quinta-feira, março 27, 2014

Beleza

As coisas não têm, obrigatoriamente, que ser belas. As coisas têm, isso sim, de fazer sentido e nós, se fizermos sentido com elas, poderemos compreendê-las. É na nossa capacidade de compreensão que reside a beleza do mundo: descobrir o sentido das coisas faz de nós artistas.

A beleza é uma possibilidade universal e latente. Na verdade todas as coisas do mundo são potencialmente belas  pois todas elas (todas elas) fazem sentido. Uma nuvem é bela, um grão de areia é belo, um monte de merda tem a sua beleza. Um parafuso ou um caracol são fontes de inesgotável beleza. Compete-nos a nós compreender o sentido que estas coisas fazem e descortinar a beleza que possuem.

A beleza das coisas depende muito de quem as vê, ouve, sente; seja um ser humano ou qualquer outro tipo de entidade, animal ou nem por isso. A beleza está aí, em todo o lado, à espera de ser percepcionada. Há, no entanto, milhões de coisas às quais nunca ninguém sentiu, viu ou ouviu o mais leve traço de beleza.

Não sei se não são essas as coisas perigosas...

sexta-feira, março 14, 2014

Numeração humana

Os nazis tatuavam nos judeus que mastigaram em Auschwitz aqueles numerozinhos sinistros como factor de identificação. Uns no braço, outros no peito, estavam todos escritos para não haver confusões.

A nós tatuam-nos uma série de numerozinhos no cartão de cidadão: identificação fiscal, utente de saúde, segurança social e mais uns quantos, um pouco menos perceptíveis mas, decerto, individualizados.

Há também os números das contas bancárias (que alguns de nós tatuam na memória), além dos números dos cartões de débito ou de crédito que funcionam como aquelas tatuagens que saem como brinde nas guloseimas das crianças; aquelas que se "tatuam" com água e vão desaparecendo com o tempo.

Estamos todos escrevinhados, riscados e carimbados, identificados, numerados e chipados. Somos como pombos com anilha electrónica, não damos um passo que não possa vir a ser reconstituído no futuro caso seja necessário alguma autoridade saber onde fomos, por forma a poder decidir o que andámos a fazer.

Virá o dia em que todo e cada ser humano será chipado à nascença, um chip enfiado algures, num lugar de onde seja inamovível. Todos os números guardados bem fundo do ser, o sonho de qualquer sistema burocrático contemporâneo.

Estamos marcados para a vida e, decerto, um dia que nos enfiem num caixote e nos enterrem algures, haveremos de ter um numerozinho qualquer que nos identifique, individualize e permita saber com exactidão onde foram depositados os nossos restos mortais.

sábado, março 08, 2014

Ahoy!

A Ode Marítima, está em cena no Teatro Municipal de São Luiz, em Lisboa, com Diogo Infante a representar e João Gil, sentado sob uma ténue luz, tocando guitarra de quando em vez.

Infante leva o texto de Álvaro de Campos numa viagem ora suave ora lugubremente alucinada. Gil está lá, umas vezes silencioso, outras dedilhando a guitarra de forma irrepreensível.

O espectáculo é excelente.

Ahoy! A palavra, caraças! A palavra...


quarta-feira, março 05, 2014

Aos amigos brasileiros

Capa da edição do Público de 5 de Março de 2014, a ilustração é de Adriana Calcanhoto

Hoje é dia de aniversário do jornal Público, um dos diários portugueses de maior tiragem no país. Todos os anos o jornal comemora o aniversário convidando alguém para ser director por um dia.

Este ano o Público convidou Adriana Calcanhoto e o número de hoje (ver aqui) é totalmente dedicado ao Brasil. Uma visita ao site do jornal permite ver uma série de reportagens, entrevistas e outras peças jornalísticas dedicadas ao que aqui designamos por País Irmão.

Parece-me uma coisa interessante. Adriana Calcanhoto assina um editorial muito bom e, logo a seguir, na página 3, é publicado um excerto da carta de Pêro Vaz de Caminha a el-rei Dom Manuel por ocasião do achamento da Terra da Vera Cruz. Ao longo do jornal, mais excertos vão aparecendo, como se estivessemos a desvendar o Brasil à medida que vamos avançando na leitura. Essa Adriana tem ideias...

Um número de festa com o Brasil em pano de fundo.

terça-feira, março 04, 2014

A pergunta

Nos últimos dias tenho acordado da forma habitual: pronto para dormir, como diz a canção de Manuel da Cruz. À medida que me vou deslocando de modo automático no regresso a este mundo vem-me à cabeça uma pergunta.

A guerra terá começado?

A situação na Crimeia parece explosiva. Russos de um lado, ucranianos do outro, a comunidade internacional a enviar recados. Os meios de comunicação abordam a questão oscilando entre um tom apocalíptico e outro mais optimista. É uma situação estranha. O conflito parece ser inevitável mas ninguém, deste lado do mundo, quer realmente acreditar nessa possibilidade.

E se a guerra estoirar, de facto? Como vai ser? Irão os ucranianos ser abafados pelo exèrcito russo numa batalha desigual? O que farão os Estados Unidos e a União Europeia? Não foi mais ou menos assim que começaram as duas grandes guerras do século passado?

Faço café e torradas, leio mais umas páginas da Trilogia de Nova Iorque de Paul Auster. Vou tomar banho. Depois tenho de me deslocar ao banco (o meu cartão de débito foi engolido por uma máquina que não mo devolveu) e levar o computador a um feiticeiro informático qualquer (o computador pifou, morreu, foi-se), um feiticeiro que, pelo menos, lhe recupere a memória.

É assim; pouco tempo após ter regressado ao mundo real a realidade vai-se transformando em algo próximo, comezinho, vulgar. O futuro deste mundo discute-se lá longe, na Crimeia, mas, para já, as minhas preocupações são outras.

Terá a guerra começado enquanto escrevi estas palavras?

domingo, março 02, 2014

Vénus de Vison

O Teatro em Portugal é ainda uma espécie de coisa estranha, quase secreta. Basta olhar a programação cultural nas páginas dos jornais para perceber que a oferta é cada vez mais rara e ir a uma sala para constatar que não é propriamente um fenómeno de massas.

Não sou um espectador particularmente assíduo mas assisto a um número razoável de espectáculos, principalmente em Lisboa e Almada. Raramente saio desiludido.

Na passada quarta-feira fui ao Teatro Aberto (aqui) onde está em cena Vénus de Vison (ver aqui). A sala tinha aproxiamadamente um terço das cadeiras ocupadas. No final os actores foram brindados com uma merecida ovação. Ana Guiomar e Pedro Laginha formam um par extremamente competente, atingindo momentos de representação de uma intensidade assinalável.

Um espectáculo despretensioso que merece a tua visita, caro leitor.