quinta-feira, abril 30, 2009

Uma foto cubista

Encontrei esta foto (não é própriamente uma foto mas uma montagem por sobreposição ao que pude constatar) da autoria de Pablo Picasso. Trata-se de um retrato do pintor naïf conhecido por Douanier Rousseau. Um estranho retrato, de facto, concebido em 1910, na época em que Picasso e Braque andavam com o Cubismo às voltas nas respectivas cabeças.
A forma como a figura se funde e confunde no (falso) fundo, mostra bem o anseio dos cubistas em criarem imagens que oferecessem uma visão desajustada daquela que a máquina fotográfica tinha para nos oferecer. Este trabalho está de acordo com a idealização pictórica que viria a ser desenvolvida por estes artistas, interessados em contrariar o óbvio, introduzindo na pintura europeia uma dimensão intelectual e mental que, até aí, era inexistente e, como é claro, desconhecida.
Esta imagem mostra também como o Cubismo, apesar do que parece ser o senso comum, não se afastou assim tanto da realidade, antes a interpretou por outras vias. Picasso e Braque, mesmo nas suas obras mais herméticas, representaram sempre pessoas, objectos ou paisagens, nunca tendo entrado decididamente no campo da abstracção pura.
Abriram a porta, é um facto, mas preferiram não ser eles a entrar naquele mundo fantástico da pintura sem objecto que estava ali mesmo à beira. Esse trabalho ficou para outros.
É uma foto deveras curiosa.

segunda-feira, abril 27, 2009

Porcaria

Primeiro foram as Vacas Loucas. Onde elas já vão!? Depois a temível Gripe das Aves. Já desapareceu? Uma e outra a fazerem-nos imaginar situações terríveis. A palavra "pandemia" entrou no vocabulário quotidiano, a fazer com que "epidemia" parcesse brincadeira de crianças. Os telejornais abriram com notícias alarmantes. Morreu mais um aqui, outro ali. Os vírus atravessando continentes, fazendo vítimas a milhares de quilómetros de distância umas das outras. E nós perdidos, a olhar os acontecimentos como espectadores de bancada lateral, num jogo de ténis ao vivo.

Agora (re)surge a gripe suína (aqui alguns dados informativos). Mas a que está a ocupar os nossos novos pesadelos não é a velha gripe suína, antes se trata de uma nova estirpe. Uma estranha mistura de ADN de suínos, aves e seres humanos. Caramba, quem seria capaz de imaginar tamanha monstruosidade? Assustador, de facto.


Esta misturada de ADN dá a impressão de estarmos perante um inimigo não só poderoso como também inteligente. Como se os vírus fossem capazes de estabelecer alianças inesperadas entre eles, esquecendo diferenças fundamentais, com o único objectivo de ganharem a guerra que travam com a nossa espécie pela supremacia à face do planeta Terra.

Para já o alarme é enorme. Andamos todos aflitos, com medo de um inimigo invisível que penetra o nosso organismo para com ele se banquetear.

Tentamos estabelecer estratégias de combate. Medicamentos, vacinas, máscaras protectoras das vias respiratórias. Tudo muito avant-garde, coisas de países civilizados. Talvez estejamos a exagerar no alarme, uma espécie de autoflagelação, tentativa de expiar pecados enormes e antigos. Talvez não haja razão para tanto temor e a ciência tenha respostas capazes de evitar um surto que cause tantos mortos como quando a gripe suína nos visitou nos idos de 1918. Só que nesse tempo ficou conhecida como "gripe espanhola". Esta relação entre suínos e espanhóis nesta coisa de gripes parece-me de mau gosto. Como se isto não bastasse levou-nos Amadeo de Sousa Cardoso em Dezembro de 1918, misturado nos muitos de milhões de vítimas que então se contabilizaram (os números dançam entre extremos demasiado vagos, fala-se em 20 a 40 milhões de mortos!!!).

