terça-feira, dezembro 25, 2007

O fiel amigo




Ainda há muito quem recorde que chamamos ao bacalhau "o fiel amigo". É uma designação algo estranha para um peixe, não acham? Dizemos também que o melhor amigo do ser humano é o cão mas o bacalhau bate-se bem com o quadrúpede, aqui por estas bandas. O bacalhau tem desde logo uma vantagem sobre pastores alemães, chiuhauas e buldogues, a gente come-o! Ainda por cima há mil e uma (ou duas) maneiras de cozinhar o bacalhau o que dá para satisfazer praticamente todos os gostos, mesmo os mais esquisititos.
Nesta época de Natal, em Portugal, pelo menos, come-se bacalhau ás toneladas. Cozido, assado na brasa, com natas e couves e batatas, as maneiras de cozinhar este amigo de longa data esgotam a imaginação do português humano.
Ainda ontem comi bacalhau. Nem gosto muito de ver o bicho deitado no meu prato mas enfim, Natal obriga e, vamos lá, até nem sabe tão mal quanto poderia parecer quando era criança e fugia dele como o diabo foge da cruz. O Natal é daquelas épocas em que um gajo parece não resistir a certas tradições. A árvore de Natal (tenho uma artificial "made in Vietnam!!!), as prendas, a reunião de família... o bacalhau. A quadra natalícia sem estes ingredientes não sabe bem, muito menos fica completa. Acabo de regressar de casa dos meus pais onde fui passar os últimos dias. Três ou quatro dias passados a comer e a beber em frente à lareira. A conversar, a rir. Três ou quatro dias a sentir que sempre houve, há e haverá um lugar onde o tempo não passa da mesma forma que passa noutros lugares, onde as recordações de muitos anos se cruzam com premonições de diferentes futuros. Os filhos, os sobrinhos, a criançada toda. Os familiares, os vizinhos, a casa.
E ele lá estava, como sempre, deitado e à espera que lhe espetasse o garfo. O fiel amigo, sempre presente, dê lá por onde der, cozido, assado, com natas, couves, batatas...

sexta-feira, dezembro 21, 2007

O que é o Natal?

O Natal é realmente uma coisa estranha.
No supermercado cá do bairro há uma pouco usual fila de velhinhos e velhinhas com caixas de Ferrero Rocher debaixo do braço, alinhadinhos, defronte a um balcão improvisado onde uma moçoila com bochechas rosadas e um aspecto levemente tresloucado vai fazendo embrulhos. Como se fosse uma "empacotadeira".
Mais para o fim da tarde, talvez noite (estava escuro), há uma pouco usual fila de carros de aspecto infinito, a atirar para o apocalíptico, nos caminhos que vão dar ao centro comercial. Tem a sua beleza. Luzinhas vermelhas dos que vão, branquelas, dos que vêm. Uns movem-se, outros nem por isso.
Na FNAC surpreendentes filas de pessoas de meia idade, com aspecto de serem da classe média e dispostas a gastar para aí metade dos ordenados em livros, DVD's, CD's e essas coisas que ali se vendem às pazadas nesta época festiva.
O Natal é a época das filas estranhas!

quinta-feira, dezembro 20, 2007

Interlúdio



Francisco Goya, o Surdo. A noite passada andei com um livro sobre a obra de Goya e um catálogo de uma exposição de gravuras da sua autoria para trás e para diante. Folheei, li. Voltei a folhear e a reler. O surpreendente Goya. Uma visita ao Museu do Prado, em Madrid, para ver alguns dos trabalhos do Mestre. Incomparável Goya. Quase Deus, revelado na genialidade de Goya. Deus quase é revelado. Ah, enormérrimo Goya!

terça-feira, dezembro 18, 2007

Olha quem fala!


