segunda-feira, dezembro 16, 2024

Beber ou não beber (uma bujeca) eis uma questão

     Decerto te terá também acontecido: tiveste uma ideia luminosa, uma revelação fulgurante, o mundo ganhou um contorno mais nítido, viveste um momento de fugacíssima felicidade. Tens a sensação de teres encontrado um pequeno tesouro escondido dentro de ti. Descobriste um fragmento da Verdade, foste tu quem o descobriu!

    Iupi!

    A sensação da descoberta de algo especial faz com que te sintas igualmente raro. Por momentos és um esteta, és um profeta, um cientista da alma. Mais adiante ouves uma frase, lês um parágrafo num livro de páginas amarelentas, lembras-te de algo que há muito havias esquecido e percebes. Percebes que a tal ideia, o tal tesouro, haviam já sido encontrados ou intuídos por alguém antes de ti. Ó tristeza, ó decepção!

    A mim já isto aconteceu muito mais que  várias vezes. Afinal sou um gajo como os outros, não posso considerar-me particularmente brilhante por ter descoberto o que outros já haviam encontrado, observado e dissecado antes de mim. Isso não faz de mim uma fraude, apenas uma pessoa iludida. Mas se tudo for apenas ilusão serei pouco mais do que alguém perfeitamente integrado no nada que tudo abarca.

    Não tenho a certeza de ter chegado a uma conclusão, nem sei se isso terá alguma utilidade (a incerteza ou a conclusão). O melhor é beber uma bujeca. Ou não.

domingo, dezembro 15, 2024

Lista de coisas fundamentais

1 - Acordei bem-disposto.
2 - Li coisas interessantes.
2 - Fiz uma caminhada.
3 - Vi pessoas.
4 - Comprei mantimentos no supermercado.
5 -Tomei um duche.
6 - Lavei louça.
7 - Almocei.
8 - Limpei arquivos no computador.
9 - Escrevi esta lista.
O dia ainda vai a meio.

terça-feira, dezembro 10, 2024

Espécie de elegia

     Não sei o que dizer. Sinceramente!? Nem sequer sei o que fazer. Assim sendo, deixo o trabalho entregue aos mecanismos do relógio na esperança de que as coisas possam fazer algum sentido caso seja o Tempo a responsabilizar-se pelo desenrolar dos acontecimentos. Entregar o destino a molas e rodas dentadas, ponteiros presos ao centro da circunferência das horas do dia.

    A impotência é grande. Perante a inevitabilidade dos acontecimentos encolho-me, abstenho-me, anulo-me. Faço a única coisa que me parece estar ao meu alcance: desenho. Como se cada imagem pudesse sublimar tudo o que se revolve dentro do meu ser; as tripas misturadas com a alma, o coração a tentar ser inteligente, as mãos resolvendo o que o cérebro não abrange sequer, coisas impossíveis, coisas patéticas: humanidade.

    Tivesse eu garras e presas, fosse eu todo músculo, todo instinto, todo arrojo, fosse eu um lobo faminto e talvez o mundo fizesse mais sentido, talvez pudesse viver mais sossegado, apesar do frio, apesar da fome, apesar dos homens.

domingo, dezembro 08, 2024

O problema

     É tão difícil compreender o que quer que seja mais complexo do que "o sol nasce - o sol põe-se". Mesmo isso pode tornar-se complicado, o Mundo não se deixa capturar. De forma nenhuma. Tenta-se a matemática, tenta-se a poesia, o esoterismo e a filosofia. Seja qual for a linguagem através da qual tentemos ler os sinais que o Mundo nos vai deixando a pontuar o caminho percorrido pela nossa espécie ao atravessar a floresta do Tempo, seremos sempre pequenos polegares perdidos e aterrorizados à procura de conforto e protecção.

    O caminho individual não parece funcionar lá muito bem, precisamos de companhia. Há passarões fantasmagóricos sempre dispostos a bicarem os sinais deixados pelo Mundo, os passarões querem a nossa perdição. E nós perdemo-nos. O entendimento do Mundo é assunto tão vasto e complexo que inventámos máquinas para o entenderem por nós. Mas são máquinas, Senhor! Os resultados das suas reflexões serão sempre insuficientes, desviados do Humano, pensamentos artificiais. Não servem para nós, não resolvem o nosso problema.

    Quanto mais depressa nos desenganarmos melhor. Melhor e pior. Quanto mais depressa percebermos que estamos sós, que fomos abandonados na floresta, quanto mais depressa abrirmos os olhos para a espessa escuridão que nos envolve, mais depressa perceberemos que não existe nada que possamos designar por "salvação". Para nos "salvarmos" teríamos de nos exterminar a nós próprios e, caso o fizéssemos, nunca poderíamos confirmar ter encontrado a solução do problema.

    Somos como um cão. Um cão que tente morder a própria cauda acabada de cortar rente com uma navalha afiada.

segunda-feira, dezembro 02, 2024

19 anos

     No passado dia 28 de Novembro o 100 Cabeças completou 19 anos de existência virtual. Não há qualquer sentimento especial associado à data. Não há qualquer situação extraordinária a reportar. As coisas são o que são, são pouco ou nada. E 19 anos a escrevinhar posts num Blogue são isso mesmo.

    Os textos que aqui vou deixando têm-me sido úteis em várias situações. Já me serviram para escrever peças de Teatro, já me serviram para programas de exposições e apresentações públicas. O 100 Cabeças é uma espécie de ferramenta.

    Irei continuar a fazer isto até não conseguir mais fazê-lo. Ainda o farei dentro de 19 anos?

sábado, novembro 30, 2024

Vinha trazer-vos o Amor

     Vinha trazer-vos o Amor mas tenho a sensação de ser coisa que vos não faz falta. Tendes as Black Friday, tendes o Tik Tok e o Facebook, os smartphones e as companhias low cost, tendes tudo e tanta coisa, que falta vos poderá fazer algo tão etéreo, vago e indefinido como "é coisa que arde sem se ver"?

    Vinha trazer-vos o Amor mas decidi ficar-me pela tasca da esquina a comer um choco frito pobremente regado com uma imperial, fresca q.b.

quinta-feira, novembro 28, 2024

Ausência absoluta

     A sala estava silenciosa, todo o ruído provinha do exterior. Vozes que ondulavam no esforço de penetrar as paredes, ultrapassar as janelas fechadas, vozes que haveriam de pertencer a alguém mas que por agora não tinham rosto. Talvez nunca tivessem. Uma sirene distante encantou o silêncio quase conseguindo levá-lo com ela. Lá longe, para longe. Uma sirene...

    A sala permanecia, boiava no silêncio.

    Quatro filas de carteiras com tampo bege, cadeiras nem todas devidamente arrumadas, nem todas iguais. Aquele espaço era o seu reino. Paredes sujas, a porta com um vidro magrinho, plantado ao alto, um ecrã e um projector e um computador asmático, companheiro de trabalho mais ou menos fiel, escravo de quantos sentavam o cu naquela cadeira onde escrevia, agora mesmo, estas palavras. Passos no corredor, vozes, cadeiras arrastadas no andar de cima. Silêncio. Silêncio outra vez.

    A sala, vazia e pouco limpa, era o seu reino apesar de não ser rei  de coisa nenhuma, de não pertencer a lugar algum, nem em sonhos. Talvez não quisesse ser nem pertencer. Talvez não quisesse nada, nem sequer ser personagem deste conto mal-ajambrado. Talvez não existisse, não exista.

    A sala, vazia! Todo o ruído disparado do exterior. Luz acesa, computador ligado. Sala silenciosa. Há um encanto indefinível na ausência absoluta, talvez por podermos apenas imaginá-la. Sons cada vez mais espaçados, mais distantes, o vulto de um pássaro na janela, recortado sobre o céu que escurece com a tarde a ir embora, um céu agora apenas azulado. O apito de um professor de educação física soou longe, como se fosse um lamento.

    A sala não existia mas, no entanto, ali estava. Vazia. Silenciosa. Abandonada.

domingo, novembro 24, 2024

Leitura

     Influenciado pela imaginação de Borges (aliada à minha com o fito de me fazer planar algures entre o céu e o inferno) folheei brevemente a Divina Comédia (edição bilingue com tradução de Vasco Graça Moura). Senti o impacto da coisa, tal qual Borges descreve na sua conferência em Sete Noites (vi Cerebro com uma nitidez nunca antes sequer imaginada). 

    Um gajo, não tendo problemas de guito, pensa logo: "podia comprar isto". Mas depois de reflectir um pouco, este gajo, percebe que nunca iria ler a cena até ao fim, que seria mais um belo livro a fazer-lhe caretas lá do cimo da prateleira. Devolvido o livro ao seu lugar um gajo pensa: "nem sequer Os Lusíadas fui ainda capaz de ler".

    Que livros ler, quando os ler, como os ler, o que deixar de fazer para fazê-lo? Eis uma sequência de incómodas questões que o gajo prefere ignorar.

quinta-feira, novembro 21, 2024

Bom dia

     Não deveria esquecer-me de que todos os dias podem começar como este começou. Começou com a leitura de uma das conferências de Borges publicadas em Sete Noites (esta versando a Divina Comédia). Não tanto pela imensa erudição que irradia das palavras escritas, não tanto pela beleza rítmica da forma (que mesmo na tradução para português não é perdida), não tanto pelo poço celestial do conteúdo: os dias deviam começar desta forma pois é leitura que me faz recordar o prazer que é estar vivo.

    Dou por mim a pensar como seria agradável que após a hora da nossa morte pudéssemos continuar a ler; como seria agradável que o universo continuasse para lá da cortina dos sentidos, uma infindável biblioteca, como o terá sonhado Borges; dou por mim a pensar que o inferno decerto será semelhante ao silencioso deserto de ideias que imaginei ainda há pouco.

sábado, novembro 16, 2024

Amanhã é dia do Senhor

     Celebrar o Nada, adorar o Vazio, eis a essência de todas as religiões. Ora tentamos preencher as lacunas criadas pela ausência de raciocínio, ora as ignoramos, afirmando tratar-se a ignorância de um mistério. Não fosse a religião manifestação da nossa absoluta incapacidade para compreender o mundo, poderíamos imaginá-la fruto de algum tipo de construção intelectual destinada a preencher o Nada, destinada a agitar o Vazio.

    A religião será, então, uma emanação da nossa impotência, da nossa incapacidade para encontrarmos justificação para sermos aquilo que somos (mesmo que não sejamos capazes de o compreender). 

    Estou convencido de que, sendo nós bichos como os outros, não existe o Nada, muito menos o Vazio; isto dispensa por completo Deus de ser o que imaginamos que Ele seja, o que decerto muito O aliviará. Isto porque Deus, a existir, não seria capaz de evitar esta mesma sensação de perda constante, esta angústia de não encontrar um sentido para o que quer que seja. Afinal de contas, não fomos nós criados à Sua imagem e semelhança?

sábado, novembro 09, 2024

A felicidade num buraco

     Ficar na sombra não é das coisas mais fáceis a que um gajo possa aspirar. A tentação de deitar um cornicho de fora é muito forte. Querer banhar a fronte na luz do sol, mostrar o sorriso, explicar a quem esteja a ouvir como somos gajos espectaculares, a compulsão da exposição social fala alto. Mas não tão alto que abafe a tendência natural para a anulação do ego. Quando esta existe.