Depois da "gripe do subprime" vem esta nova desgraça complicar-nos, ainda mais, o passeio. Uma porcaria, esta gripe suína!

sexta-feira, abril 24, 2009

35 anos

25 de Abril? Sempre!

quarta-feira, abril 22, 2009

Elogio da Palavra

imagem de Dave McKean



É difícil explicar como tudo aconteceu. Talvez tenha qualquer coisa a ver com o facto de dizermos que fazemos cocó quando, na verdade, estamos a cagar. Daí a substituirmos a proverbial merda pela inócua caca, vai um passinho de anão. Constatamos que há pedopsiquiatras incomodados com o facto de o Lobo Mau “comer” a Avozinha ou de a velha Tia Chica atirar um pau ao gato. Ouvimos com frequência designar a mentira por “inverdade”. Criamos assim um espaço ambíguo entre o que é e o que não é, entre a verdade e a mentira. Mas como designamos quem profere uma “inverdade”? Arrisco: mentiroso, embora não me pareça que essa designação esteja de acordo com o conceito de inverdade.


Todos sabemos o pântano viscoso que é a língua portuguesa quando utilizada por prestidigitadores habilidosos. Basta pensar na legislação produzida na Assembleia da República, sempre que a letra da lei contraria o seu espírito, nos casos em que a lei acaba por proteger aqueles que pretendia castigar. O feitiço virado contra o feiticeiro? Ou feitiço, simplesmente?


Se formos covardes temos todo o direito de temer as palavras porque, como se vê, uma vez libertas e lançadas ao mundo, elas tomam o destino nas próprias mãos e desobedecem a quem as proferiu. Quantas vezes não ouvimos pessoas a queixarem-se por ser mal interpretadas? Quantas vezes as pessoas se queixam que aquilo que disseram não era o que, na verdade, pretendiam dizer?


Ao que consta, a partir de agora não é aconselhável utilizar a expressão “autista” quando nos referimos a um político bronco ou, simplesmente, casmurro, para não dizer comprometido com alguma posição “inverdadeira”, fazendo de conta que é honesto. E que dizer dos “procedimentos alternativos” e “técnicas avançadas de investigação” para designar a tortura? Como se os santos inquisidores nunca tivessem utilizado a técnica de afogamento nos tempos áureos da igreja católica. Pode o primeiro-ministro utilizar impunemente a expressão “campanha negra”? Cocó em vez de merda, é o que é. Palavras vazias mas cheias de substância.


Temos assim tanto medo de chamar as coisas pelos nomes que verdadeiramente as definem ou, mais candidamente, merecem? Parece que sim. Enrolamos a língua e procuramos uma palavra ou uma expressão que torne a nossa ideia num camaleãozinho simpático, capaz de passar despercebido neste mundo de ambiguidades. Mas o camaleãozinho não deixa de ter a respectiva língua, comprida e viscosa, pronta a capturar a mosca varejeira que é o alvo da nossa ideia.


Escreveu Hugo Ball, na conclusão do inexcedível Manifesto Dadaísta de 14 de Julho de 1916: “Essa maldita linguagem à qual se cola a porcaria como à mão do traficante que as moedas gastaram. A palavra, quero-a quando acaba e quando começa. Cada coisa tem a sua palavra; pois a palavra própria transformou-se em coisa. Porque é que a árvore não há-de chamar-se plupluch e pluplubach depois da chuva? E porque é que raio há-de chamar-se seja o que for? Havemos de pendurar a boca nisso? A palavra, a palavra, a dor precisamente aí, a palavra, meus senhores, é uma questão pública de suprema importância.


Sejamos livres, sejamos criativos, não há que ter medo das palavras. Utilizemos a palavra conforme o instinto nos ordenar. Ignoremos convenções manhosas e pruridos fedorentos. Vamos falar com imaginação total, colorido absoluto. A palavra só nos ultrapassa se tivermos medo de a usar. Como tudo na vida, de resto.



terça-feira, abril 21, 2009

Uma coisa espantosa


A notícia vinha na secção Pessoas do jornal Público de ontem. É aquela página do jornal em que se remexe um pouco na privacidade de figuras públicas. Umas mais, outras menos. De vez em quando aparecem figuras desconhecidas, personagens mais ou menos bizarras, tal como esta Susan Boyle, uma senhora escocesa com aspecto de jogadora de rugby e uma postura, no mínimo, estranha.


