O tempo de olhar para trás nunca mais acabava. Assim, da janela para baixo, o mundo até poderia estar de pernas para o ar. Mas tenho a impressão de que não estava e que ainda se encontra mais ou menos da mesma maneira. Sujo, pequenino e lá em baixo na rua. Nem mais nem menos.
O vizinho lá estaria, a morrer, como sempre, com aquele olhar de quem está farto da vida e tem saudades do cabelo. Já deixara de chatear. Parecia que tinha perdido a força de se intrometer nos minutos menos interessantes e nos outros todos, a importunar os momentos de intimidade sem pedir licença. Como se fosse dono do tempo e o obrigasse a ser sempre tempo de olhar para trás. E era por isso que nunca mais acabava. Mas agora talvez isso já fosse passado, não me lembrava bem.
Talvez o tempo resolvesse andar e ir dali para fora, para a frente, que é o sentido que imaginamos que o tempo usa nas suas deslocações. Dantes o tempo andava mais às voltas, nos mostradores dos relógios, como um cão estúpido a tentar morder a cauda. Ou talvez fosse alguma pulga maldita. E rodava, rodava, rodava, dando aquela sensação de que as coisas recomeçavam continuamente, sem nunca se cansarem de ser coisas que é algo complicado porque uma coisa, para ser coisa, é porque ainda não tem um nome que lhe dê um lugar no mundo.
O tempo novo, digital, brilhante e despachado, um pouco frenético, reconheço, desloca-se na vertigem dos dígitos. Então se o mostrador for daqueles que marcam os milésimos de segundo, um gajo até pode perder o tino a olhar para ele. Imaginar que está a envelhecer aquela velocidade não deve dar saúde a ninguém a menos que se tenha vontade de morrer e não haja coragem de trocar o relógio por uma pistola encostada ao céu da boca. A táctica que eu gostava de ter ensinado ao meu avô consiste em desviar o olhar e fazer com que o tempo fique suspenso. Esquecendo o relógio o tempo é capaz de se descontrolar.
A suspensão da acção é uma arte imensa. A arte consiste na capacidade de utilizar essa suspensão no momento certo (ou no momento errado, acho que tanto faz) acreditando que conseguimos realizar algo no momento imediatamente anterior à suspensão do gesto, da acção, do pensamento, seja lá o que for que estejamos a utilizar. A arte é isso mesmo. Suspensão. Depois o objecto que criamos fica para ali, suspenso, fora do tempo, à espera de uma presa que será o observador.
A arte é como um bicho de atalaia. E o tempo, com a arte, não brinca. Penso que seja por não poder. Porque o tempo é como meu vizinho. Intromete-se, atrapalha o descanso, faz da nossa intimidade algo que pretende tirar-nos. Não é que queira fazer nada com o que nos tira. É só para chatear. Porque isso de ser tempo, eterno, a andar em circunferência ou aos pinotes de dígito para dígito, também deve ser uma seca das antigas!