    Uma educação católica em meio rural cava profundas valas onde semeamos modéstia com uma eficácia tal que a colheita dura a vida toda. E tentamos mudar, tentamos deixar a agricultura, imaginar outras actividades, mas nada funciona. Campónio uma vez, campónio a vida toda. Nunca deixarei de ser um campónio. Tempos houve em que a constatação dessa evidência me incomodou. Nos tempos que correm a condição de eterno campónio enche-me de orgulho. Vai na volta esse orgulho não é mais que auto-defesa. É bem possível que assim seja. 

    A passagem do tempo fornece a cada um de nós a possibilidade de vestir uma armadura mais ou menos eficaz contra os temores que o mundo vai sendo capaz de nos infundir. O mundo que se infunda! Que se infunda esta merda toda. Vou cavar um buraquinho onde possa aninhar-me confortavelmente, como imaginei a toca da raposa Salta Pocinhas, heroína imbatível da minha mais tenra infância. E nesse buraquinho serei feliz, até ao esquecimento absoluto.

quinta-feira, novembro 07, 2024

Um lugar infecto

     O Troglodita adiantou-se ao Pedinte mas nem um nem outro terão, jamais, acesso à informação necessária. Para eles o ouro não chega a ser uma miragem. Nunca sairão daquele lugar infecto. "Que é o único lugar a que têm direito", pensou o homenzinho no guichet enquanto contava notas de 5 e 10 euros.

    O Pedinte e o Troglodita são extremos de uma linha sinuosa. O Pedinte não desiste da existência. Estende a mão, implora baixinho. Podemos não o ver mas não é porque seja invisível. É por sermos cegos. 

    O Troglodita é um gajo um pouco perigoso. Não percebe bem nada do que o rodeia. Tem feelings, por vezes feelings muito ásperos; tem sentimentos confusos. Antipatiza naturalmente com o Pedinte talvez por sentir que há, entre eles, algum tipo de competição. Por atenção? Por espaço? O Troglodita não compreende nada.

    "São umas bestas!" - o homenzinho do guichet não passa de um miserável (a vários níveis) mas contemplar aqueles dois maltrapilhos, que vivem e cagam no meio da rua, fá-lo sentir-se um nadinha poderoso. O suficiente para se imaginar uma personagem importante.

    O Troglodita adiantou-se ao Pedinte mas nem um nem outro terão, jamais, acesso à informação necessária. Nunca sairão daquele lugar infecto.

quinta-feira, outubro 31, 2024

Momento perdido

     Ler e reler o que antes escrevera vestia-lhe o espírito com um fato confusor, como o de Fred, a personagem de K. Dick. "Não sou ninguém" - pensou ele. Na verdade queria dizer que poderia ser qualquer um, que seria sempre alguém, porventura alguma coisa. Tremiam-lhe as mãos.

    Quis escrever algo que fizesse sentido mas não foi capaz.

quarta-feira, outubro 30, 2024

Enfartamento

     Hoje sinto-me incrivelmente farto desta merda toda. Talvez amanhã tenha perdido esta estranha sensação de vazio, de falta de motivação. Motivação para quê? - perguntarás tu, leitor amigo. Também não sei, respondo eu. Motivação para nada, motivação para tudo ou apenas para alguma coisa. Suspeito que é precisamente por não saber do que estou a falar que sinto esta espécie de náusea, esta espécie de vertigem, este desgosto em relação ao mundo. E a mim próprio.

    Sinto-me incrivelmente farto desta merda toda.

segunda-feira, outubro 28, 2024

Fábula abstrusa

     Cantam passarinhos dentro desta minha cabeça. Piu, piu, repiupiupiu, cantam eles e eu avanço feliz, aos pulinhos pelo trilho da floresta. As árvores são de betão, as vacas deslocam-se sobre rodas, o prado é pintado de verde com umas pintas vermelhas aqui e acolá. São papoilas. 

    Não tenho tempo a ganhar, como tal não poderei perdê-lo. Um pterodáctilo passeia lá bem no alto, um macaquito sem pêlo olha-me de soslaio. Esconde qualquer coisa encostada ao peito ao virar-me as costas. Não me interesso por ele, muito menos por aquilo que esconde. Quero que o macaco se lixe. Prefiro dar atenção aos passarinhos que me esvoaçam no sótão. Piu-piu-piu-trólarópiupiu. A música é alegre e deixa-me bem disposto.

    Chego finalmente à escola. Tudo parece continuar no devido lugar. A bicharada esvoaça, rasteja, saltita, urra, pipila, zurra, tudo parece confirmar a torpe banalidade do costume. Quem tiver de comer haverá de fazê-lo, quem tiver sina de ser comido haverá de tentar escapar à dentuça alheia.

    Peixes grandes comem peixes pequenos.

terça-feira, outubro 22, 2024

Babel

     O Antigo Testamento é uma obra muito lida e muito comentada. Os exegetas cristãos esforçam-se por fazer leituras que não provoquem desconforto a Jeová, não vá o Diabo tecê-las. Assim, a tradição vai esclerosando o texto e nada de novo acontece. Ler a Bíblia é como ler o manual de montagem de uma estante do Ikea, está lá tudo muito explicadinho e não restam dúvidas, não há margem para erros de interpretação.

    Aconteceu-me recentemente com a passagem que refere a Torre de Babel (Génesis:11).

    Os exegetas interpretam a confusão linguística como sendo um castigo de Deus, penalizando a soberba humana, por pretenderem os homens construir uma torre que alcançasse os céus. Não me parece justo. Segundo a narrativa, a construção da Torre de Babel começa pouco tempo após o Dilúvio (esse sim, parece ser um inequívoco castigo divino, narrado em várias histórias anteriores ao texto bíblico, nomeadamente no Gilgamesh).

    Na minha maneira de ver, depois do Dilúvio a raça humana ficou traumatizada e terá sido o cagaço o combustível que pôs em andamento a construção da torre. Os homens não queriam aproximar-se fisicamente de Deus. Isso não faz sentido, qual a razão que os levaria a pretender proximidade com um ser incorpóreo que, ainda por cima, é omnipresente. Nem um macaco pensaria em semelhante patetice!

    Na minha maneira de ver, a construção da torre teve como principal motivo afastar os homens de um possível segundo dilúvio. Eles não queriam aproximar-se de nada, apenas afastar-se de nova subida das águas. 

    Então, porque haveria Jeová de os impedir de tal coisa? Porque Jeová é um Deus ciumento, vingativo e controlador e, evitando que os seres humanos conseguissem protecção nas alturas, conseguiria mantê-los sob pressão e ameaça, garantido desse modo que as suas leis e regras seriam mais facilmente observadas. Deus queria carneiros no Seu rebanho.

    Só não percebo muito bem porque carga de água criou Ele o homem se a carneirada lhe convinha muitíssimo melhor. Talvez por ser um Deus cínico? Se Ele criou o homem à sua imagem e semelhança decerto não lhe terá transmitido apenas a beleza simétrica que nos caracteriza. Somos bichos de personalidade bem vincada, Pai.

quinta-feira, outubro 17, 2024

Palavras em palco

     A palavra ou vem controlada, com intenção, ou transporta consigo uma certa dose de confusão e  arrisca-se a arrastar a cena penosamente. Os actores parecem improvisar o gesto com mais à vontade do que improvisam com palavras. 

    Tudo isto poderá confirmar a ideia de que precisamos de saber o que fazer no palco antes de nos atirarmos a fazê-lo. Mesmo os resultados positivos de uma improvisação são mais tarde recuperados em sessões de ensaio de modo a procurar um sentido mais estruturado para o seu significado. Não consigo imaginar os espectáculos idealizados por Merce Cunningham.

    Lá no fundo, a ideia é não sermos demasiado obcecados com regras na abordagem ao objecto artístico. Nem tão radicais como Cunningham nem tão rígidos como um ídolo cicládico.

domingo, outubro 13, 2024

Diálogo ao pé da escada

     - Mas isso é mentira!

     - Isto é mentira? Isto é mentira... mas em que mundo vives tu? Nos dias que correm a mentira é uma questão de opinião.

     - Então, e a verdade?

     - A verdade é um conceito plástico; molda-se de acordo com os teus objectivos. Porra, não aprendes nada comigo!?

     - Estou a tentar, mas não é fácil. Contigo nada é definido, nada é concreto, está sempre tudo a mudar. Uma coisa é isto e, um minuto mais tarde, essa coisa já se transformou em outra coisa. É confuso.

    - É confuso porque eu sou bom naquilo que faço.

    - Eu sei, mas é difícil acompanhar as tuas constantes mudanças de opinião.

    - Eu não mudo de opinião, limito-me a variar o ponto de vista, encaro as situações de diferentes perspectivas logo, a mesma questão admite uma certa variedade de respostas. Não aprendes mesmo nada comigo.

sábado, outubro 12, 2024

Dito repensado

     Comeram-me a carne mas não hão-de roer-me os ossos. Os meus ossos, quem os rói sou eu!

segunda-feira, outubro 07, 2024

Ai, ai...

     Estou confuso; não distingo verdade de mentira. Não distingo o primeiro do segundo nem uma coisa da outra. Estou confuso. Não consigo separar o erro da coisa certa e a verdade nem sempre parece ser a coisa certa. Estou confuso; a mentira, muitas vezes, corrige erros profundos, terríveis erros. Sinto-me confuso, ai, ai, sinto-me confuso.

domingo, outubro 06, 2024

Os nervos

    - Dói-me o sistema nervoso, ando a tomar uns comprimidos. Mas os comprimidos desarranjam-me a bexiga. E mijo como uma doida.

    - E depois?

    - E depois? Depois estou numa reunião, estou num ensaio, estou na cama e... tungas! Dá-e uma ânsia mijadeira que não me aguento.

    - Mas ficas bem?

    - Mal não fico, mas o bem que os comprimidos me fazem, mijo-o todo e voltam-me os nervos a ficar doridos.

    - Vives num autêntico circo vicioso.

    - É um circo com leões, com cães e com macacos!

sábado, setembro 28, 2024

A Arte Abstracta é coisa que se veja?

     A designada Arte Abstracta transporta consigo uma tremenda confusão. A Arte Abstracta é uma Cavalo de Tróia da Confusão. A Confusão entra em nós alojada no estômago da Arte Abstracta. 

    Tem tudo a ver com aquela coisa de se representar ou não aquilo que os os nossos olhos vêem ou que imaginamos ver ou lá o que é. Magritte terá tentado apunhalar o o dito cavalo pintando A Traição das Imagens mas o cavalo, além de ser de pau, é demasiado grande para que possamos importuná-lo com um punhal insignificante.

    E é assim que a Arte Abstracta sobrevive a todas as tentativas de esclarecimento sobre a sua origem, a sua substância e (pormenor menos interessante) para onde se dirige. A expressão é caricatural e, talvez por isso, assumiu um papel importante no imaginário popular. Quando se fala de Arte Abstracta toda a gente sabe o que ela é, apesar de não ser bem coisa nenhuma.

quinta-feira, setembro 26, 2024

Pinta, linha e plano

     Hoje apercebi-me daquilo que me parece ser um erro de alguma gravidade. Quando falamos em "elementos básicos da linguagem visual" referimos sempre o ponto, a linha e o plano. É uma sequência lógica que parte do mais ínfimo elemento dessa linguagem para o mais vasto. Partimos do princípio que estamos a referir conceitos tradutíveis por sinais gráficos, mas a coisa não é assim tão pacífica.