Susan tornou-se súbitamente uma vedeta graças ao seu desempenho num daqueles programas televisivos em que as pessoas comuns tentam impressionar um júri cantando qualquer coisinha. A receita do programa é conhecida e banal. Os candidatos são muitas vezes arrepiantes (embora pareçam não estar conscientes disso) e os elementos do júri divertem os espectadores humilhando aqueles que se atrevem a expor a sua fragilidade. Uma coisa ao nível do Circo Romano onde as feras despedaçam o ego das pessoas.


O vídeo da prestação de Susan Boyle tornou-se um must no Youtube (ver aqui, legendado em Português) e esta dama escocesa de 47 anos, desempregada e, ao que consta, virgem como um passarinho acabado de saír do ovo, transformou-se num fenómeno mediático a nível planetário, uma espécie de Cinderela do século XXI.


O vídeo, que recomendo vivamente, mostra como o preconceito cínico pode ser engolido sem causar dor aparente. Repara como os elementos do júri encaram Susan e a sua brejeirice antes dela começar a cantar e como, depois de ouvirem as primeiras notas, vão avançando num espanto estupidificante. O público passa pela mesma experiência e nós, ao vermos o vídeo, só não apanhamos o mesmo balde de água morna porque já estamos avisados do que iremos ver. Mesmo assim não somos capazes de deixarmos de nos espantar. Digo eu.


Depois... bom, depois há o pormenor de a letra da canção parecer ilustrar toda aquela situação, sublinhando a lição ética, moral e estética que aprendemos com Susan Boyle naquele palco. Não é nada que não soubéssemos: nunca se deve julgar ninguém pela aparência, mas...


Nota: apercebo-me agora de que Susan se tornou verdadeiramente fenomenal. As notícias sobre ela sucedem-se, bem como entrevistas e idas aos programas de TV do costume. Susan está a ser assediada por todo o tipo de hienas e abutres do negócio que imaginam formas diferentes de ganhar dinheiro com esta figura inesperada, tendo até recebido um convite para protagonizar um filme pornográfico. O que reservará o futuro a esta improvável vedeta?



segunda-feira, abril 20, 2009

Santo Alvarez


Não percebo nada de processos de canonização. Estão para mim ao mesmo nível que o uso do preservativo está para o Cardeal Patriarca de Lisboa, ouço falar, explicam-me como se faz mas, na verdade, fica entre o mistério e o desejo de conhecer.

Vem isto a propósito do processo em curso para a canonização de Nuno Álvares Pereira, o muito nosso Santo Condestável que conheci nos livros da escola primária, quando era ainda um catraio de calções curtos e joelhos esmurrados.

A coisa está para se dar um dia destes. Para atingir o estuto de santo é necessário haver milagre comprovado que tenha sido praticado pelo candidato. No caso de Nuno Álvares, os altos chefões da igreja católica que atestam e carimbam estas coisas, dão como provada uma cura milagrosa de uma senhora, cozinheira reformada, Guilhermina de Jesus, de sua graça. A história é, como de costume nestas situações, pouco clara e mantida num certo e conveniente secretismo.

Não quero parecer demasiado cínico mas, ouvi dizer, que a Nuno Álvares Pereira foram atribuídas onze (11) ressurreições e outras maravilhas no tempo em que ele ainda falava e pisava solo pátrio. Mas esses feitos mirabolantes não valeram nada, zerinho, para o processo que agora se conclui. Acabou por ser uma mera cura de um olho queimado por óleo a ferver o que valeu ao nosso Condestável um lugarzinho no panteão dos santos da igreja. Parece-me mal, parece-me injusto e, sobretudo, parece-me que a canonização de Nuno Álvares peca por tardia.

Ainda assim é motivo de regozijo para todos os portugueses que a santidade do homem que malhou forte e feio nos espanhóis na célebérrima batalha de Aljubarrota seja, finalmente, reconhecida.

Mas um processo rocambolesco como este tinha de ter alguma anedota associada ou não fosse este santo português. Os convites enviados pelo Vaticano para a cerimónia de canonização do nosso homem têm uma gralha e o nome aparece em versão espanhola! "Alvarez" em vez de "Álvares", como seria de bom tom. Não é por isso que Dom Nuno fica menos santo, mas que é uma ironia tramada, isso ninguém pode negar.

domingo, abril 19, 2009

“Quero ser teu amigo”






É extraordinário! Ou nem por isso? Quero dizer, é extraordinário que uma "simples" mudança de rostos na liderança dos EUA possa abrir novos canais de comunicação com a Venezuela, Cuba e o Irão, para dar exemplos evidentes. Quem poderia imaginar há apenas meia-dúzia de meses atrás que seria possível estabelecer diálogo entre inimigos jurados, como o eram os países atrás citados?

