os nossos medos têm um efeito bombástico em termos sociais. O medo tem campo fértil na ignorância e é nisso que pessoas e instituições sem escrúpulos apostam para nos transformarem em carneiros estúpidos, dispostos a tudo para salvarmos a pele. Foi assim com o H1N1, como já tinha sido com a Gripe das Aves ou a Doença das Vacas Loucas. Mas também foi nisso que apostaram quando nos impingiram a guerra no Iraque ou quando nos agitam o perigos inomináveis do casamento entre homossexuais e outras extravagâncias capazes de deitar por terra os fundamentos sagrados da nossa civilização. E nós caímos como patinhos. Porquê? Porque temos medo. Temos muito medo...

sexta-feira, janeiro 29, 2010

Raispartam!!!


Desta é que eu não estava à espera. Que a Mona Lisa seja um retrato de Leonardo ou que tenha nascido um bezerro com mais patas que uma centopeia ainda vá que não vá, mas isto deixa-me mesmo desanimado. Então não é que o Papa João Paulo II se auto flagelava e dormia núzinho no chão (ler notícia aqui). Mais e mais estranho é que isto não só parece perfeitamente normal aos olhos dos católicos mais fundamentalistas como ainda são argumentos na justificação da santidade do polaco.

Enquanto o homem foi vivo nunca lhe achei grande piada mas, depois de morto, lá se deu aquela coisa habitual e comecei a pensar que o tipo até nem tinha sido assim tão esquisitóide. Mas agora isto! Não, isto assim não dá. Então um gajo daquela estatura moral precisa de se açoitar com um cinto para se sentir próximo de Jesus Cristo? Que gaita! Eu a pensar que a fé era uma coisa abstracta e, afinal, tem a ver com carne dilacerada e sofrimento atroz. Um Santo da Santa Igreja Católica Apostólica Romana dorme nú no chão para sofrer e se aproximar de Cristo no sofrimento? Cristo dormia nú no chão? Em que Evangelho vem isso? A imagem de um velho a dormir enregelado num chão qualquer é perversa, chega mesmo a meter um bocadinho de nojo. Mas sempre dá para compreender um pouco melhor aqueles fanáticos alucinados que se fazem crucificar na Páscoa lá para as bandas das Filipinas. A julgar pelo exemplo de João Paulo II esses crucificados são autênticos exegetas.

Estas vias para a santidade mais parecem caminhos trilhados no inferno em direcção a um buraco aberto fundo numa alma destrambelhada. Se João Paulo II era assim não quero sequer imaginar do que é capaz este Bento XVI com a sua cara de tão poucos amigos.

Não quero alongar muito mais esta sucessão de imagens depravadas quero apenas deixar uma pergunta no ar: que raio de coisa é, afinal, a santidade?

quarta-feira, janeiro 27, 2010

Sim, talvez e... então o que temos agora?


É uma notícia curiosa: "Um grupo de pesquisadores italianos quer exumar o corpo de Leonardo da Vinci para reconstruir o rosto do artista e confrontar a teoria de que o famoso quadro Mona Lisa seria um autorretrato. (ler todo o desenvolvimento aqui)"

Ao ler esta notícia não pude deixar de pensar naquelas situações em que estamos tão profundamente convictos de algo que encontramos provas inequívocas da veracidade dos nossos sonhos nos mais leves indícios. Uma sombra logo nos revela um corpo, um traço imperfeito mostra-nos de imediato a adivinhada perfeição da forma.

Neste caso particular até acredito que haja um bom fundo de verdade na ideia dos ditos investigadores. Mas serão eles capazes de reunir um conjunto de provas suficientemente fortes para sustentarem a sua tese? Parece mais do que muito complicado encontrar essas evidências. No entanto a ideia está lançada e é de tal modo aliciante que muitos de nós estão já dispostos a aceitar a hipótese colocada como sendo parte integrante da realidade (aquilo que costumamos considerar "A" verdade).