Belmiro de Azevedo, o capitalista mais popular de Portugal, vem juntar a sua voz às daqueles que consideram o referendo ao Tratado de Lisboa uma coisa ruim. Só se admirará quem andar mais distraído que um orangotango enjaulado, mas convém atentar um pouco nas afirmações deste benemérito.
Diz Belmiro: "Só pode haver referendo em questões nacionais e regionais quando a pergunta é suficientemente simples para que a resposta não seja um voto tolo." O tom da afirmação deixa um gajo logo a olhar de lado; "só pode"!? Quem diz? Diz Belmiro. Com que autoridade? O homem deve ter-se em alta consideração a si próprio. O que até nem lhe fica mal, mas, da parte que me toca, as opiniões dele em matérias de ordem social e humana não me interessam, antes pelo contrário. Quanto ao voto tolo é uma ideia interessante e reveladora.
Mas o mais curioso é que, mais à frente, Belmiro conclui que o povo português não está preparado para responder em referendo a não ser "a questões de liberdade pública ou sobre grandes ameaças como o terrorismo." Ou seja, o povão só está habilitado a dar respostas que se enquadrem nas expectativas de quem lhas coloca. Como, normalmente, os referendos são da iniciativa dos poderes instituídos, quando a questão lhes desagrada nem sequer se coloca, como é o caso presente. Belmiro, habituado a mandar e ordenar e ter, ainda por cima, os sapatos lambidos, acha que Sócrates, um dia destes, vão dizer "en passant" que o referendo foi uma promessa irreflectida, daquelas que se fazem na cama após uma quente noite de amor ou quando se quer convencer alguém a entrar nela. A paixão de Sócrates pelos eleitores esmoreceu de forma significativa desde que se apanhou no poleiro com maioria absoluta. Resumindo, Belmiro imagina Sócrates como o patrão de Portugal que pode pôr e dispor de tudo e de todos como qualquer bom capitalista o faz com aqueles que lhe obedecem. E com os seus cães.
Belmiro bem podia ter ficado calado, mas enfim... o homem parece que é bom a fazer contas. Será que ele já leu a notícia que fica no outro lado deste link http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1314141&idCanal=13?

domingo, dezembro 16, 2007

Saudade

Há ocasiões em que fico triste por não ter 12 ou 13 anos. 14, vá lá, por aí assim. Fui ver A Bússula Dourada http://www.goldencompassmovie.com/ e senti essa saudade, quase inveja, perante a grandeza fantástica que o filme me propunha. Eu sei o que uma narrativa como aquela pode proporcionar a um adolescente, lembro-me vagamente de uma intensa capacidade de sonhar, de conseguir cruzar a imaginação com a realidade tornando tudo muito mais intenso, muito mais brilhante. A possibilidade de ser feliz a crescer de tal modo que o peito se enche de vontade de ser, de fazer, de ver acontecer, acreditando que tudo é possível, apesar de conhecermos os limites impostos ao mundo por aquilo que designamos como realidade. A Bússula Dourada é um filme deslumbrante, empolgante, épico, maravilhoso. Infelizmente tenho quarenta e picos e já não sou capaz de entrar por ali dentro ao ponto de me perder, de acreditar. Já não consigo vestir a pele das personagens de um filme assim. E tenho pena, sinto saudade de brincar e fazer de conta com tal competência que o mundo se transformava noutro mundo comigo dentro. É perante objectos tão surpreendentes como este filme que sinto nostalgia da infância.

sábado, dezembro 15, 2007

Feliz Natal, pessoal!