    Um ponto é, por definição, um lugar geométrico que resulta da combinação de um determinado conjunto de coordenadas. É uma abstracção, Como podemos pretender que uma pintinha no meio de uma folha em branco represente um ponto? Magritte mostrou-nos, com A Traição das Imagens, que uma pintura de um cachimbo não é um cachimbo. Logo, uma pinta não é um ponto. É uma pinta que, nas nossas monas, significa e representa um ponto.

    Assim, proponho que passemos a designar os elementos básicos da linguagem visual como "pinta, linha e plano", sabendo que a questão da linha ("é um ponto que foi dar um passeio", segundo Paul Klee) e a do plano (será uma recta a rebolar sobre si própria?) também merecem alguma atenção e muita, muita reflexão.

terça-feira, setembro 24, 2024

Cheirar mijo

     Tinha saudade do tempo em que as coisas eram como Deus quis que elas fossem. O tempo em que aquela senhora correria atrás do seu nariz, o tempo dos passarinhos cantando nos ninhos enquanto ele desceria a rua que desagua no Tejo; e a rua não cheiraria tanto a mijo. Havia de cheirar a mijo, mas menos, porque era um tempo em que as coisas eram como Deus quis que elas fossem.

    Se Deus quisesse que as ruas tresandassem a mijo daquela maneira talvez vivêssemos uma idade sempre média.

    No chão da praça espalhavam-se restos do passado e pairava um discreto cheiro a mijo adocicando a atmosfera. Um grupo de vadios grisalhos focava toda a sua atenção numa coisa qualquer que um deles segurava à altura dos narizes. 

    Na esplanada sentava-se um filho da puta perfumado de cuja existência já se havia esquecido. Lembrava-se bem de ser aquilo um autêntico cabrão, apesar das camisinhas e dos sapatinhos de vela, mas falhava-lhe o nome. 

    "Não preciso de me lembrar do nome daquele monte de merda" pensou "basta-me saber a porcaria que ele é". E cuspiu no chão. O desprezo que sentia abriu-lhe um pequeno orifício no peito da alma. Cheirava a mijo pra caralho!

sexta-feira, setembro 20, 2024

Continuar esta vida

     Cada vez mais se ouve falar em guerra nuclear. Aquela falta de ar que nos apoquentava nos anos 70, quando a palavra de ordem que ladrávamos era "no future", reaparece, vinda detrás de uma esquina da memória. Afinal esteve sempre ali, distraída, à espera, sempre ali esteve. A diferença é que já não sou um adolescente, sou um homem na casa dos sessenta. Tanto quanto sou capaz de perceber sinto as coisas de uma outra maneira.

    Há dias em que penso no tempo de vida que me resta. Calculo: 10, 20 anos? Talvez mais, talvez menos. Já me tinha esquecido da sensação de poder contar o futuro em meses, ou semanas, dias, horas. um míssil russo leva 3 minutos e 20 segundos a chegar a Estrasburgo. Minutos.

    Nada disto é agradável. Tento afastar pensamentos angustiantes, o que consigo com relativa facilidade. Pelo menos por agora. Ou será que ter vivido sessenta anos me confere algum desapego em relação à vida? Duvido. Duvido muito. Mas, a verdade, verdadinha, é que prefiro não tentar compreender. A verdade, verdadinha é que gosto da vida que tenho e preferia continuar a vivê-la. Se pudesse ser.

quinta-feira, setembro 12, 2024

Abstraccionismo Narrativo

      Faz hoje ou fez ontem 9 anos que inaugurei uma exposição de desenho, pintura e colagens à qual dei o título bastante descritivo de "Abstraccionismo Narrativo". Vasculhando um pouco aqui, o 100 Cabeças, encontrei apenas referência directa ao acontecimento neste post. Pelos vistos também eu não considerei a coisa digna de muito mais que uma referência lateral. Passados 9 anos sobre o acontecimento dou por mim a pensar que o conceito de Abstraccionismo Narrativo merece um olhar mais atento.

      O conceito de abstracção associado à criação nas artes plásticas remete para objectos que prescindem de uma linguagem visual que possa relacioná-los de forma mais ou menos imediata com o mundo que nos rodeia. Os primeiros passos deliberadamente nesse sentido terão sido dados por Kandinsky que, ao longo do trajecto, foi encontrando uma e outra situação capaz de tornar mais consistente o seu projecto artístico.

    O abstraccionismo de Kandinsky estaria relacionado com a invenção de um sistema criativo capaz de associar forma e cor numa espécie de tabela esquemática onde a influência da música foi também introduzida. Penso que vem daí o conceito, agora tão vulgar, de composição visual por associação ao de composição musical. Uma composição musical era formada por sons, tons, silêncios, tempos, a composição visual por linhas, pontos, manchas, cores, espaços vazios...  numa relação aparentemente fácil de estabelecer e de compreensão imediata, mesmo para os leigos na matéria.

    Várias e diferentes interpretações do conceito de abstraccionismo vieram à luz do dia, todas elas focadas essencialmente na questão da não representação da realidade aparente dos objectos e das formas que nos rodeiam. A criação abstracta não copia a natureza, cria uma outra natureza; não reproduz, acrescenta - ideias deste género ganharam pernas e foram à sua vida. Vamos então sendo educados para que, sempre que um objecto artístico não represente nada que possamos identificar através de uma relação reflexa com o mundo "real", possamos afirmar, sem tremura na voz, estarmos perante Arte Abstracta (assim mesmo, com "AA").

    Os meus trabalhos têm sempre referências formais mais ou menos identificáveis. O carácter fantástico ou repulsivo de certas figuras e outras bizarrias formais levam o observador ocasional a relacionar o que faço com um universo surrealista. Aceito e compreendo mas não posso concordar em absoluto. Foi a partir de conversas mais ou menos inocentes sobre esta questão que percebi a existência de uma fortíssima componente abstracta no meu trabalho, localizada no campo temático e narrativo. 

    Não retirei a literatura da pintura nem reneguei o mimetismo nos meus trabalhos mas as narrativas que desenvolvo podem ser absolutamente herméticas e eventualmente indecifráveis dada a forma absolutamente caótica como vou juntando referências de diferentes naturezas nos objectos que crio. Cada objecto se transforma numa aparente anarquia visual e narrativa (na verdade há sempre ali muita coisa meticulosamente pensada), propondo ao espectador que se confronte com aquilo que vê e crie, ele próprio, a sua história.

    Apercebo-me que este texto, indo já longo, não serve, nem de longe nem de perto, a exposição exaustiva do conceito mas, parece-me, explica o fundamento da coisa. Fico-me por aqui. 

segunda-feira, setembro 09, 2024

Caçar a ideia

     Perseguir uma ideia é como caçar. Apercebemo-nos de leves indícios, uma pista. Seguimos-lhe o rasto. Se intuirmos ser uma boa ideia perseguimo-la até onde for necessário desde que possamos apanhá-la. Seja como for, o resultado da caçada depende muito da natureza da ideia perseguida.

    Há ideias que quando se apercebem que estão a ser perseguidas esperam por nós de sorriso afivelado e se deixam capturar com alegria. Outras são esquivas e deslocam-se com uma rapidez incrível nunca deixando a protecção das sombras que povoam a nossa imaginação. Há ideias que conseguimos encurralar mas que nos resistem com heróica ferocidade por não quererem ser nossas. Ideias admiráveis. 

    Há ideias que são como borboletas, que se mascaram com grandes olhos e cores provocantes para confundirem os predadores e outras ideias que são como camaleões perfeitos. Embora saibamos que estão ali mesmo à nossa frente não conseguimos isolá-las nem distingui-las da paisagem. Movem-se com uma lentidão exasperante e, no entanto, são praticamente inalcançáveis. Ideias terríveis.

    Caçar ideias é uma actividade que poderá ter tanto de apaixonante como de frustrante. Importa saber o que fazer com uma ideia após a sua captura: se a destruímos, se a engaiolamos, se a tentamos domesticar ou a deixamos ir à sua vida. 

    Se a ideia gera algum tipo de expectativa em nós, seus captores, poderemos guardá-la, observá-la, ver como cresce e se transforma. Esse processo gera com frequência alterações tanto no captor quanto na presa engaiolada.

    Imagino que tenha sido assim que surgiram os primeiros deuses e, por consequência, nós tenhamos sido por eles criados.

Melodrama

     Procurava uma máscara que pudesse adaptar ao terror absoluto que lhe assaltava o sono. Todas as noites eram para ele lugares de tremenda insegurança. O sono vinha acompanhado de sonhos que eram, quase sempre, pesadelos. Ao acordar encharcado em suor sentia ténue alívio por adivinhar que se seguiria um dia inteiro a viver mais ou menos sossegado consoante se aproximava a noite. Na escuridão do seu modesto quarto  resistia como podia ao peso do sono que adivinhava tremendo. O cansaço acabava sempre por vencer. Fechados os olhos regressava o melodrama.

terça-feira, agosto 27, 2024

Vaidade e miséria

     Muitos de nós, precisam de sentir que são importantes. Para sermos felizes (ou algo aproximado) precisamos de sentir que outras pessoas escutam atentamente quando dizemos um disparate qualquer, que outras pessoas nos olham quando passamos na rua ou entramos na pastelaria; precisamos de sentir que não somos invisíveis, como o mendigo andrajoso, ali de rastos à porta do supermercado, invisível por ninguém olhar para ele. Provavelmente mal saberá falar.

    Pelas razões atrás expostas, muitos de nós falam aos gritos nem que seja para explicar como cozinhamos frango cozido, vestimo-nos como palhaços de circo fingindo ter escolhido aquelas roupas por mero acaso (a graça é um dom) e fazemos vista grossa à miséria que à nossa volta prolifera. Acima de tudo fazemos vista grossa à miséria que arrastamos, agarrada à nossa sombra projectada.

segunda-feira, agosto 26, 2024

Dúvida existencial

     Há coisas assim, coisas que se alimentam de si próprias e como que ganham vida se bem que a não tenham. Tantas pequenas merdinhas podiam ser compradas por tuta-e-meia! Coisinhas de comer como batatas fritas, tiras de milho, baldes de gelado, a escolha era muita e variada. 

    Ele alimentava a Angústia e o Desespero com igual desvelo e sentido de justiça. Engordavam juntos, os três. E, enquanto o seu corpo ganhava peso e volume, a suas protegidas floresciam imparáveis! O ecrã da TV por horizonte, a vida a entrar num declive acentuado e ele, implacável, continuava sempre, sem temor e sem remorso.

    Não será isto o Inferno?

quinta-feira, agosto 22, 2024

Um raio de luz

     O tempo tinha passado e ele imaginava não ter muito futuro. Nada fazia adivinhar que o fim estivesse próximo mas, como se diz, a idade não engana. Que fazer? 

    Pensou que seria agradável desfrutar de pequenos prazeres: uma musiquinha, um livro divertido, outro desenho, talvez numa superfície mais generosa. Mas, para quê? Para viver, ora essa! 

    Tudo isto lhe passava pela cabeça quando um raio de sol forçou passagem e iluminou o copo sobre a mesa. A estranha sombra que projectou distraiu-lhe os macaquinhos no sótão e ele sorriu para si próprio.

segunda-feira, agosto 19, 2024

Comunicação

    Estivera tanto tempo calado que havia esquecido o dom da fala. Observando uma mulher que passava no caminho, ao fundo da ravina, quis chamá-la. Abriu a garganta, abriu a boca, encheu os pulmões de ar e emitiu um som absolutamente aterrador. Lá em baixo a pobre mulher desatou a correr como se fosse doida, levantando uma nuvem de poeira que poderia confundir-se com a nuvem produzida por um pequeno exército em debandada.

