quarta-feira, janeiro 29, 2020

Lengalenga

Compra; poupa; aproveita; oferece; ganha! Sê feliz. Eles estão atentos às tuas necessidades, querem que te sintas bem, que não te falte nada. Encomenda; telefona; faz online; vive a vida sem limites; nada se te compara: o espectáculo és tu! 

segunda-feira, janeiro 27, 2020

Viver a vida

Encontrar motivação para viver mais um dia é algo em que raramente pensamos. Limitamo-nos a viver, é tão simples! Afinal de contas somos animais. Será que a doninha sofre de depressão e o leão-marinho pensa na família quando sai para caçar? Até que ponto estamos em pé de igualdade com um pombo correio?

Hoje, mesmo antes de ligar o interruptor, quando o quarto estava escuro e o dia ainda não nascera, hoje pensei como será o despertar de um animal como eu que tenha acordado numa zona de guerra (partindo do princípio que se consegue dormir quando a nossa casa pode ser atingida a qualquer momento por um míssil assassino). Qual a motivação para o dia que segue quando nos falta tudo, principalmente a certeza de que é um mundo pacífico aquele que está do lado de lá da porta?

Haverá distinção entre viver e sobreviver?

sexta-feira, janeiro 24, 2020

Desinformar

A manipulação das nossas cabecinhas é implacável. A nossa opinião pessoal é um saco de boxe onde alguns filhos-da-puta treinam diariamente, horas a fio, martelando-nos insistentemente com notícias do mais variado teor, com tendência preferencial para as que são fabricadas à medida dos interesses que lhes enchem a peida. Pof, tumba, catrapumba, pof, pof; os socos chovem sobre a nossa mente desprotegida, indefesa, a precisar de pomada e compressas nos hematomas.

Há assuntos e notícias que se estendem no tempo, em campanhas de longa duração; outros são de consumo rápido, bastam uns poucos dias, pouquinhos mesmo, e dá-se por encerrado o assunto, está tudo resolvido. A campanha avança à uma em jornais impressos, canais de "informação" televisivos, rádio, redes sociais e internet de um modo geral: é uma avalanche, um tsunami, uma força incontrolável que leva à frente a verdade, a mentira e o pouco mais ou menos. Não fica nada.

Se fores vítima de uma campanha destas não te adianta nada seres inocente caso alguém insinue que és culpado. Talvez te safes no Juízo Final. Pode ser que Deus não se deixe iludir por estas manigâncias mas não convém confiar demasiado nas Suas capacidades.

terça-feira, janeiro 21, 2020

Calorzinho

É complicado ter esta sensação de que a nossa civilização caminha para o abismo a passo de Golias e ser professor, lidando diariamente com tantas crianças, ver diariamente tantos sorrisos, perceber tanta inocência, é complicado.

É complicado assumir que estou a preparar estas pessoazinhas para a vida quando não tenho a mínima noção do que será essa vida dentro de 20, 30 ou 40 anos. Aqui há 30 anos atrás, quando comecei a minha carreira, o problema não se me colocava, o futuro tinha contornos menos indefinidos e, ainda assim, vai saindo absolutamente diferente do que então imaginava. A transformação social acelerou de modo estonteante e continua a acelerar. Ainda por cima sem travões.

É complicado, mas o calor humano ajuda-me a superar tudo. Ajuda-me a sorrir, ajuda-me a interagir, ajuda-me a viver intensamente todos os momentos. Pode soar lamechas mas é a mais pura das verdades. O calor humano é o que vale a pena, tudo o resto são tretas.

sábado, janeiro 18, 2020

A lógica do Urinol

Ah, como é reconfortante que, por uma vez que seja, a polémica se desdobre em volta de um objecto artístico; ou será que a raiz da polémica é o artista que criou o objecto artístico? Terceira possibilidade, bem mais prosaica e enfadonha: a polémica reside no vil metal, sempre o vil metal. Haverá ainda uma outra via de análise, a da necessidade de ter razão, arrotando a derradeira posta de pescada, mas não valerá a pena ir por aí que o espaço é curto e o tempo escasseia para todos.