Anda tudo doido! As pessoas parecem ventoínhas, parecem abelhas, beija-flores, esvoaçando em redor das montras, entrando nas lojas e tocando a mercadoria com dedinhos gulosos, sonhadores. As pessoas andam numa lufa-lufa de deixar os ajudantes do Pai Natal em estado de medo pânico. As pessoas querem, elas desejam, elas almejam tudo o que vêem e o que não sabem ainda que desejam mas, decerto, irão desejar ainda. O mais tardar amanhã vão desejá-lo. E comprarm e embrulham a compra para mais tarde a oferecerem a alguém que a desembrulhe. Anda tudo doido. Consumindo, consumindo, consumindo. Consome-se a vida como se fosse fumada. Como se fosse um charuto cubano na boca do Pai Natal, a sorvê-la de uma vezada com aqueles pulmões poderosos de tanto fazer Oh-oh-oh. O mundo roda mais rápido nestes dias. Deve ser isso que põe tudo doido. E como estamos doidos andamos mais depressa e o mundo mais rápido. E ficamos tontos e andamos mais depressa... quando tudo terminar vamos perceber que nada disto adiantou grande coisa. Que a nossa vida não mudou com aquilo que saiu do embrulho. Que aquilo que saiu do embrulho é, afinal, muito diferente daquilo que imaginámos que lá tínhamos enfiado.
Espero que, como de costume, as pessoas estejam um pouco mais felizes no dia dos embrulhos do que o costume nos outros dias. É para isso que serve esta merdice toda. Esta tontice, esta sofreguidão, este consumismo desalmado, tudo isto é apenas vontade de amar e ser amado. Só mais um bocadinho, por uma vez que seja.
Feliz Natal pessoal!

quinta-feira, dezembro 13, 2007

Já fomos...

Pois sim, referendo. Essa é forte! Já fomos levados e não adianta barafustar. Os gajos que assinaram a coisa levaram uma canetinha de prata em jeito de recordação e ainda devem estar a preparar-se para um lauto banquete oferecido pelo Presidente da República no Museu dos Coches. A escolha do local para irem encher o bandulho após o esforço de uma assinaturazita não poderia ser mais simbólica. Afinal de contas o coche é uma espécie de ícone das soberanias absolutas, uma recordação do tempo em que o povinho nem pensar podia quanto mais abrir a boca. Tal qual nos vão fazendo nos tempos que escorrem.
Apesar de tudo e tendo em conta a participação popular nos anteriores referendos realizados no nosso santo país, talvez seja melhor assim. Sempre podemos encher o peito de ar e berrar uns impropérios sobre estes neo-fascistas de pacotilha que nos impõem a vontade das multinacionais sem sequer nos pedirem licença. Se o povinho fosse chamado a manifestar-se nas urnas e participasse com uns 30% de votantes era uma vergonha do caraças e ainda teríamos de ver aqueles estadistas incomparáveis a rirem-se do pessoal.
Assim sendo podemos invectivá-los à vontade porque o povo é soberano (esta expressão é de ir às lágrimas!).

segunda-feira, dezembro 10, 2007

O amigo Kadhafi (e outros seres vivos)

"A Cimeira UE-África provou que os conceitos de ditador e de corrupto são relativos, de geometria variável: isto é, há ditadores bons, como haverá corruptos sérios."
João Paulo Guerra, "Diário Económico", 10-12-2007

Afinal o que é mais importante nas relações entre a Europa e a África? Ou então: quantas europas há? E quantas áfricas? Ou ainda: um ditador pode ser eleito democráticamente? E por aí adiante.
A célebre cimeira que ontem terminou, afinal, pariu um rato. Quando muito pariu uma ratazana. Sócrates e Barroso esforçam-se por considerar a dita cuja como tendo sido uma página dos livros de História acabadinha de ser escrita. Uma página brilhante, a ser lida com admiração e devoção pelas gerações futuras, os seus nomes recordados como sinónimos de grandes estadistas, homens capazes de ombrear com os gigantes políticos do passado, capazes de fazerem sombra aos gigantes políticos do futuro.
Na verdade não parece ter saído dali nada de substantivo. Uma nova postura entre os dirigentes dos dois continentes vizinhos, possibilidades de entendimento no futuro, negócios meio encobertos por divergências difíceis de ultrapassar, um leve agitar de fantasmas do passado.
Mas nada garante que esta cimeira seja recordada tal como poderá não ser esquecida tão depressa. O que ficou foi um conjunto de imagens que juntam alguns déspotas mais ou menos sanguinários com políticos ambiciosos e ávidos de protagonismo que, para posarem juntos na fotografia, evitaram falar de assuntos melindrosos e substituiram dentes cerrados por sorrisos luminosos.
Kadhafi é, afinal, um amigo. Um gajo porreiro. Um líder africano amado e admirado deste lado do Mar Mediterrâneo. Ou não é? Ficou a imagem de uma espécie de zombie a flanar por aí, com ar de estar a drunfar duas caixas de Valium 10 em cada hemisfério cerebral. Sócrates apertou-lhe a mão, fez-lhe alguns elogios mais ou menos velados, indicou-lhe o caminho, sorriu-lhe, fez tudo o que podia para não melindrar o amigo Kadhafi. Em nome de quê? Negócios. Dinheirinho. É a Economia a ditar a amizade entre os povos. Essa deusa universal, capaz de fazer esquecer as diferenças e aproximar os opostos. Essa deusa da amizade.
Foi bonito de ver os amiguinhos a apertarem as mãos em vez de apertarem as respectivas gargantas.