    Abatido pelo resultado da desastrada tentativa, o eremita regressou à escuridão do seu buraco e meditou. Meditou durante muito tempo. Ao que se sabe a meditação não lhe restituiu o dom da fala mas levou o eremita a tomar a decisão de regressar ao convívio dos seus semelhantes. 

    Ainda hoje pedia esmola junto ao templo, protegido pela sombra da muralha. Todos julgam que ele é mudo. 

    Continua a meditar.

quinta-feira, julho 25, 2024

Impasse

    Contar uma história não é tarefa fácil, principalmente quando não temos a mínima ideia da história que queremos contar. Sim, porque uma coisa é querer contar uma história e outra coisa, bastante diferente, é sabermos que história é essa. Nesta situação encontramo-nos num impasse.

    No entanto, um impasse, este impasse, pode constituir um ponto de partida razoável para contarmos uma história. Imaginemos um início, uma primeira frase: "Ela queria contar uma história mas não sabia que história contar."

    Partindo daqui quem sabe onde poderemos nós ir parar!?

terça-feira, julho 23, 2024

Questão de perspectiva

     O espelho insistia em manter-se discreto; não reflectia, não especulava. Olhava-o com disfarçada insistência, de soslaio, tentando passar despercebido mas ele, o espelho, não reflectia. Nem especulava. Era como se eu não existisse apesar da consciência que me habitava (e ainda habita) e me fazia acreditar estar aqui.

    O problema prendia-se, exactamente, com esse tal "aqui". Aqui no mundo físico? Aqui, no mundo virtual? Ou aqui, reflectido no espelho?

    Uma vez que o espelho se recusava a devolver-me o olhar que lhe oferecia duvidei do meu ser. Imaginei-me vampiro, fantasma, imaginei ter passado para um qualquer estado de existência desconhecido e sem expressão física. Senti já ali não estar.

    Foi então que decidi avançar na direcção do espelho, interpelá-lo frontalmente, oferecer-me sem receio à prospecção que ele faria do meu rosto, do meu corpo, do meu ser. Desse por onde desse, fossem quais fossem as consequências, enfrentei-o.

    Ali estava o meu eu reflectido. Afinal não era um fantasma, nem nada daquelas coisas mirabolantes que imaginei; era eu mesmo, o ser habitual e imperfeito, o bicho, o homem, as mesmas dúvidas, as mesmas rugas, os olhos no lugar devido. O espelho não me reflectira por mera questão de perspectiva.

sábado, julho 20, 2024

Uma igreja na floresta

     Era uma vez um Pato casado com um Gato, juntos tiveram um filho a quem chamaram Cão. Viviam junto ao mar, numa floresta de árvores azuladas atapetada de estranhas flores. Viviam felizes a ladrar, a miar, a grasnar, a floresta ecoava alegria e boa disposição, o mar trazia nas ondas coisas agradáveis.

    Um dia o Cão conheceu o Tubarão e ficaram amigos. De quem eles não gostavam era do Pinguim, não simpatizavam com ele nem um bocadinho. Apesar de todos os esforços que fazia para soar bem educado, o Cão e o Tubarão achavam que o Pinguim era um convencido de merda por andar sempre de fraque; fizesse frio ou calor, nunca tirava a fatiota de cerimónia. Palonço!

    Fosse como fosse, tudo corria bem na floresta: vida fácil, alimento abundante, sol ou sombra, secura ou humidade, tudo consoante as necessidades de cada um e ninguém metia o nariz onde não era chamado. Um paraíso. Até que um dia Deus reparou na floresta e lembrou-se que a tinha esquecido. Como é apanágio de um Ser tão perfeito e completo, decidiu agir visto que tinha ideias muito específicas sobre o que era bom e o que era mau e, ao contrário dos habitantes da floresta, Deus não se estava a cagar.

    O Pato, o Gato, o Cão e o Tubarão não percebiam nada do que Deus lhes impunha. O Pinguim percebia mais ou menos. Farto de tentar explicar-se e não ter sucesso, Deus nomeou o Pinguim como seu sacerdote e incumbiu-o de zelar pela ordem e desenvolvimento das coisas divinas na circunscrição daquela floresta (onde nunca nada havia faltado). Nem alimento, nem comodidade, nem boa disposição. Ali o que mais faltava era tristeza, era violência ou falsidade absoluta.

    Deus nomeou o Pinguim seu sacerdote e lá foi, regular as vidas de outros animais, noutras florestas. A floresta de árvores azuis ganhou uma igreja que era coisa que nunca antes ali existira e da qual nunca ninguém tinha sentido falta nenhuma. Nem Deus.

    A partir daquela aquisição supérflua, a influência do Pinguim cresceu de tal maneira que o Gato, o Pato e o Cão, seu filho, fartos de tanta regra, tanta admoestação e castigos imbecis, se mudaram para perto da fronteira com o deserto. O Tubarão foi perseguir focas para outras paragens. O Pinguim inchou, inchou e ficou tão gordo que deixou de pôr uma pata que fosse fora da igreja. Mas isso já é uma outra história. A Girafa que a conte.

terça-feira, julho 16, 2024

Coisas que acontecem

     Não sei se também te acontece, há dias em que nada me convence e quase nada me comove. Dias em que não acredito em ninguém, em que não suporto a grandeza de gestos magnânimos e nem sequer chego a indignar-me com a baixeza de espírito que caracteriza certos estúpidos e a maior parte dos filhos da puta. Dias como este, em que escrevo as palavras que agora lês.

    Sinto uma espécie de vazio chato, um vazio mau. É mais um bicho que se me alojou ali entre o peito e o estômago e não me deixa sossegar, um bicho que me aperta o coração a ponto de eu soltar suspiros que há muito mantinha prisioneiros da minha boa disposição que entretanto vai tendo dificuldade em se manter equilibrada na única perna que lhe resta.

    Apetece-me fazer alguma coisa, seja o que for? Não. Não me apetece fazer nada mas ainda vou ter que me levantar, vestir uma roupa mais decente, sair de casa e ir ao teatro ver uma peça cuja perspectiva não me entusiasma por aí além. 

    A esperança é que esta aparente valente seca tenha um efeito regenerador, que a deslocação me desperte um pouco, que o teatro me anime, enfim, a esperança é que a vida aconteça e que o tal bicho vá chatear outro. Não sei se já te aconteceu.

sábado, julho 13, 2024

Ser (o fantasma)

     Pode a invisibilidade crítica provocar azedume ao ponto de causar forte azia e levar o invisível (o fantasma) a vociferar que nem um porco? Pode. Pode o anonimato levar o anónimo (o fantasma) a desesperar ao ponto de pensar em largar os pincéis e dedicar-se à pesca com cana e anzol? Pode. Pode a falta de reconhecimento público fazer crescer dentro do ignorado (o fantasma) uma inveja biliosa que ele confunde com injustiça? Claro que sim, pode.

    Pode um gajo persistir em fazer pintura, desenhar, imaginar e sonhar, década após década sem que nada de relevante aconteça e ele (o fantasma) se vá esquecendo de quem foi, fique confuso com aquilo que é e, apesar de tudo, deseje ser algo diferente (do fantasma) um dia que ainda está para vir. Sim, pode (que aborrecido). "Pode alguém ser quem não é?" Isso, agora...

quinta-feira, julho 11, 2024

Reflexão indolente

     O discurso da crítica, estou a pensar na crítica das artes plásticas mas penso que a coisa se pode estender a outros géneros de expressão artística, vive muito do gosto pessoal de quem critica. É pouco justo? É. É potencialmente faccioso? Sem dúvida. Parcial? Vale a pena continuar a desfiar as contas deste rosário? É tudo isso e um par de botas. 

    Mas, outro aspecto interessante deste, chamesmo-lhe: universo; é o facto de haver muita arte produzida por muitos artistas que, simplesmente, não existe (nem a arte nem o artista). Ou melhor, existe num limbo muito particular que é o da invisibilidade crítica. Como se rompe este véu que impede o público de ver o que está em causa? Também não sei.

    Na verdade tenho cá a impressão de que as coisas poderiam ser de outro modo, poderiam ser diferentes, poderiam... mas não são. São assim mesmo e eu, continuo a dizer a minha (já velha) frase: eu sei que não existo, no entanto estou aqui.

quarta-feira, julho 10, 2024

Amizade genuína

     Será a solidão o mais assustador dos problemas que um ser humano pode encontrar ao longo da vida? Há quem diga que não tem medo da morte mas que a perspectiva de viver uma vida solitária sim, é coisa que lhe provoca desarranjo intestinal. 

    Nos tempos que correm não sei bem o que possa ser considerado "solidão". Todos nós temos dezenas, senão mesmo centenas, de amigos no Facebook. Eles nunca irão abandonar-nos, nunca ficaremos sós. Logo, a solidão parece-me um falso problema (há ainda o Instagram,o TikTok, eu sei lá que mais!).

    A menos que a ausência de toque, de calor humano, a ausência efectiva de um corpo real na nossa zona de acção seja considerado "solidão", o mundo virtual encarrega-se de nos preencher o dia-a-dia, encarrega-se de nos oferecer um objectivo de vida (ou vários). 

    O computador, o objecto em si, é um amigo (tocamos-lhe, sentimos o seu calor, ouvimo-lo, falamos com ele e através dele...), o computador é um amigo e um amigo fiel, diria eu!

    Fico já por aqui, não te chateio mais: se pretendes uma amizade efectiva e genuína olha bem para o objecto que tens à tua frente (se estiveres a utilizar um telemóvel também serve) e sorri-lhe. Ele merece-te e tu merece-lo a ele. Sejam felizes!

terça-feira, julho 09, 2024

Gravidade

     Por vezes dou por mim muito longe de mim próprio. Logo a seguir é como se acordasse subitamente de um vôo planante sobre o meu corpo e nele caísse vertiginosamente, por ele sugado como só o nosso corpo nos pode sugar quando, por momentos, o havemos esquecido. Slurp! Estou de regresso.

    É difícil explicar por palavras estas coisas que parecem não acontecer mas que acontecem. É como quando estou a desenhar ou a pintar. Nessas ocasiões é bastante comum perder-me na floresta dos minutos. Entro na floresta e logo me deixo envolver pelo seu silêncio, pela sua frescura, pela doce escuridão. E pinto como se caminhasse, sonho como se escrevesse, divago como se alma e corpo fossem coisa única; ocasiões houve em que tive a sensação de sermos coisa universal, ínfima parte do Todo.

    A lista das maravilhas é mais extensa, sei que é, mas de momento estou incapaz de acrescentar mais o que quer que seja. A realidade é a força de gravidade do espírito.

segunda-feira, julho 08, 2024

A Santa oculta

     Estou numa posição que não me permite ver o écran, ouço apenas as vozes que saem da televisão. Passa um noticiário. A pivot fala de alterações climáticas, refere temperaturas abrasadoras algures, um pouco ou muito longe daqui. Depois refere um ataque russo a Kiev sublinhando o número de mortos. A sensação que tenho é que ambas as notícias soam a coisas distantes, algo que não nos acontecerá aqui, no cu da Europa.

    Os mísseis russos, por enquanto, não me parecem ser coisa a temer. Já a caloraça... se vivesse no interior talvez começasse a pensar mais seriamente no assunto. 