Aqui chegados importa reflectir sobre a fronteira entre uma e outra, quero dizer: onde começa a verdade e acaba a realidade? Ou vice-versa.

terça-feira, janeiro 26, 2010

1000 posts


Este é o milésimo post do 100 Cabeças. Pensei bastante sobre o que dizer neste post. Afinal de contas escrever mil posts não é coisa comum (acontece apenas e rigorosamente uma única vez). Talvez pudesse reflectir sobre a essência do blogue ou ir recuperar um ou outro momento mais significativo. O fascínio pelos números redondos obriga uma pessoa a tratar com respeito o "mil". É ou não é verdade? Pensei muito sobre a forma a dar a este post e, agora que escrevi as palavras acima sabendo que irei alinhar mais algumas abaixo, compreendo que está feito. É isto. O post 1000 do 100 Cabeças é sobre si próprio ou seja, reflecte acerca de absolutamente nada.

domingo, janeiro 24, 2010

Consciência


"- Pobre Pinóquio, fazes-me mesmo pena.
- Porque é que te faço pena?
- Porque és um boneco, e o pior é que tens uma cabeça de pau.
Ao ouvir estas últimas palavras, Pinóquio enfureceu-se e, pegando num martelo de madeira que estava sobre o banco, lançou-o contra o Grilo-Falante.
Se calhar nem sequer pensava que o ia atingir, mas infelizmente atingiu-o e precisamente na cabeça, de maneira que o pobre Grilo só teve fôlego para fazer cri-cri-cri e ficou ali morto, colado à parede."

quarta-feira, janeiro 20, 2010

Ontem já foi o futuro?


Nos últimos tempos tenho experimentado uma estranha sensação de rejuvenescimento. Há dias em que saio de casa com os auscultadores nos ouvidos ligados a um iPod no bolso. Andar nas ruas com banda sonora dentro da cabeça faz-me recuar até aos tempos em que frequentava a escola de Belas-Artes e tinha um walkman da Sony que lia cassetes em altos berros para dentro de mim.

Naquela época a música nos ouvidos servia para me isolar dos ruídos do quotidiano, principalmente nos transportes públicos, onde passava uma parte significativa do meu tempo. Agora, quando atravesso a rua ao som do mesmo tema de Lou Reed que ouvia há 25 anos atrás, a sensação é semelhante e faz-me perceber que muita da agitação intelectual que então me revolucionava as entranhas estava relacionada com essa coisa de viver dentro de uma espécie de filme com banda sonora seleccionada.

Ainda hoje, no supermercado, com Rock and Roll Nigger de Patty Smith a besourar-me as orelhas, percebi que as pessoas, os produtos alinhados militarmente nas prateleiras, os meus próprios passos, tudo ganhava uma outra dimensão mais real; super-real. E o meu coração, por momentos, conjugou-se com o meu cérebro de um modo que me fez recordar quem eu era há 25 anos. Foi apenas um lampejo, uma sinapse fulgurante que logo se diluiu no nada, mas o meu corpo hesitou. Será que podemos, de facto, viajar no tempo?

domingo, janeiro 17, 2010

Histórias de terror para embalar


Ontem comprei uma edição portuguesa de As Aventuras de Pinóquio (história de um boneco) de Carlo Collodi com 4 pinturas de Paula Rego à laia de ilustrações. A personagem daquele boneco sempre me fascinou, apesar de não conhecer o texto original (que comecei agora a "namorar"). O potencial imagético das aventuras de Pinóquio entusiasma-me e por cada página que leio são muitas as imagens que me assaltam o espírito.

Não deixa de ser irónico que Pinóquio tenha ganho uma projecção espantosa com a versão dos estúdios de Walt Disney em desenhos animados. Se olharmos bem para essa versão notamos que a narrativa é de cortar à faca. O herói desloca-se constantemente sobre o fio da navalha apesar de todo o açúcar que a Disney lhe pôs em cima. Tem cenas dilacerantes como a dos meninos a transfomarem-se em burros que deixava sempre a minha filha com uma lágrimazita ao canto do olho. Mas a história contada por Collodi é absolutamente cruel, com cenas de uma violência impossível nos contos infantis dos tempos que correm.

Hoje as crianças assistem impassíveis ao horror real que passa nos noticiários enquanto comem a papinha mas não podem confrontar-se com as atrocidades maravilhosas dos velhos contos, dedicados aos seus bisavós, quando eram meninos de colo.

Vampiros


O trágico sismo que soterrou o Haiti na sua própria miséria mostra ao mundo como, também ele, é muito simplesmente miserável. O Haiti foi sendo esquecido pela comunidade internacional à medida que se ia afundando em corrupção e violência. Quem queria saber do Haiti? Há quanto tempo não nos lembrávamos sequer da sua existência? Quantos de nós seriam capazes de o apontar no mapa-mundo sem hesitações?
Até que a desgraça se abateu sobre aquela desgraçada nação, fazendo-a saltar para as primeiras páginas das nossas hipócritas preocupações. As imagens de violência e miséria total excitam a nossa imaginação. A tal "terrible beauty" ganha contornos reais. Junto das fotos que nos chegam de pedaços de corpos soterrados ou de corpos vivos dilacerados e ensanguentados, as pinturas de Bacon ganham uma dimensão quase cómica.