Este aperto de mão, coisa que todos os políticos fazem para ficarem na fotografia com um sorriso ou um gesto de boa vontade, ultrapassa a banalidade por ter os protagonistas que vemos acima. Mas, com a abertura de espírito que Obama trouxe para as relações internacionais, dentro em breve será de uma tremenda banalidade. Veremos Obama a apertar a mão a Fidel Castro e a Amhadinejad com o mesmo sorriso com que apertará as mãos dos líderes europeus ou chineses, nivelando supostas relações de amizade entre os povos de uma forma que parecia impossível quando Bush, o demónio, ocupava o lugar de presidente dos EUA.

Esta situação mostra até que ponto a imagem é importante no mundo em que vivemos e até que ponto a imagem é uma questão de atitude.


Lá no fundo precisamos de sorrisos e abraços e beijinhos que substituam caras fechadas e punhos apontados à cabeça do adversário. A via do diálogo parece estar de volta apesar de haver ainda alguns figurões que ficam fora do enquadramento destas fotografias.

sábado, abril 18, 2009

A propósito





Na sequência do post anterior, incluído na Tertúlia Virtual de Abril, subordinada ao Prazer, fiquei a matutar porque terei escolhido a Liberdade para ilustrar este tema.
Quando falamos em "prazer" muitas coisas nos assaltam o espírito, normalmente coisas relacionadas com a excitação dos 5 sentidos que marcam as fronteiras do nosso corpo em relação ao mundo circundante. Cenas do género comer, beber, fumar, fazer amor, por aí assim. A Liberdade parece conta de outro rosário. Mas, bem vistas as coisas, o que podemos nós retirar deste mundo se não formos livres?
Ser livre é que se apresenta uma questão complicada. O que poderá definir a nossa Liberdade? Não querendo alogar-me muito, nem parecer um padre a dar sermão aos peixes, diria que a principal condição para sermos livres é não termos segredos escondidos dentro de nós. Se não tivermos segredos podemos pensar livremente e, pensando livremente, podemos sentir-nos livres de facto. Sim, a Liberdade é uma coisa do espírito mais do que do corpo... ou não!?
Problema, problema, é não termos o nosso segredinho inconfessável a roer-nos os calcanhares à consciência. Pois. Será a Liberdade uma impossibilidade?

quarta-feira, abril 15, 2009

Não há maior prazer que a Liberdade de ser livre




LIBERDADE

Ai que prazer
não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa

terça-feira, abril 14, 2009

Bang, bang!


Appaloosa é um western, um filme de cowboys com muitos boys e apenas uma cow (que na verdade é um bull). Trata-se da segunda realização de Ed Harris (o seu primeiro filme foi o excelente Pollock), um actor com estofo e o aspecto certo para dar corpo e vida à personagem de Virgil Cole, um intrépido defensor da lei com cara fechada, marcada e desenhada por rugas fundas, um pouco à maneira do grande Clint Eastwood.

O filme tem uma realização sóbria. Os enquadramentos são exemplares e a reconstituição dos ambientes e cenários parecem-me extraodináriamente cuidadosos.

As personagens ligam-se com segurança numa acção globalmente bem descrita. Não faltam os duelos nem o bando de índios renegados. Lá está uma pianista sedutora e frágil, uma prostituta inteligente e conhecedora das coisas da vida. Os cowboys são violentos mas ingénuos no que toca a questões sentimentais. Uns bébés grandes com pistolas e espingardas nas mãos, como de costume.

Pessoalmente gostei deste Appaloosa mas já li críticas pouco elogiosas. Nada de mais (nem de menos). Nem todos sentem saudades dos velhos westerns ao ponto de se sentirem agradados com os novos.

segunda-feira, abril 13, 2009

Ver a Deus

Explorar aqui o lugar de onde retirei esta imagem


Fui ver a Deus mas Ele atrasou-se e, quando lá chegou, já eu lá não estava. Já eu vinha a caminho desta casa, no meio de filas intermináveis de carros cheios de outros que, como eu, Lhe fizeram visita com marcação para Domingo de Páscoa.