    Os noticiários internacionais dão sempre a sensação de que aqui no cantinho estamos seguros, estamos protegidos. Concluo que, embora na cabeça do povão seja a Nossa Senhora de Fátima quem olha por nós, é a Geografia quem nos protege verdadeiramente. A Santa Geografia.

    É de ponderar a possibilidade de escrever uma cartinha ao Papa a sondar o que poderá Sua Santidade pensar sobre tão abstruso e delicado assunto.


sexta-feira, julho 05, 2024

Bestas

     O espaço virtual coloca-nos perante estranhas situações que, com o passar do tempo, se vão tornando menos estranhas. Uma dessas situações é o que acontece quando "encontramos" um estranho e com ele estabelecemos contacto. Pode acontecer, por exemplo, na caixa de comentários de um jornal. O nosso interlocutor reduz-se a uma designação (raramente o nome verdadeiro da entidade) e um pequeno texto escrito no qual emite a sua opinião (ou algo parecido) relativa a uma notícia ou, aí está, a uma opinião que nós próprios publicámos.

    Quando entramos em diálogo a coisa pode tomar caminhos inesperados. A ausência de contacto físico impele com frequência os dialogantes a tomarem atitudes menos civilizadas e muitas vezes a conversa descamba. É aí que a coisa se torna interessante ao mostrar que, escondidos na sombra do anonimato virtual, somos bestas em potência.

sexta-feira, junho 28, 2024

Apropriações

    


    Há uma tradição que põe na boca de Picasso a frase: "bons artistas copiam, grandes artistas roubam". A ironia desta afirmação é ainda maior se considerarmos que a frase nem terá sido ideia original do próprio Picasso. 

    Recentemente Banksy ampliou o divertimento  ao escrever a frase, ligeiramente alterada - "bad artists imitate..." - sobre uma "pedra" assinada pelo pintor malaguenho, riscando-lhe o "Pablo Picasso" e escrevendo por baixo "Banksy".

    Há aqui todo um conjunto de subtilezas aparentemente premeditadas (mudar "bons artistas" para "maus artistas" no caso de Banksy ou a apropriação de uma frase alheia em jeito de auto-elogio por Picasso, um efeito de "loop"...) que nos permitem reflexões curiosas sobre situações que nunca antes nos haviam prendido a atenção. Mas, não é para isto que serve uma obra de arte?

    Poderia agora propor um exercício de reflexão algo oportunista e um tanto preguiçoso: será a frase citada um objecto artístico? Poderemos estar perante um exemplo de arte conceptual? É toda a arte conceptual? Sim, eu sei, já lá vão três perguntas mas, as perguntas só não são como as cerejas porque nem sempre vêm aos pares.

quarta-feira, junho 26, 2024

Um livro muito grande

     Ler e reflectir, eis o combustível necessário no início de cada dia. Bom, acompanhando o pão-nosso, que de barriga absolutamente vazia não se pensa tão bem como se pensa. "O mundo livre" de Louis Menand é um compêndio brutal, excelente objecto de consulta.

    A quantidade de informação aproxima-se do delírio mas, tomada em doses homeopáticas, revela-se tão suave como pêlo de coelhinho. Apesar de umas quantas falhas editoriais, perfeitamente ignoráveis, a leitura deste tijolo (1108 páginas) faz-se em velocidade de cruzeiro e perna bem traçada. 

    O papel da edição da Penguin/Elsinore (ou será vice-versa?) é perfeito para um livro tão volumoso. Permite abrir as páginas sem a necessidade de estar sempre atento à resistência do papel que faz voltar a folha para trás e é surpreendentemente leve. Apesar do aparente desconforto até que nem se lê mal estando o leitor deitado.

    Enfim, grande livro! Sob todos os aspectos. Um livro muito grande.

domingo, junho 23, 2024

Próximo horizonte

     E pronto, a coisa estava feita. Não tendo a certeza se havia conseguido fazê-la bem feita, arrumou com grande precisão os objectos e fechou a caixinha com o cuidado habitual. Clic! 

    Olhou em volta. Algumas pessoas abandonavam lentamente o local, outras conversavam, havia também as que estavam ali como se fossem estátuas. Pôs a caixinha debaixo do braço, inclinou a cabeça com humildade exagerada e avançou na direcção da porta.

    A mulher bonita da 2ª fila olhou-o nos olhos e sorriu. Ele sorriu de volta enquanto aconchegava a caixinha com a mão esquerda. Não falaram, aparentemente não tinham nada a dizer um ao outro. Claro que não! E ele saiu. 

    Na rua, calor; e também uma caminhada curta com destino ao próximo horizonte.

domingo, junho 16, 2024

O "tempo" como lugar

     Em geometria aprendi (ou será que ensinei?) que "um ponto é um lugar geométrico". Ou seja, um ponto não é um toque rápido do lápis ou da caneta sobre uma folha de papel, um ponto não é uma bolinha, um ponto é, na verdade, uma abstracção. Abstracção essa que nos é indicada por um conjunto de coordenadas (abcissa, cota e afastamento, no caso da Geometria Descritiva).

    Mais tarde li a frase genial de Paul Klee dizendo que "uma linha é um ponto que foi passear", etc., por aí fora, o mundo vai-se-me revelando num compromisso entre linguagem e poder de visualização. A capacidade de verbalização a ser capaz de gerar imagens e intuições poéticas que disparam em todas as direcções dentro da minha cabeça e se projectam no espaço através dos meus olhos. O corpo ainda e sempre um empecilho que ambiciono dominar na tentativa de traduzir em objectos palpáveis aquilo que me vai na alma.

    Hoje pensei que o tempo é também um lugar no espaço, não exactamente como o ponto, mas com um tipo coordenadas completamente diferente, tipo esse que não consigo precisar, nem um pouco mais ou menos. Isto a propósito do conceito de tempo na criação artística e da sua influência decisiva naquilo que os artistas criam. As coordenadas do tempo a determinarem o aspecto do objecto artístico de um modo eventualmente semelhante ao que as coordenadas de um ponto podem significar na determinação da orientação de um recta no espaço.

    Há intuições nas quais acreditamos piamente ainda que sejamos absolutamente incapazes de provar a sua validade.

terça-feira, junho 11, 2024

Contorno perfeito

     As coisas aparentam ser o que parecem. Assim, à primeira vista, não vês nada de extraordinário, a luz do sol é branca e revela as coisas com sinceridade absoluta. As formas desenham-se límpidas e perfeitamente definidas perante os teus olhos; é a realidade. Mas, por detrás das cores vibrantes da realidade, estende-se o manto translúcido da verdade (isto faz-me lembrar alguém ou alguma coisa...).

    A verdade não rejeita mas também não exige ser iluminada pelo sol. Semicerras os olhos e começas a perceber que a forma das coisas não é definida exclusivamente pelo seu contorno preciso e perfeitinho. E vem-te à memória aquela frase das bruxas. Não é sem algum receio que perscrutas as sombras e aí encontras todo um universo que vais adivinhando.

sábado, junho 08, 2024

Não tenho a certeza que existas

     O sol hoje não se pode ver. Está escondido. Devo dizer que "não está bom tempo"? Porque o céu sobre a cidade tem uma tonalidade cinzenta uniforme devo afirmar: "está mau tempo"? Ou será necessário que chova para poder ser tão dramático nas minhas considerações sobre o estado da meteorologia?

    Já deves ter reparado, refinado leitor, que, não tendo nada de mais interessante para dizer, me dedico a escrever umas quantas inanidades sobre o "tempo". E porquê? - perguntas tu. Porque posso. Então e eu? - voltas a questionar. Não tenho a certeza que existas, volto a responder-te.

    E ficamos assim, hesitantes sobre quem está do outro lado, se está alguém ou alguma coisa, se nada existe para lá do que trazemos dentro do crânio.

sexta-feira, junho 07, 2024

Dilema paradoxal anedótico

     O conceito de "criação" como sendo um atributo divino parece-me uma refinada palermice. Isto porque o próprio conceito de "divino" me parece ser uma invenção humana. Ficamos assim num daqueles dilemas paradoxais que redundam em anedota, do género da célebre cena do ovo e da galinha.

    O que apareceu primeiro, Deus ou o Homem? A resposta é tão simples quanto óbvia.

sexta-feira, maio 31, 2024

Ir indo

    Já deixei de ser jovem há uns bons anos e estou-me bem a lixar. Não fosse uma dor aqui, uma azia ali, nem sequer havia de sentir o impulso de maldizer a idade. O que se perde numa perna ganha-se na cabeça, o que vai naquele braço fica a pairar no espírito. O corpo é o que mais se estraga (até ver), as peças gastam-se e não há como substituí-las. A juventude saudável é, sobretudo, um corpo que não se apercebe de si. 

     Valoriza-se muito a juventude, principalmente quando se é jovem. Do mesmo modo tendemos a considerar a velhice como uma oportunidade na busca de um sentido para o fim inevitável que se irá aproximando com o passar dos anos. Entretanto vamos vivendo.

    O envelhecimento não é um drama por aí além... até ver.

Mais morte

    É a guerra na Ucrânia, na Palestina, no Iémen... deve haver mais umas quantas que não fazem manchetes nos jornais mas tenho a certeza que há muito mais gente com armas nas mãos (e drogas na cabeça?) a matar-se com a ferocidade característica dos tresloucados.

    No meio disto tudo fico a pensar quantos milhares de euros são disparados de cada vez que voa um míssil. Por outro lado tento imaginar o que vai na cabeça de um iemenita que considera estar sob ataque constante dos "cruzados" do Ocidente. Qual o futuro das crianças e jovens da Palestina? Os israelitas levam demasiado à letra a ideia do "deus dos exércitos"e do "fogo divino". Qual a margem de entendimento entre russos e ucranianos?

    Parece-me que quem ganha são sempre os mesmos, os que estão dos dois lados; os que apoiam a luta dos oprimidos tanto quanto apoiam a dos opressores... fornecendo as armas.

terça-feira, maio 28, 2024

Menos morte

     À medida que o tempo passa os amigos vão morrendo. O mundo virtual encarrega-se de deixar vestígios dos que falecem. Recebemos notificações dos seus aniversários, de vez em quando encontramos um comentário na página do Facebook ou num post antigo do blogue. Revemos uma filmagenzita, a saudade aperta-nos o coração. 

    Talvez o mundo virtual retarde um nadinha o desaparecimento completo dos que já lá vão. Não nos liberta da lei da morte mas arranja maneira de a contrariar um bocadinho. É pouco, eu sei, mas é qualquer coisa.

domingo, maio 19, 2024

Acreditar

     Tantas coisas em que pensar, tantos objectivos para cumprir, a cabeça começa a pesar-me. Fossem coisas fáceis de resolver decerto não sentiria esta ligeira vertigem que começa a tomar forma por detrás dos meus olhos. A táctica a adoptar resume-se a: não esmorecer.

    Não esmorecer significa acreditar. Acreditar que serei capaz de solucionar os problemas, preencher os espaços vazios, produzir pensamento suficientemente eficaz de modo a não ficar embaraçado quando for tempo de apresentar resultados. Acreditar. É fundamental acreditar.

    Acreditar não é bem a mesma coisa que ter fé.

quinta-feira, maio 16, 2024

A coisa

     A coisa está complicada. Muito confusa. Hermética.

    Tenho dificuldades. Já sabia que fácil não era. Mas... tão complicada!?

    Tão complicada também não. 

    Não é justo. Não me parece que seja justo. Ainda por cima a inteligência não abunda.

    Só pode acabar mal. 

    Rezo muito. Tento inverter a ordem das coisas. A ordem que as coisas estão a tomar.