Comportamo-nos como vampiros. Somos vampiros da desgraça humana. A desgraça humana é o sangue que regenera e satisfaz as sociedades mediáticas. Sinto uma certa vertigem, náusea mesmo. Sinto nojo de nós e de mim próprio por escrever estas linhas sem saber ao certo quão hipócrita estou a ser.

sexta-feira, janeiro 15, 2010

Romantismo, século XXI


Uma casa abandonada, negra por fora, como se as paredes tivessem sido pintadas com a noite, surgiu-me hoje na cabeça, já o dia se começava a despedir da chuva e do vento. O frio permanecia. Ler o jornal tem destas coisas. Saltamos de texto em texto, viramos as páginas e mudamos abruptamente de cenário e de argumento, com protagonistas muitas vezes sem face nem passado. A maior parte deles sem futuro. Amanhã o jornal irá para o saco de restos deste mundo com destino certo para o contentor da reciclagem.

Já me estou a perder. Foi a casa abandonada que me surgiu na cabeça a motivar este texto que não sei onde irá parar nem percebo muito bem de onde surgiu. Escrevê-lo é como passear numa ruela esconsa de um bairro pouco recomendável. Voltemos à casa arruinada.

A vida que ela já teve, a alegria que lhe iluminou as paredes por dentro e deixou sorrisos em quem passava na rua lá fora, tudo isso já nem recordações são. Restam apenas esquecimento e ervas daninhas, janelas partidas e portas desengonçadas. A casa está a meio caminho entre um passado remoto e uma eternidade a prazo.

A casa é uma metáfora do nosso planeta. E é isso que dói perceber. O mais certo é que lá fora, no espaço sideral, nem sequer passará nada nem ninguém que possa sentir saudade ou nostalgia do que fomos. E, mesmo que passasse, como iria recordar a humanidade ao olhar o nosso planeta decrépito e arruinado? Ao olhar a casa em ruínas quem se lembra das formigas?

quinta-feira, janeiro 14, 2010

Na sequência do post anterior


Nem de propósito! Após a leve reflexão aqui ontem colocada sobre o discurso ecológico dos mais altos represnetantes da igreja católica, um pouco por toda a parte, eis que surgiram ecos da reacção do Vaticano relativamente ao filme "Avatar":


Vaticano critica ‘Avatar’
O jornal L’Osservatore Romano e a Radio Vaticana, ambos ligados ao Vaticano, qualificaram o filme Avatar, de James Cameron, como simplista e criticaram-no por trazer doutrinas modernas que promovem o culto à natureza como substituto da religião.O porta-voz do Vaticano, padre Federico Lombardi, disse que embora essas avaliações sejam apenas resenhas cinematográficas, sem peso teológico, elas refletem a visão do papa Bento XVI sobre os perigos de converter a natureza numa “nova divindade”. O pontífice tem falado frequentemente sobre a necessidade de proteger o meio ambiente, mas advertindo que não se pode equiparar o ser humano com outros seres vivos, para não cair num neo-paganismo.


Parece existir uma certa necessidade de marcar território por parte do Vaticano. Como de costume, a igreja vem com a conversa de que está tudo muito bem mas quem sabe e pode discursar sobre as coisas do mundo com autoridade é ela própria. É por estas e por outras que a igreja ora avança ora recua nas suas intenções de se afirmar como força de liderança nas grandes causas da humanidade deste lado do planeta religioso. Nos tempos que correm não há grande pachorra para aturar atitudes autoritárias mal disfarçadas como são, normalmente, as que o Vaticano nos vai oferecendo, mesmo quando não lhe pedimos nada. A crítica cinematográfica não é, de todo, o ponto mais forte dos "masters" do Vaticano.

quarta-feira, janeiro 13, 2010

Outra dúvida


Nos últimos tempos a igreja católica tem produzido um discurso cada vez mais atento a questões ambientais. Primeiro foi o Cardeal Patriarca de Lisboa, agora o próprio Papa. Como nem um nem outro são gajos para dar ponto sem nó isto é estratégia pura (e dura?).