Andei uma semana quase inteira a rolar rodas lá para o Norte. Na 5ª feira Almada-Aveiro-Viseu. Na 6ª Viseu-Porto-Viseu. No Sábado Viseu-Aveiro-Viseu e, finalmente Domingo, Viseu-Almada no meio da confusão toda. Tudo para ver a Deus e Deus atrasou-se, rai's parta! Bom, não convém mentir, porque Deus sabe tudo e sabe bem que vê-Lo era o menos importante dos objectivos destas andanças que antes Dele (muito antes) estão os meus pais.

Ainda assim tive a minha epifania pascal. Foi na estrada, na A25, entre Viseu e Aveiro. Perante uma serra qualquer recortada no horizonte, coroada por nuvens escuras e grandiosas, tive a revelação renovada da consciência do espectáculo mais grandioso do mundo: a Natureza! Viver na cidade, entre prédios e muros e sempre enfiado na resolução imediata dos problemas quotidianos, faz-me esquecer a grandiosidade da Mãe Natureza e do espectáculo constante que ela é. Pensamos sempre que quem vive fora da cidade, coitadinho, está em desvantagem porque longe do bulício citadino "não há nada". Que ideia mais parva! Longe de cidade há tudo o que ali não existe.

Passei estes dias a olhar em volta com os olhos repletos de maravilhas. As cores das estradas secundárias (oh, Deus, os tons de verde!!!), as encostas verdejantes, o céu sempre aberto e aqueles lugares onde nunca bate o sol, as serras, os montes e os vales. A Natureza a prometer mais do que merecemos receber.

Enfim, regressei a casa metido na barriga de uma serpente de carros, um monstro incomensurável a arrastar-se no caminho da estrada, chão cinzento. Cá estou de novo, sentado em frente ao meu PC, a escrever estas palavras.

Deus chegou atrasado e já não lhe beijei os pés, como é de tradição, mas vi-Lhe o rosto que Ele tanto tenta esconder. Vi-O nas serras da Beira Alta, onde ele habita e de onde nunca saiu.

quarta-feira, abril 08, 2009

Mercado volúvel

Piero Manzoni e a sua célebre merda enlatada em 1961


Vem na edição de hoje do Público: "O cenário que se antecipava foi agora traduzido em números: segundo o jornal económico Finantial Times, durante os primeiros três meses de 2009, o mercado da arte sofreu uma quebra de cerca de 35 por cento em relação ao mercado em alta de 2008. O jornal, que faz uma antecipação dos resultados do índex Mei Moses, a sair na próxima semana, diz que a quebra foi acentuada por coleccionadores e investidores atingidos pelo escândalo Madoff. Juntamente com outros bens, muitos dos afectados pela crise tentaram obter fundos com a venda de pinturas, esculturas e obras em fotografia, ainda que por valores muito abaixo do que teriam rendido antes de Setembro último."

A quebra nos valores astronómicos que os objectos de arte atingem no mercado não surpreende ninguém. O navio da economia mete água e há já muitos marinheiros de água doce que atiram ratazanas borda fora, não importa a que preço. Mas as ratazanas, toda a gente sabe, são excelentes nadadoras. Quem não tiver nojo de pegar nestes produtos enjeitados deve aproveitar porque, num cenário de retoma económica, irão, decerto, recuperar o investimento.

É o eterno sobe-e-desce da existência humana, o efeito iô-iô das crises económicas. Quando a crise atraca nas bolsas, os preços de certos bens tendem a cair na realidade. E se caem! Caem com estrondo e por ali ficam, na sombra, a lamber as feridas, esperando um dia mais solarengo que lhes restitua o prazer de existirem.

É curioso verificar que "Segundo os especialistas consultados, as vendas em baixa dizem respeito sobretudo a obras realizadas entre o pós-guerra e a actualidade, o tipo de investimento feito pela elite de Wall Street e semelhantes ao longo dos últimos sete anos.", a arte contemporânea sempre imersa nas terríveis dúvidas que continua a provocar quanto ao seu "real" valor, tanto quanto se duvida do real valor da riqueza "produzida" no mercado de especulação de capitais.