    Mas tenho a impressão de que as minhas preces caem em saco roto.

    A coisa está muito complicada. Confusa. Não me parece que haja solução.

    Era bom que houvesse solução. Que houvesse alguém capaz de compreender.

    Mas temo que essa pessoa não exista ou que não tenha nascido ainda. Pode nascer!

    Não gosto quando tenho sentimentos negativos mas odeio esta coisa. Essa é a verdade.

    Odeio esta coisa. Preferia que não existisse.

terça-feira, maio 14, 2024

Condição infantil

     Enquanto indivíduos podemos crescer, tornar-nos adultos. Ser adulto é algo muito valorizado socialmente pois implica saber-o-que-se-quer. Pergunto-me se saber-o-que-se-quer é algo indubitavelmente saudável e contribui, de facto, para a nossa felicidade ou mesmo para a nossa sanidade mental. Hitler, por exemplo, parecia saber bem o que queria. Era um adulto?

    A pergunta que esta manhã se me formou na cabeça foi: pode uma sociedade crescer? Tornar-se adulta?

    Se, como acontece com os indivíduos, uma sociedade precisa de saber-o-que-quer, então o problema é bastante complicado (para não dizer que é impossível de resolver). Não sei bem o que acontece na China, na Índia ou no Japão, mas tenho a impressão de que a "sociedade ocidental" anda um bocado perdida, não sabe ao certo o que quer e é muito infantil. É uma sociedade com um comportamento errático e que parece desejar ter tudo.

    Desejar tudo acaba por provocar uma desorientação permanente e parece conduzir-nos a uma situação final em que não teremos nada. Talvez isso seja um pormenor, talvez não-saber-o-que-se-quer e querer tudo nos seja indiferente pois o previsível descalabro final acabará por acontecer lá mais para diante. 

    Entretanto podemos ir usufruindo de muita coisinha boa, podemos viver este estado social infantil durante mais uma década ou duas imaginando que o bem-estar é inesgotável e que, tal como a economia e o universo, irá continuar a crescer infinitamente. Até ao dia em que deixar de acontecer.

domingo, maio 05, 2024

Paul Auster (1947-2024)


    Há uma certa diferença entre usufruir da leitura e compreender a obra lida no contexto do universo criativo do autor. 

    Mais ainda, há uma certa diferença entre ler vários livros de um autor e conseguir locazilá-lo na imensidão do cosmos da criação literária. Enfim, Paul Auster ofereceu-me excelentes momentos, outros nem por isso. 

    A qualidade artística é sempre intermitente, raramente ou nunca é constante. A genialidade é meramente ocasional.


segunda-feira, abril 29, 2024

Uma voz interior

    Acordara com a cabeça vazia mas não se recordava de a ter esvaziado.. Talvez as ideias fossem lixo, talvez as memórias não estivessem em bom estado de conservação. Fosse por que razão fosse, não sentia nada dentro da cabeça. Bom, na verdade sentia o cérebro dentro do crânio, uma esponja encharcada em água suja a repousar no fundo de um balde de plástico.

    De súbito foi assaltado pela ideia de que seria a sua alma a estar vazia, que não havia nada de errado com o cérebro (a esponja desapareceu de imediato mas o balde continuou firme no seu lugar). Sim, isso fazia sentido, o cérebro não poderia nunca estar completamente vazio pois ele estava a pensar! Era a alma! A alma... não, não podia ser a alma a causar-lhe aquele vago incómodo pois a alma é uma coisa que não existe de facto. Não tem forma, nem peso... mas, talvez, o que não existe possa interferir com aquilo que somos e vivemos, pensou. Uma pequena nuvem (de fumo, de poeria?) subiu discretamente desde o fundo do balde.

    Um café! A solução para aquela inconstância matinal seria o consumo de uma boa dose de cafeína. Dirigiu-se à pastelaria da esquina e pediu a bebida milagrosa que ingeriu avidamente mal a chávena pousou no balcão envidraçado. Nada. Nem o balde, sequer. Talvez o problema não residisse no cérebro, nem na alma, talvez o problema dele fosse a vida. A própria vida!

    Ai, esta ideia caiu-lhe dentro da cabeça como uma saraivada, como se Deus o corresse à pedrada para fora do Seu bairro (Põe-te a andar, palhaço! Não te quero ver por aqui, desaparece!) Esta foi dura. Segurou-se no balcão fincando os dedos da mão direita enquanto a esquerda lhe fugiu para trás das costas, tacteando o espaço sem encontrar apoio. No lugar onde estivera o balde era agora um abismo sem fundo aparente. O mar a bater lá em baixo, no escuro absoluto. Talvez inferno?

    Foi então que ouviu a voz vinda lá do fundo do seu ser - Então, pá? Não posso passar uma noite fora que ficas logo passadinho! Põe-te direito e deixa-te de fitas. Vamos, vamos embora, vamos à vida. 

    "Bom dia" disse ele "porque demoraste tanto? Não voltes a fazer isto. Por favor..." 

    Nem balde, nem esponja, nem abismo, muito menos inferno. 

segunda-feira, abril 22, 2024

O canto da sereia

     O vento fazia das árvores uma matilha de cães saídos da água que tentassem secar-se. Mais atrás, as fachadas dos prédios entristeciam perante a chegada do sol; vidraças sujas, papéis e jornais colados por dentro com pedaços de fita-cola, reclames de cores esbatidas, queimados, caixas de ar condicionado trepando paredes até onde a vista alcançava. Percebia-se a habitação do espaço, sentia-se tristeza.

    Apesar de tudo flores amarelas refulgiam como sóis, esperançosos apontamentos de cor.

    Os carros passavam, anónimos, mecânicos, como se fossem fabricados pela rua, como se a cidade tivesse a função de os produzir ininterruptamente. Um relógio mudo marcava segundos, minutos, horas, também aquele dia haveria de tornar-se um número anónimo riscado no calendário. Estranhamente nada daquilo lhe provocava qualquer tipo de sensação particular.

    Uma sereia cantou e nem assim as coisas se alteraram.

sábado, abril 20, 2024

Esperança

     Tinha a incómoda sensação de estar a ser lentamente mastigado por um bicho. Um bicho com problemas estomacais, ainda por cima. Tinha a incómoda sensação de ter sido entregue à bicharada; ele e os restantes companheiros de infortúnio, os deserdados da sorte ou da vida ou lá o que eram.

    Sentia que ninguém os poderia defender ou mesmo livrar daquela situação desesperante. O destino fora cruel. Nada iria alterar o rumo dos acontecimentos. Até que... 

    ... até que irrompeu naquele recanto escuro, onde ele e os companheiros eram lentamente mastigados, outro bicho. Maior, mais feroz, mais desvairado. Tão assustador, que o dos problemas estomacais vomitou tudo o que havia mastigado e ingerido e virando costas o deixou, a ele e aos seus pobres companheiros de infortúnio, ali abandonados: sujos, malcheirosos, vomitados, completamente desorientados.

    O monstro fugira. Chegou um novo monstro.

segunda-feira, abril 15, 2024

O Zé e o Midas

     Muitos remoques caem sobre o actual governo da República por ter prometido aquilo que, afinal, tinha sido oferecido pelo governo anterior. O espantoso choque fiscal anunciado por Montenegro na campanha eleitoral era, afinal, uma duvidosa habilidade retórica. Este canto de sereia terá levado muitos eleitores a depositar a cruz do seu voto na aliança de direita, permitindo-lhe desse modo a ligeira vantagem que lhe conferiu a vitória nas urnas.

    Ai Jesus, que Montenegro mentiu! Que desfaçatez, Montenegro enganou, ludibriou, foi habilidoso, quase maquiavélico... agitam-se os braços, rasgam-se as vestes, arrepelam-se cabelos em público; da esquerda à direita parlamentar todos apupam o primeiro-ministro. Como de costume, o eleitor, o Zé, o grande povo português, é poupado à reprimenda. 

    Quem orienta o voto tendo por base promessas meramente económicas recebe de troco, exactamente, aquilo que merece. Quem acredita que "tempo é dinheiro" e sabe que "não há almoços grátis", quem não é de direita nem de esquerda, é pragmático ao ponto de actuar sem conhecer, quem, enfim, anda neste mundo por interesse, não tem grande moral para se queixar quando as coisas não correspondem ao seu sonho dourado.

    Se analisarem bem o mito, o Rei Midas não passava de um imbecil ignorante.

sexta-feira, abril 12, 2024

O Jardim das Tentações

     Ver uma pintura de Bosch é como aprender o deslumbramento. Por vezes sinto uma vaga inveja dos que vivem em Madrid mas resolvo a questão com uma ida ao Museu Nacional de Arte Antiga. Graças a Deus temos ali As Tentações de Santo Antão, a pintura que, seguramente, mais tempo de reflexão me ofereceu ao longo da vida.

    Há quem diga que se trata da obra mais espectacular de Bosch mas O Jardim das Delícias não lhe fica atrás. Vi esse tríptico uma única vez durante não muitos minutos e tenho dele uma saudade imensa. Um dia terei de regressar a Madrid, a plantar-me na sala do "Jardim" durante o tempo suficiente que me permita algumas janelas de oportunidade para o olhar com sossego, sem muita gente a incomodar. Consigo fazer isso com facilidade no MNA, poderei fazê-lo no Prado?

    Nem sempre consigo mas, por vezes, tenho lampejos de lucidez que me permitem aproximar vagamente de uma linguagem "boscheana" nos meus trabalhos. Muitas pessoas estabelecem uma relação directa entre muitos dos meus desenhos e o mestre, o que me surpreende pois eu próprio não veria essa relação se não me fosse apontada. 

    Quero criar um Jardim das Tentações mas duvido da minha capacidade de concentração. Como faria Bosch para pintar os seus mostrengos? Que estranho raciocínio, que inesperadas associações, que inventividade! A vantagem é que, em caso de falência imaginativa, posso sempre copiá-lo!

segunda-feira, abril 08, 2024

Dar tempos ao tempo

     Quando imaginamos o futuro estamos a construir o passado, aquele tempo em que vivemos; este tempo. O tempo que passou.

    O tempo é como um novelo de lã, vamos puxando o fio e o novelo rebola. Custa-nos compreender, mas este fio tem um início só que não há como perceber onde começa e embora pareça inesgotável, o novelo haverá de acabar um dia.

    Não sei se o tempo acabará quando acabar a Humanidade. Não tenho a certeza da existência do tempo para lá de nós, para lá da vida humana. Quando restarem apenas baratas e ratazanas o tempo continuará a fluir? Imagino que sim, mas será um tempo diferente, um tempo rastejante. Um tempo irracional.

    Apercebo-me de que, um dia, haverá um futuro que não irá acontecer. Talvez o céu se abra para deixar passar os Cavaleiros do Apocalipse. Náááá, não estou a ver como possa acontecer tal coisa. 

    O fim da vida no nosso planeta, o fim do próprio planeta, serão acontecimentos insignificantes.

sábado, abril 06, 2024

Pode alguém ser quem não é?

     Isto de ser "português" é uma espécie de luta que não se faz; porque não vale a pena lutar-se por tão pouco? Para se ser "português" o melhor é deixar andar, deixar correr o marfim, lá mais adiante se verá, alguma há-de acontecer. Com um bocado de sorte pode ser que não me obriguem a fazer nada. 