Parece-me natural que a igreja se preocupe com questões sociais e ambientais. Afinal de contas está aí para proteger as nossas almas e como elas se escondem dentro de nós enquanto se passeiam neste mundo pretenderá que estejam em bom estado quando chegar a hora de se passarem para o Outro Lado. Vai daí, chegou a hora de lutar pela conservação do planeta. Limpinho!

No entanto dei por mim a pensar se a razão desta nova consciência ecológica não terá um alcance mais longo, se a verdadeira preocupação não será muito mais abstracta que a mera conservação das almas no banho-maria das nossas existências.

Sendo o Deus dos católicos uma emanação de nós próprios, simultanemante Criador e Criado, a Sua existência dependerá tanto da nossa como a nossa depende da existência Dele. Assim, caso a espécie humana entre em declínio até à extinção, Deus irá para o limbo connosco no dia em que o último crente for riscado da face da Terra. Será?

Bento XVI lá vai debitando discurso, exigindo medidas que garantam a inversão da tendência para a destruição do meio ambiente. Saúda-se a preocupação do Sumo Pontifíce, mas será ela dirigida a nós?

domingo, janeiro 10, 2010

A certeza de ter dúvidas


Um grande escritor, um pintor extraordinário, um compositor maravilhoso, qualquer um deles pode, a qualquer momento, produzir uma obra de merda. Não custa quase nada, basta-lhes estarem num dia não ou andarem com a cabeça ocupada com outras cenas, exteriores à grandeza eloquente a que habituaram os seus admiradores. Um café demasiado amargo pode fazer abortar o pensamento de um génio. As coisas que nos proporcionam prazer, que são belas ou perfeitas, nem sempre surgem do mesmo modo perante os nossos olhos. Um ângulo errado, uma luz inapropriada, uma aparelhagem mal equalizada, pequenas coisas que estragam coisas enormes, grãos de areia capazes de emperrar a mais complexa das máquinas. Nós também podemos estragar o trabalho de um artista genial. Com a nossa indiferença, a nossa ignorância ou, muito simplesmente, quando já consumimos tanta arte excelente que não somos capazes de meter para dentro nem mais uma letra, uma nota ou um acorde vibrante de cor sem a seguir regurgitarmos tudo numa torrente de enfado.
Toda esta verborreia a propósito de ter lido A Música do Acaso (The Music of Chance), de Paul Auster. Quem já leu compreenderá onde quero chegar. Quem quiser compreender onde quero chegar terá de ler este livro. Mas poderá acontecer que nada disto faça qualquer sentido. Estou em crer que é o mais certo.

sábado, janeiro 09, 2010

Perturbador


O filme "A Estrada" é de uma beleza terrível. Desde o argumento à fotografia, passando pela meticulosa construção dos cenários e adereços, tudo contribui para a criação de um ambiente opressivo e angustiante que os desempenhos dos actores acentuam e prolongam para lá do suportável (Viggo Mortensen em grande estilo e Robert Duval, na sua pequeníssima aparição, simplesmente grandioso) .

Para lá do suportável? Sim, o filme não me parece aconselhável a almas demasiado frágeis nem a pessoas com estômagos sensíveis. É uma obra, no mínimo, perturbadora.

A beleza tem destas coisas. O filme é quase perfeito na sua dimensão narrativa. Sublime? Anda lá perto.

quinta-feira, janeiro 07, 2010

Lhasa



Morreu Lhasa de Sela. Não há grande coisa a dizer que não sejam lugares comuns acerca de uma cantora que de comum não tinha nada. Escrevo este post apenas para que aqueles que nunca tiveram a felicidade de a ouvir possam agora fazê-lo. Vale bem a pena.
Aqui pode ler-se um pequeno artigo sobre Lhasa. Paz à sua alma luminosa.

domingo, janeiro 03, 2010

Encontro casual em dia de tempestade


Desde há uns quantos anos que nutro pela obra pictórica de Francis Bacon uma admiração fanstasmagórica. Vi uma grande exposição dos seus trabalhos em Serralves, depois tive a sorte de voltar a admirar pinturas de Bacon quando estive em Nova Iorque e agora, nesta minha visita a Dublin, voltei a cruzar-me com o bonacheirão pintor irlandês.