Iremos nós assistir a uma mudança de paradigma no estabelecimento dos rankings de preços dos objectos de arte? A verdade é que perante o descalabro do sistema de especulação de capitais, que deixou à vista de toda a gente a fragilidade fraudulenta de uma legião de especialistas em economia com pés de barro escondidos em sapatos de luxo, algo poderá mudar também entre os especialistas com pés de merda que constroem reputações e iludem os valores dos objectos de arte.

Ainda na mesma notícia pode ler-se que "Já o mercado dos grandes mestres da pintura, a funcionar abaixo do radar do boom de investimento em arte dos últimos anos, terá tido um declínio mais moderado." Não haja dúvidas de que o Tempo (seja lá isso o que for) se encarrega de caucionar o valor das obras de arte. O futuro dirá quais os objectos artísticos que irão resistir e perdurar no mercado. Apesar de todas as injustiças, há sempre uma justiça mínima que sai redondinha dos ponteiros do relógio e cai graciosamente das folhas dos calendários.

terça-feira, abril 07, 2009

Imagens aos pontapés


Olhando melhor para a quela foto que estava no post anterior e vialou para este, há um pormenor interessante. Repara bem na quantidade de máquinas fotográficas que dançam à frente de Barack Obama. A maioria dos manifestantes que aplaudem o símbolo máximo da "hope" tem uma máquina e, como são máquinas digitais, disparam-nas a torto e a direito, captando centenas, milhares, milhões de imagens de Obama.

Desde que o digital entrou em definitivo nos nossos hábitos, passámos a produzir muito mais imagens. Já não temos a pressão de nos sentirmos obrigados a tirar uma foto especial sempre que carregávamos no botão da velha máquina, foto essa que iria ser impressa e, quem sabe, emoldurada, o que, até pelo preço, nos obrigava a procurar um enquadramento especial, uma pose estudada. Agora é o tempo do instanâneo-instantâneo. Fotografamos tudo, sob todos os ângulos possíveis, sem temores nem constrangimentos.

Gostava de ter acesso às fotos que estão a ser tiradas na foto que ilustra este post. Seria decerto um exercício curioso poder compará-las. Descontando as que enquadram apenas a nuca do parceiro da frente, ou só o céu, ou apenas pernas em plano picado, tenho a certeza de que uma coisa havia de ser comum a muitas delas: o sorriso de Obama. O homem ainda arranja algum problema muscular de tanto sorrir. A menos que pratique ao espelho.

domingo, abril 05, 2009

Hope


Obama é um fenómeno de popularidade na Velha Europa. A mesma Europa que Bush tanto desprezava e que por ela foi hostilizado como inimigo figadal.

Haverá uma distância assim tão grande entre o anterior presidente norte-americano e o actual? Pessoalmente creio que sim, que existe uma enorme diferença entre eles, mas há um "pequeno" pormenor que os aproxima, um "pormenor" chamado Estados Unidos da América. Eles são diferentes mas o país por eles representado continua o mesmo.

Obama está em estado de graça. Nem a crise mundial retira brilho à sua presença magnética. O à-vontade com que se move, o aspecto descontraído da sua figura jovem e bem parecida encaixa na perfeição na imagem de Santo Redentor que os europeus desejam mas não encontram entre os seus líderes.

Barack "Hope" Obama, o enviado dos céus, está aí. Passeia o seu esplendor pelo Velho Continente. A sensação de que poderemos encontrar maneira de estreitar laços de cooperação e reencontrar caminhos que nos aproximem dos EUA, revitalizando o mítico Império Ocidental, fazem-nos esquecer que foi esse mesmo Império o causador do abismo actual, a tal Crise assustadora que resultou do primado da Economia sobre a Política.

Não haverá Obama que nos valha se não formos capazes de substituir o paradigma civilizacional que nos condiziu à beira do precipício onde actualmente vacilamos. Ou somos capazes de subjugar o sistema económico à vontade e às necessidades de um sistema polício e social de rosto humano ou então estaremos apenas a dar mais uns passos em direcção ao vazio que nos aguarda de boca imensa e aberta.