    Agora vieram os desorbitados do hino e da bandeira, os fascistóides da extrema-direita, introduzir o conceito dos "portugueses de bem". Ora porra, querem lá ver que ser um "português de bem" implica fazer alguma coisa!? Mas parece que não, um "português de bem" é ainda mais passivo e babaca que o "português" simples, o célebre "português suave". Um "português de bem" não pensa (o chefe pensa por ele), não age (a menos que o chefe lhe solicite alguma acção) e trabalha mansamente (como trabalham os bois). Ama a pátria, o chefe e deus, acima de tudo e acima de todos. O "português de bem" fica a meio caminho entre um vegetal e uma poia.

    Depois há os que tentam diluir o "português" numa massa informe e confusa que são "os europeus". É misturar tudo numa coisa só (como se pudéssemos alguma vez partilhar um corpo social com os espanhóis!), amassar, amassar, amassar e esperar que, metida no forno e depois arrefecida sob o céu da Europa, surja uma coisa que se coma sem provocar o vómito. É pedir muito, talvez seja mesmo pedir demasiado.

segunda-feira, abril 01, 2024

Figura de urso

     Escrever sem saber qual o tema da escrita é uma acção um tanto arriscada; arrisca-se figura de urso (na melhor das hipóteses). Por isso mesmo hesito em continuar a frase que agora escrevo... registo três marteladinhas no teclado: "reticências", tento ganhar algum tempo. Nada feito.

    Sinto-me bué urso.

sábado, março 23, 2024

Luta de claques

 

Vindo de um painel de debate futebolístico, habituado à berraria e à canelada verbal, isentado da apresentação de argumentos válidos e verdadeiros, Ventura irrompeu com grande panache nos palcos mediáticos da política portuguesa. 

 

À imagem dos seus ídolos, Trump e Bolsonaro, trouxe o estilo arruaceiro, o insulto, a mentira e a meia-palavra, a falta de escrúpulos, a provocação repulsiva, enfim, tudo aquilo que muita gente acredita ser a essência do ser humano, se bem que na sua versão animalesca. E a coisa pega, a coisa faz sentido, mostrando-nos a verdadeira imagem da nossa sociedade. Ventura é o reflexo no espelho de um país que não é racista, nem misógino, nem fascista, um país que odeia vigaristas. 

 

Olhamos para o mundo todo e vemos muitos líderes como este, gente que põe a pátria acima de tudo e deus acima de todos, como se cada povo fosse uma claque de futebol embrutecida e pronta a ser orientada no ódio absoluto ao outro, ao adversário. Alguém lucra com isto.

 

Portugal entrou neste clube de povos ansiosos por derrotar e humilhar aqueles que não são humildes como nós, que não são crentes como nós, que não clarinhos de pele nem possuidores de sentimentos puros, que não são gente de bem. Se isto não fosse preocupante seria apenas motivo de escárnio. As classes sociais irmanam-se num único e grandioso objectivo: manter a pureza histórica da nação valente, glorificar a pátria imortal e os seus símbolos, ajoelhar, rezar e acreditar. Berra-se A Portuguesa em todo o lado como se fosse hino de estádio de futebol. 

 

Entramos na era da luta de claques.

quarta-feira, março 20, 2024

Dúvida acumulada

     61 anos de dúvida acumulada pagam o valor de uma pergunta apenas. Uma vida inteira até chegar o dia de agora para encontrar uma única resposta sem sequer ter formulado a pergunta que possa corresponder-lhe. 

    61 anos de dúvida acumulada são todo o espaço em volta de uma palavra solitária; uma palavrinha perdida, a ecoar baixinho na imensidão que é para mim a vida toda que vivo, coisa insignificante seja qual for a escala de medida com a qual tente compará-la. 

    Uma palavra a pulsar, coração da existência, a bombear sentido para a existência, para o mundo, para nós, palavra solitária, absoluta, arrasadora semente de vida.

    Julgo ouvir a palavra "amor"...

segunda-feira, março 18, 2024

Evangelista

     A desordem do mundo é paralisante. Animado por sentimentos cristãos, gostaria de poder contribuir decisivamente para reparar algumas malfeitorias, corrigir este erro ou  aquele, aproximar dali o Paraíso, nem que apenas mero meio milímetro. Mas, népias! Querer parar as injustiças é como esticar as mãos na esperança de com elas estancar a ventania. 

    Sente-se coisa inútil.

    Desanimado (pedindo desculpa a Deus) vira-se para o outro lado e volta a fechar os olhos. O sono cai  como se fora carga da Brigada Ligeira. É, agora, um penedo no silêncio absoluto do pinhal. Coisas informes, nacos de carne sanguinolenta, esvoaçam em redor da uma única flor carnívora, batendo asinhas de colibri disparam pingos de sangue a toda a volta, metralham as paredes. 

    Sorri no sono.

    Lê o jornal no écran do telemóvel, bebe um café (horrível, amarguíssimo) enquanto guarda o pacotinho de açúcar no bolso das calças. Olha sobre o ombro, imagina nazis por todo o lado. Regressa ao écran sem prestar atenção a nada do que lê. As palavras têm forma mas perderam significado. A mente  vagabundeia e é assim que abandona o Café da Esquina: pés no chão, cabeça  bem no ar. É preciso viver mais aquele dia e a morte não lhe faz falta.

    Lá do outro lado do mar morrem pessoas inocentes às pázadas, homens ímpios comandam as nações. O abismo abre-se como se abre um inferno, pior do que este mundo, milhões de seres vivos precipitam-se naquela ravina infinita. Aves, homens, peixes, a catástrofe é indescritível e a morte insaciável. Um evangelho do desespero vai-lhe crescendo dentro da cabeça. Cada dia uma nova página.

    Chegado ao local de trabalho veste a farda, coloca no peito a plaquinha com o nome, olha-se ao espelho e alisa para a nuca os cabelos que lhe restam. Dirige-se ao balcão. Por entre um sorriso elástico que lhe arreganha a taxa, entrega eficazmente o seu gritinho de guerra: Bom dia, em que posso ajudar?  

domingo, março 17, 2024

Quase

     Rio-me de tudo! Tudo me provoca espasmos descontrolados na musculatura, por todo o corpo. Contraio-me, ondulo, abro a boca em busca de uma golfada de ar e liberto um riso talvez nervoso. Não sei. Não sou um estudioso. Rio e pronto! Sabe bem.

    Por vezes caio num torpor incompreensível (pode acontecer após uma sessão de riso). Talvez seja uma paralisia provocada pela estranha sensação de estar quase a compreender uma certa coisa sem que seja capaz de alcançar que coisa é essa. Incomoda. 

    E, então, é assim. O meu corpo comporta-se como o de uma leão marinho, a ondular gorduras, a largar sons guturais e, de súbito, tudo pára, atravessa-me um último estertor antes de se instalar uma acalmia violenta. Paraducho.

    E é muito isto, do riso ao estupor vai a curtíssima distância de um pensamento incompreendido. Afinal não passo de um ser humano (ou perto disso).

quinta-feira, março 14, 2024

O pior inimigo

     Todos os dias me espanto mais um pouco com a nossa capacidade para sermos estúpidos. Quando escrevo "nossa" quero referir-me à sociedade que vamos construindo, refiro-me àquilo que somos como um todo. 

    Vivemos o quotidiano como se fôssemos zombies, mortos-vivos sociais. Sentimos extrema dificuldade em soletrar correctamente a palavra "so-li-da-ri-e-da-de" quanto mais em compreender o seu significado.

    Todos os dias me espanto com a forma decidida como a nossa espécie marcha em direcção a um abismo que cava cada vez mais fundo; um buraco imenso, misto de falésia e sepultura, que vamos abrindo, abrindo, abrindo, enquanto desejamos não o fazer. Temos (temos?) consciência plena de estarmos a contribuir inexoravelmente para o nosso próprio fim. Mas nada nos detém.

    O discurso não reflecte o pensamento, a acção é contrária ao desejo que a impele. Somos animais impossíveis de compreender. Deus deixou de nos proteger daquilo que desejamos. Esse era o Seu papel. Agora estamos entregues a nós próprios, entregues ao nosso pior inimigo.

    Enquanto a Estupidez for rainha absoluta não haverá ministério que nos valha.

quarta-feira, março 13, 2024

Silencioso

     Faz hoje exactamente um ano. Caronte vinha já deslizando, silencioso como ele só. Terá por mim passado no caminho, não me apercebi, não o vi, não o senti. Faz hoje exactamente um ano que chegou Caronte.

    Chegou cedo, encontrou-o a dormir. Não sei se falaram, se olharam nos olhos um do outro. Caronte levou-mo. Não mais voltei a ver o meu pai. Fica a saudade, enquanto Caronte não voltar, dessa vez para me levar.

segunda-feira, março 11, 2024

O bestunto

     A ascensão da extrema-direita nas eleições legislativas de ontem deixou-me a pensar no modo como nascem os monstros. Nascem como todos os seres, aparentemente frágeis e desprotegidos até que ganham dentuça, garras nas patas e passam a cheirar mesmo mal. Ontem o fedor entrou-me de rompante pela janela entreaberta.

    O mundo não acabou, apenas ficou ficou bastante mais feio e mais perigoso.

sexta-feira, março 08, 2024

Visão e premonição na vida de um cão

    A sensação reconfortante de que a nossa sociedade evolui continuamente é uma ilusão poderosa. Imaginamos uma espécie de Nirvana ao virar da esquina sem olharmos para trás, sem verificarmos se as coisas vão ficando nos lugares onde as deixámos.

    As conquistas alcançadas não são eternas. Os impérios, afinal, acabam sempre por cair. Aquilo que foi grandioso degrada-se, definha e perece. O poder está muito longe da solidez que aparenta ter de cada vez que se impõe e determina uma certa linha da realidade.

    A felicidade alterna com momentos de tristeza, à euforia sucede o marasmo, a depressão. Um dia tudo acabará. Imagino que fique o silêncio e que o silêncio permaneça.

domingo, março 03, 2024

Projectos

     Apercebeu-se de que nunca tivera aquilo a que se pode chamar "um projecto de vida". O que tivera sempre, o que continuava a enquadrar as suas acções, a sua vida, fora uma organização quotidiana orientada em função de projectos pontuais. Esses projectos permitiam-lhe planear o futuro doseadamente; por vezes chegava quase a perceber o que andava a fazer neste mundo.

    Na ausência de um "projecto de vida" limitava-se a viver uma vida feita de projectos. Até aquele dia não se pode dizer que se tenha dado mal. Se descontarmos uma ou outra fase menos feliz, tivera (e continua a ter) uma vida razoavelmente descansada.

terça-feira, fevereiro 27, 2024

Saudade

     Por vezes sinto-me tão próximo de qualquer coisa semelhante ao que imagino que possa ser a verdade que a felicidade dentro de mim quase ocupa algum espaço. É difícil de explicar por se tratar de uma sensação cá muito perdida nas profundezas do meu ser mas sei que é uma coisa real, de outro modo não me aperceberia da sua presença, da sua fisicalidade.

    Isto acontece de surpresa. Não posso dizer que acontece quando menos se espera pois estaria a mentir e a mentira não faz parte da minha prática. Quando sinto necessidade de mentir costumo ficar calado. Omito. Ou tento omitir, nem sempre resulta. A mentira é um embaraço. Mas, dizia eu, isto acontece de surpresa.