Longe vai a época em que a Academia das Belas-Artes decidia do alto da cátedra o que era e o que não era Arte (assim mesmo, com maiúscula). Não havia grande discussão. Em 1863 deu-se em Paris um grito semelhante ao então recente Grito do Ipiranga. Foi no célebre Salon des Refusés, exposição paralela à da Arte do Salon, validada pela Academia, onde pontuavam, entre outros, artistas menores como Manet ou Cézanne, cuja pintura não era mais que ridícula e grotesca. A partir daí a coisa foi-se desenrolando até que explodiu definitivamente com as vanguardas artísticas do início do século passado, tendo como obra emblemática A Fonte, da autoria de Marcel Duchamp que consistia, como será do domínio público, num urinol deitado e assinado: R. Mutt, 1917 (segundo a Wikipedia terá um valor de mercado actual de cerca de 3 milhões de euros). Esta foi considerada, por um painel constituído por historiadores, curadores, galeristas e outras sumidades do universo das artes plásticas, a mais importante obra de  toda a Arte produzida no século XX. Um urinol, benza-nos Deus!

Aqui chegados aceleremos em direcção a Leça da Palmeira e a A linha do Mar, obra polémica de Pedro Cabrita Reis que tanto tem dado que falar. O artista fez publicar um texto neste jornal que desagradou aos seus detractores tanto pelo modo como afirmou a sua autoridade quanto pela argumentação estética. Apontaram-lhe a falta de humildade, como se a humildade fosse uma qualidade necessária para a validação do discurso e do objecto artístico, e puseram em causa que o artista possa decidir se a sua criação é ou não Arte (ou arte, com minúscula). 

João Miguel Tavares escreveu um divertido texto, “Serenamente, Cabrita Reis e a lógica da banana” onde conclui que “A lógica da batata foi ultrapassada. Hoje impera a lógica da banana.” A meu ver, a causa principal do espanto que conduz à polémica é o valor que a Câmara de Leça pagou pela obra e os valores absurdos que caracterizam o Mercado da Arte actual. Seja lógica da batata, da banana ou do urinol, é a liberdade do tão incensado “mercado” que estará, verdadeiramente, em causa. Mas, como todo o bom neoliberal sabe e defende, os mercados auto-regulam-se. Pois então, deixemos o Mercado auto-regular-se em paz, que raio! Diz o Povo que ao tolo, quando lhe apontam a Lua, ele se fica pela contemplação do dedo que lha indica. Não sei se aplica nesta situação mas é tentador acreditar que assim seja.

Carta enviada ao Director do jornal Público

sexta-feira, janeiro 17, 2020

Demónios santos

A violência sobre as crenças alheias é um crime complicado. Aquilo que os primeiros cristãos fizeram à Cultura Clássica foi um crime inqualificável, foi o triunfo da ignorância pomposa sobre a sabedoria. Os cristãos povoaram o mundo com demónios.

Primeiro descobriram demónios em cada estátua, em cada templo, em cada livro e como fervorosos crentes que eram, fizeram da sua destruição um objectivo de vida. Ao decapitarem um estátua ou no acto de incinerar uma pilha de escritos, os futuros santos vislumbravam demónios a escapulirem-se, uns, outros vociferando desesperados. E lá iam eles.

Mas muitos dos mais terríveis demónios que os cristãos trouxeram ao mundo foram os seus santos, os seus bispos, os seus exércitos de trauliteiros assassinos. A violência sobre as crenças alheias é um crime complicado.

segunda-feira, janeiro 13, 2020

Nostalgia

Esta manhã o frio fez-me sentir uma estranha felicidade. Apesar de ter as mãos e os pés próximos do gelado e a face meio queimada pela mordidela do ar, senti-me feliz. A neblina escondia o topo dos prédios e conferia à rua da cidade um aspecto bem mais interessante do que é habitual, envolvendo-a  em mistério.

E eu senti felicidade dentro de mim.

O Inverno tem sido mentiroso. Mais calor do que frio não faz justiça a esta estação do ano. Talvez por isso me tenha sentido feliz. Talvez este súbito ajustamento do tempo meteorológico ao tempo do calendário me permita algum tipo de apaziguamento, me traga algum sossego. Ou talvez tivesse apenas alguma saudade do frio invernal; saudade das serras horizontais, ao longe; saudade das poças de água gelada pela manhã, das ervas cobertas de geada, da respiração vaporizada a dançar-me em frente aos olhos, cada suspiro uma fada.

Talvez este frio me tenha feito sentir uma fortíssima nostalgia dos tempos em que fui criança, saudade da Beira Alta, talvez...

quinta-feira, janeiro 09, 2020

Esperteza

Ser esperto. Espertalhuço, espertalhão, ter olho vivo. Muito aposta o nosso sistema de ensino nesse traço de personalidade. Por outro lado pretendemos que as crianças se comportem como anjos. Anjinhos espertalhões?

A sorte de um professor é que ainda há muitos miúdos que são anjinhos, simplesmente. Putos fixes.