Para já, Obama é o campeão da aparência. Aguardemos para verificar se será, também, campeão da substância.

Oxalá seja. Tenhamos "hope"!

quinta-feira, abril 02, 2009

Encher chouriços


Quando ouço falar de cenas como essa reunião dos G-20, percebo com muito maior propriedade a velha expressão portuguesa do "encher chouriços".

Quando era miúdo vi, muitas vezes, as mulheres (não me lembro de ver homens a fazerem esse trabalho) a encherem as tripas do porco com pedaços da sua própria carne (do porco, está bom de ver). As tripas haviam sido lavadas e secas, a carnucha bem temperada, com tempo e sabedoria. Depois era só "atar e pôr ao fumeiro". Ali ficavam as chouriças (na minha terra usa-se o feminino) penduradas junto à lareira que era onde se cozinhavam a maior parte das refeições, numas panelas pretas com três pés de diferentes dimensões, apesar de haver por lá um fogão a gás, se a memória não me falha. As chouriças haveriam de secar o suficiente para depois serem comidas de mil e uma maneiras por quem as pudesse comer.

Vem isto a propósito dos reais poderes dos governantes locais perante as decisões dos mais poderosos. O que fazem Sócrates e os seus ministros quando governam aqui o nosso Portugalzinho senão encher chouriços? Enchem-nos com a carnucha do pessoal cá do sítio e põem-nos a secar, à espera das decisões dos gabirús do G-20. Depois logo se vê no que isto dá. As leis que apadrinham são tão desvairadas, tão estúpidas e canhestras que os cidadãos ficam embasbacados e sem capacidade para perceberem bem o que se está a passar naquelas cabeças ôcas. Sócrates bem se põe nos bicos dos pés mas a sua estatura como estadista não lhe permite ver além dos interesses particulares e pessoais. É pior que mau. Como 1º ministro não vale nada e, como cidadão, vale um pouco menos.

Obama, Brown, Lula, as senhoras Kirchner e Merkel, Hu Jintao, etc e tal, os tubarões mais dentuças deste mar perigoso, dão as ordens. Os resto do pessoal enche chouriços e aguarda. Alguém os haverá de comer. Aos chouriços, não aos tubarões que a esses não há dente que os morda nem consiga trincar.

quarta-feira, abril 01, 2009

Aguardemos...


"Os ricos que paguem a crise!" Quantas vezes esta palavra de ordem foi gritada nas ruas? Gritou-se, gritou-se e... os ricos não só não pagaram crise nenhuma como ainda por cima geraram uma outra com aspecto mais feroz e bem mais devoradora.

As empresas fecham por todo o lado ou reduzem dratiscamente o número de trabalhadores. Em Portugal, por exemplo, os números do desemprego dispararam em direcção à lua e, não tardam, estão a atingi-la. A sociedade civil tenta minorar o problema apelando à solidariedade de todos para que se consiga evitar, pelo menos, a fome entre os que estão mais desprotegidos. Gotinhas de água num oceano ácido. Mas não é só em Portugal que a crise assume o aspecto de um monstro descontrolado. É em todo o mundo ocidental.

Os 20 países mais ricos do mundo resolveram fazer a sua reuniãozinha da ordem em Londres. Má ideia. A capital britânica é um planeta dentro do planeta e está em efervescência. Manifestações para trás e para a frente, a violência assoma à flor da pele e há distúrbios pelas ruas. Sente-se uma instabilidade incrível e nem São Obama nos vale. Estará a nossa sociedade à beira da falência nervosa? Até onde irá tudo isto?

Aguardemos.

Ouço um autocarro lá em baixo, na rua, uma vozinha de criança lá ao fundo, um riso. Por enquanto tudo continua na paz do Senhor aqui, no país dos brandos costumes. A crise não se vê. Instala-se dentro das pessoas, cresce no remanso dos lares, é como um vírus. Teme-se que a segurança pública venha a ser afectada. Já há ministros que falam dessa possibilidade. Parece impossível. Mas quem perde tudo fica sem nada para perder. E isso é o rastilho que cresce à espera de um fósforo que lhe venha fazer companhia.

Aguardemos...