    É uma coisa que não se força, não se busca, deixa-se acontecer e é uma felicidade. É fugaz, é transitória; na maior das parte das vezes, conforme vem assim se vai, sem deixar vestígio nem registo. Fica apenas uma espécie de saudade. Acho que é isto, a saudade. Que a saudade é isto.

sábado, fevereiro 24, 2024

Escuridão

     Há coisas que servem apenas para existir. Não têm aparente utilidade prática. Limitam-se a cumprir o seu papel. Por isso mesmo encontram-se frequentemente em vias de extinção.

    Incansáveis, procuramos o espírito da coisa embora saibamos que a coisa não tem espírito, que a coisa, na maioria das vezes, se esconde dentro de nós.

    Cercados por alcateias de monstros ávidos de riqueza assistimos impotentes à desolação da paisagem.

quarta-feira, fevereiro 21, 2024

Tempo é dinheiro

   Os debates entre os candidatos às próximas eleições legislativas e os respectivos comentários foram um espelho do estado a que chegámos. Assistimos a uma sucessão de programas televisivos encarados como se se tratasse de mero entretenimento, espartilhados por espaços comerciais. Aquilo que os "bonecos" pudessem dizer foi sempre acessório e utilizado apenas para alimentar os inacreditáveis espaços de comentário que se lhes seguiam. Os "comentadores" avaliavam as prestações dos candidatos como se fossem mestres-escola vigiando o conhecimento, a postura e a atitude de alguns fedelhos.  

    Veio-me à memória a ideia pré-histórica de que se vendem candidatos como se fossem sabonetes. Nos dias que correm os candidatos ajudam é a vender sabonetes. Desde que nos transformámos em consumidores, deixando de ser cidadãos, que a publicidade se tornou uma espécie de Inteligência Artificial de mercearia. Acéfala e indiferente aos destinos da Comunidade e do Ser Humano, como é de esperar de uma IA, a publicidade transforma tudo em negócio e determina o foco e a duração dos tempos de atenção e concentração a que temos direito. O que importa eleger A, B ou C? Desde que o tempo continue a ser dinheiro estará tudo bem.

terça-feira, fevereiro 20, 2024

Seja

     Não quero que eles sejam como eu. Só não gosto que sejam como são. Que vivam como lhes for mais confortável. Por mim, tudo bem. Mas não me venham dar ordens nem me venham impor as suas leis merdosas.

segunda-feira, fevereiro 19, 2024

Ser como o cuco

     Reflectir sobre o tempo é uma actividade perfeitamente dispensável. Para quê matar neurónios a tentar compreender os segredos do tempo quando temos o relógio incrustado no interior da cabeça, no interior do peito, nas palmas das mãos e nas solas dos pés? 

    Transformamo-nos em relógios. Desde o dia em que nascemos até ao dia em que vamos a enterrar trabalhamos laboriosamente nesse sentido, o nosso sonho é virmos a ser mecanismos complexos e exactos. Se virmos bem, a cegonha não traz os bebés de Paris mas sim algures do território suíço. 

    Somos como os cucos: cúcú, cúcú! Deitamos a cabeça de fora a horas certas e fazemos um sorriso de circunstância. Avançamos e recuamos, ensaiamos uma rotina diária ordenada. Cúcú, cúcú. Havemos de nos transformar em algo que não nos dê o trabalho insano de pensar. Cúcú, cúcú.

    Os cucos insinuam-se, põem os seus ovos nos ninhos alheios e vão meter nojo para outro lado. Os cucos são como os fascistas e os fascistas são como os cucos. Os cucos põem ovos nos ninhos alheios, os fascistas põem mentiras nos cérebros alheios. Ovos de medo que, quando eclodem, trazem ao mundo o terror.

    Nunca pensei poder pensar o que acima escrevi. Ou ter-me-ei limitado a escrever estas palavras, de um modo mecânico, quase automático, numa atitude surrealista? As ideias que ficam expressas não eram minhas, andavam por aí a pairar e, quando escrevi o texto, desceram à Terra na única forma possível: esta. Exactamente esta!

    As ideias são como ovos de cuco...

domingo, fevereiro 18, 2024

Tempo é dinheiro

     Muito se tem falado do facto de os debates entre candidatos às próximas eleições legislativas serem curtos e apressados enquanto os espaços de comentários que se lhes seguem são prolongados horas a fio. Aí, os comentadores discorrem sobre o que foi e não foi dito naquele intervalo de tempo no qual os candidatos ocuparam o ecrã. E atribuem notas, como se fossem mestres-escola.

    Afinal de contas é tudo, debates e comentários, espartilhado por espaços comerciais opressivos que sufocam a palavra e o pensamento humanos.A Publicidade tornou-se uma espécie de Inteligência Artificial de mercearia, acéfala e indiferente aos destinos da Comunidade e do Ser Humano, que asfixia os nossos sonhos e os transforma em negócios, tabelas de Excel e outras coisas mais ou menos dispensáveis à nossa felicidade. O que importa eleger A, B ou C? 

    Desde que o tempo continue a ser dinheiro estará tudo bem.

sábado, fevereiro 17, 2024

A fronteira

     Ando um bocado desiludido. Que a decência não é o nosso forte enquanto sociedade, isso eu já sabia e, imagino, também tu já tinhas percebido. O que me deixa cabisbaixo é perceber, uma e outra vez, que a indecência não tem linha que lhe limite o nível mais rasteiro. Quando essa linha atinge o chão há sempre quem venha com a sua pá escavar o buraco que levará essa linha mais fundo e mais baixo e mais e mais e mais.

    Estará no Inferno a última fronteira da filha-da-putice?

sexta-feira, fevereiro 16, 2024

A dúvida

     Gostava de caminhar entre as pessoas. Gostava de as olhar discretamente. Uma vez por outra estabelecia contacto ocular mas desviava rapidamente a atenção para qualquer outra coisa, olhar era muito diferente de ser olhado.Talvez pudesse afirmar que amava os seus semelhantes, não tinha a certeza disso. Não absolutamente.

    

terça-feira, fevereiro 13, 2024

Um muro

     Para lá do muro havia uma multidão. Deste lado, seis ou sete guardas armados bastavam para manter as coisas no lugar. O muro era intransponível, estava-se em segurança. A vida podia continuar como habitualmente. A multidão não chegava a ser vista, era ignorada. Velhos, novos, bebés ou crianças, homens ou mulheres, multidão ignorada. Deste lado do muro havia muitos pobres e alguns ricos mas a fome era disfarçada, nalguns casos era até encorajada (como, por exemplo, entre os eremitas e os modelos de passerelle). Para lá do muro, muro coroado com arame farpado, a fome tornara-se um modo de vida.

    Rotina e desespero.

    O que fazer com aquela multidão? Ignorá-la. Sim, mas ignorá-la não faz com que desapareça. Não? Temo bem que não. Se olhar por cima do muro verá que a multidão não só permanece no local como aumenta a olhos vistos. (silêncio) Mande chamar o responsável pelos guardas.

quinta-feira, fevereiro 08, 2024

A arte de engolir sapos

    Já vi muita gente a engolir sapos. Uns gesticulam como marionetas e fazem estranhas caretas, outros vão largando impropérios incompreensíveis (pois quem consegue dizer algo que faça sentido com um sapo enfiado na boca?), outros ainda ficam hirtos como estátuas de mármore e vão metendo a coisa para dentro com ar de quem está aflito.    

     A arte de engolir sapos não está ao alcance de qualquer um. Para engolir um sapo e manter uma pose elegante é preciso estar-se bem seguro de si. É preciso saber que o sapo será digerido e, fazendo fé absoluta na Lei de Lavoisier, transformar-se-à numa outra coisa. A arte de engolir sapos implica ir pensando no futuro enquanto se digere o bicho. 

    E, mais tarde, o futuro chega e o sapo é já uma outra coisa.

  

quarta-feira, fevereiro 07, 2024

Notas soltas

     Começou o arraial dos debates televisivos da campanha para as eleições legislativas de 10 de Março. É um estranho espectáculo. 

    Tento compreender um pouco melhor a obra de Bosch. Quanto mais atento nela mais me convenço de que o mestre se divertiu muito, imaginando monstros patuscos num mundo habitado por monstros a valer. A pintura de Bosch é uma espécie de higiene. 

    Ter a percepção clara da grandeza de uma ideia deve ser um fardo pesado. Ou se guarda bem guardada, ou se perde ou, na pior das hipóteses, tenta-se partilhá-la. Feita a partilha resta a espera e, finalmente, o embate. Será coisa violenta? 

    Observo os velhos (os mais velhos, para ser preciso) na tentativa de perceber o que me espera num futuro não muito longínquo. Vejo-os mas não os sinto. O processo é lento. Talvez um dia lá chegue.

quinta-feira, fevereiro 01, 2024

Trabalhar como Adão

    Tenho a sensação que há em Portugal uma ideia perversa relacionada com o trabalho. Entre nós, trabalhar está associado a sofrimento. Se não sofres com a actividade que desenvolves, então é porque aquilo que fazes não pode ser considerado na categoria de trabalho. Trabalho é sinónimo de sofrimento.

    Estará esta perversão relacionada com o mito da expulsão do Paraíso? Afinal de contas Adão foi condenado a sofrer para o resto dos seus dias, regando o solo com o suor do seu rosto num esforço infinito para sobreviver. Ninguém o mandou trincar o Fruto Proibido. 

    Assim, quem não sofre com o trabalho não é flor que se cheire por não honrar o desgraçado que serviu de semente à espécie que somos. O verdadeiro descendente de Adão é aquele que pena neste mundo como se penasse no Inferno.

quarta-feira, janeiro 24, 2024

O livrinho

     A vida está cheia de coincidências que, por serem coincidências, nos parecem estranhas quando delas nos apercebemos. Na segunda-feira passada escrevi o post anterior a este e referi certos contos populares portugueses que encontrara algures nos recantos da net (deixei o link). Na parte da tarde deparei-me, por mero acaso e em circunstâncias nada ordinárias, com um livrinho intitulado Contos Populares que contém vários dos contos que havia encontrado no tal site.

    (Noto que, no parágrafo anterior, escrevi em itálico a seguinte sequência: post-net-link-site... chiça!)

    Como sou pessoa de hábitos, li com maior atenção o objecto de papel. Fiquei arrepiado com alguns dos contos, não porque fossem assustadores na forma mas sim no conteúdo. Historinhas contadas com candura e simplicidade porventura exageradas, continham (contêm) passagens de uma crueza capaz de revolver as tripas a um cidadão contemporâneo tal o grau de misoginia e/ou racismo ali atingido.

    A questão que coloquei no final do post anterior mantém-se. 

    Qual é a questão? É ir lá ver, está já, já aqui mais em baixo.

segunda-feira, janeiro 22, 2024

Herança cultural

    Leio alguns Contos Populares Portugueses, recordo um ou outro de quando era criança. A sensação que fica é a de que vivi noutro planeta.

    Os ditos contos são, invariavelmente, narrativas incompreensíveis para a esmagadora maioria das crianças dos dias de hoje. A linguagem e os ambientes em que decorrem, não fazem qualquer sentido e muitos deles colocam as personagens em situações de violência latente lidando com a morte de um modo muito pouco acanhado. 

    Imagino as criancinhas, habituadas a ambientes virtuais, colocadas perante narrativas que implicam familiaridade com o ar livre e o mundo dos bichos verdadeiros. As fábulas fazem mais sentido se se conhecerem os bichos que, humanizados ou não, as protagonizam. Não vejo como se poderão conjugar as coisas.

    O que fazer com esta herança cultural? Deita-se no lixo, utiliza-se tal qual está ou tenta-se a reciclagem? Fico a pensar no assunto.