Foi na Dublin City Gallery, The Hugh Lane, onde está patente ao público Francis Bacon, A Terrible Beauty. Trata-se de uma exposição com alguns aspectos bastante curiosos, destacando-se a recriação do estúdio do pintor com toda a sua inacreditável confusão e lixaria, uma imagem de marca. Tentam também mostrar alguns dos elementos de trabalho e inspiração do mestre Bacon, nomeadamente extensas colecções de fotos de onde se destacam as de Muybridge.

Telas recortadas, telas inacabadas, rabiscos parecidos com desenhos (muito poucos, Bacon não desenhava?), recortes de revistas e lixo. Muito lixo. Perante aquela profusão de coisas meio escanifobéticas não resisti e saquei da máquina fotográfica para uma fotozinha (a ilustrar este post). Não havia mais ninguém na sala mas, mal premi o botão, apareceu um gajo pequenino e mal penteado que me disse numa voz fininha "no pictures, sir"(vá lá, sempre me tratou por 'sir'). Eu ainda tentei um "I'm using no flash" (qualquer coisa assim que o meu inglês não desliza com grande perfeição, nem no gelo de Dublin). O gajinho manteve a cara fechada como um molusco viscoso e continuou a abanar a cabeleira oleosa. Pronto, o que tem de ser tem muita força.

Continuei a minha visita sem fotos mas sempre fiquei um pouco mais íntimo de Francis Bacon, um dos meus heróis da pintura.

sábado, janeiro 02, 2010

Longa se torna a espera (na sequência do post anterior)


Já estou em casa. O vôo da Aer Lingus acabou por saír de Dublin com 6 horas de atraso. Tivemos sorte, acho eu, outros vôos foram cancelados o que é muito mais chato do que estar a secar sabendo que, no fim da espera, havemos de olhar a passarada de cima, para lá do negrume das nuvens.

Dentro do avião as hospedeiras de vôo executam aqueles gestos explicativos do funcionamento dos cintos de segurança e da localização das saídas de emergência, uma exibição de bailado contemporâneo que já não via há uns tempos, desde que algumas companhias aéreas passaram a utilizar vídeos e aviões mais modernaços que este onde viajei.

A espera prolongou-se, dentro do avião, até à exaustão. Havia muitas crianças que, quando entrámos, cantarolavam alegremente, decerto entusiasmadas por uma certa agitação de sinal positivo dada pelos adultos, aliviados por saberem que, mais tarde que cedo, haveriam de deixar o frio aeoroporto irlandês. Mas, passado algum tempo, como as rodas do avião se mantinham quietas e coladas ao solo, a nervoseira foi ganhando terreno e as cantorias foram sendo substituídas por pequenos ensaios de choradeira que ameaçavam choro massivo.

Esta situação levou-me a reflectir sobre os mecanismos da impaciência e as flutuações do estado de espírito provocadas pela espera. Como tinha desligado o telemóvel fiquei sem relógio e o tempo foi perdendo sentido. Teriam passado 10 minutos ou uma hora? Impossível saber. É como sermos analfabetos num mundo mediatizado e repleto de mensagens escritas. Para ali estamos, sentados, com um cinto de segurança meio estúpido que não podemos desapertar sem que uma senhora fardada nos venha admoestar como se fossemos miúdos apanhados a cometer alguma asneira.

Quando finalmente o avião levantou para voar de regresso a Portugal senti uma espécie de alívio. Afinal os frágeis mecanismos de um mundo civilizado e mais ou menos previsível ainda funcionavam. A incerteza da barbárie continua apenas do lado de lá da porta. À espera de entrar.

sexta-feira, janeiro 01, 2010

Preso no aeroporto

Escrevo este post no aeoroporto de Dublin onde me encontro a secar por causa do mau tempo. Este teclado nao tem acentos nem cedilhas nem nada daquelas coisinhas bonitas que caracterizam a nossa escrita artistica. Bom, o que se passou para estar aqui com esta conversa da treta? Nevou. caiu um nevao sobre Dublin e, segundo o taxista que me trouxe ate aqui numa velocidade que mais parecia estarmos a atravessar uma ponte suspensa sobre um precipicio, nao havia memoria de tal coisa. Agora para aqui estou sem saber ainda se voo hoje de regresso a casa. Tenho 1 min e alguns segundos para terminar este post. sempre vou dizendo que as ruas de Dublin sao prodigas em chicletes fossilizadas, luvas perdidas das suas irmas e guarda chuvas destruidos. Dublin detesta guarda chuvas.