O pior são os espertalhões que não são fixes, os que tentam enganar o professor, os pais, o mundo todo, os que se enganam a eles próprios conscientemente. Mmmmmh...

Esperteza não é sinónimo de inteligência, embora muitas vezes sejam confundidas. É como distinguir um papagaio de uma papagaia, certamente existem diferenças mas estão meio escondidas. O contacto humano permite descobrir quais são essas diferenças e compreender que saber muito de matemática ou de gramática não chega para fazer um cidadão. É preciso muito mais.

terça-feira, janeiro 07, 2020

Valha-nos Santa Sorte

Trump é um cretino. Toda a gente está de acordo que Trump é uma refinada besta, um pedaço d'asno, como diria o meu avô Mário. Pessoas estúpidas há-as às pazadas, trazem pequenos problemas ao mundo que podem ser grandes problemas para os seus vizinhos ou familiares e gente próxima. É uma questão de escala e distanciamento. Mas Trump, um dos maiores cretinos de que há memória, é presidente dos EUA e, por enquanto, um dos seres humanos mais poderosos à face da Terra. Logo traz gravíssimos problemas agarrados à sua tremenda estupidez.

Trump foi eleito pelos cidadãos dos EUA. Serão esses cidadãos maioritariamente estúpidos como o seu presidente? Serão os cidadãos dos EUA um infindável bando de cretinos mentecaptos?

O mundo treme perante a boçalidade maldosa dos tiranos: Trump, Putin, Xi Jinping, Khamenei, Kim Jong-un, e por aí fora; não me recordo de viver num lugar tão perigoso como é este planeta nos tempos que correm. Não se vê como descalçar esta bota. Os equilíbrios de interesses são impossíveis de conjugar sem que alguém se enfureça ou sinta uma avidez insaciável de riqueza e poder.

Resta-nos inventar uma santinha que nos acuda, a Santa Sorte é forte candidata ao lugar.

sábado, janeiro 04, 2020

Ejaculação precoce

Apercebo-me agora de que acreditava na capacidade das Democracias para se protegerem dos desvarios de putativos malucos que viessem a ser eleitos. Temo estar enganado.

Um maluco maldoso, narcisista, ignorante, boçal, gordo, falso careca e falso cabeludo, tem tudo para fazer merda. E, sentindo-se apertado, é merda da grossa que faz.

Quando Clinton foi acusado de mentir por não admitir que uma tal de Monica lhe tinha feito umas cenas demasiado íntimas na própria sala oval e se viu enredado num processo de impeachement, catrapunfas, vai de bombardear a Jugoslávia para vergar as maléficas forças sérvias. É um exemplo do chamado "efeito borboleta".

Ontem foi a vez de Trump ejacular sobre o Iraque, matando um general iraniano no aeroporto de Bagdad.Apesar de todas as previsões as consequências são imprevisíveis.

quinta-feira, janeiro 02, 2020

O valor da coisa


Terá dito Picasso que a “a arte é uma mentira que nos ajuda a compreender a verdade”; li algures que esta frase célebre terá sido rematada com a afirmação: “na medida em que formos capazes de a compreender”. Vem isto a propósito da questiúncula levantada em torno de “A Linha do Mar”, obra de arte pública da autoria de Pedro Cabrita Reis, levantada do chão em Leça da Palmeira. 

Colocam-se duas reflexões interessantes: por um lado a distância entre mito e realidade na imagem do artista; por outro o processo de validação do objecto artístico e consequente valor monetário, temas apaixonantes se bem que dificilmente resolúveis. 

Subitamente há uma multidão que, apesar de não ligar patavina ao mundo das artes, tem opinião sobre o supostamente exagerado valor do objecto (250 mil euros mais IVA no caso vertente) embora não proponha um valor alternativo. 

Nota-se também algum cepticismo relativamente à competência artística do criador da obra, um dos nomes maiores da arte contemporânea portuguesa. 

Quando a questão gravita em torno de dinheiro todos têm uma opinião imediata que poderá basear-se, por comparação e, por exemplo, no preço do quilo de batatas ou no valor da grama de ouro (questão magistralmente exposta por Piero Manzoni na sua obra-prima de 1961 intitulada “Merda de Artista”). 

Voltando à citação de Picasso, à falta de melhor expressão que materialize a perplexidade provocada por tão complexa situação, sobra a palavra “vergonha”, que se vem tornando arma de arremesso dos néscios quando tentam expressar o espanto estupidificante que lhes é provocado pelo mundo que habitam.