domingo, dezembro 09, 2007

Sem título (e sem imagem)

Às vezes até parece que o artista se esforça por limpar a sua obra ao ponto de a deixar toda polidinha, sem sombra de humanidade, sem pingo de moralismo, apenas uma (muito) vaga sombra de narrativa. Narrativa preferencialmente hermética e profundamente pessoal. Individual. Tão pessoal e tão individual que pode apenas ser única. Sendo única será tremendamente original. O artista, esse, paira sobre o mundo aborrecido, ligeiramente entusiasmado quando alguém ou alguma coisa parece ter compreendido algo daquilo que fez ou pensou que queria dizer mas... o mundo é tão "boring"! Não há nada que possa preencher este vazio imenso que esburaca o peito do nosso artista. Um génio incompreendido que nunca percebeu que o Romantismo não é sinónimo de oferecer flores a alguém ou declarar amor a uma lua mais cheia que vazia. Esqueceu-se de estudar a História da Arte por ser tão, tão tremendamente "boring". O que interessa aquilo que aconteceu antes se o futuro está todinho por inventar? O que interessa o que fizeram uns chatos há mais de 100 anos atrás se o génio está todo ali, embalado naquele corpinho, empacotado dentro daquele cérebro de foca tropical? Na hora de dar um nome ou escolher designação para o resultado do seu trabalho, o artista genial saca do seu mais estonteante trunfo, a sua cartada genial e declara: SEM TÍTULO!!!! Nem outra coisa poderia ser. Sem título nem nada que se aproveite. A não ser o génio do autor, claro está. O artista genial... o tal... estás a compreender-me leitor, não é verdade? É que eu sou um artista, e este post não tem título. Ou melhor é sem título. Quer dizer, afinal de contas, "sem título" é um título. O mais vulgar de todos.

Uma historinha de amor (Eu Africa...)

Sempre imaginei Portugal como o mais africano de todos os países do mundo que não ficam naquele continente. Não só pela proximidade geográfica ou pela recordação das tentativas de dominação com que sonharam alguns dos reis que por aqui reinaram. Portugal é quase africano na maneira de encarar o mundo, na dificuldade em combater as desigualdades sociais e erradicar a pobreza, na forma como permite que se vá instalando uma quase cleptocracia nas cadeiras do poder e da governação.
Portugal é quase África pelo calor e pela bonomia de uma parte significativa da população. É quase África por se ter misturado nela e tê-la trazido consigo, espalhando-a pelo resto do mundo todo. Portugal é parte de África por vocação e por paixão.
A cimeira UE-África que tanto tem agitado os últimos dias da nossa capital é apenas mais uma prova desta paixão, uma carta de amor transviada, um novo pedido de casamento, desta vez envergonhado. Queremos lá saber que Mugabe é isto ou Kadhafi aquilo. Que é isso dos direitos humanos quando a paixão é tão grande que só conseguimos ver aquilo que nem sabemos querer ver?
Esta cimeira é uma coisa bonita de se ver, é quase poesia, é quase só amor... ao que parece amor não correspondido.