sábado, dezembro 27, 2014

Votos para 2015

Quando era pequeno aprendi a respeitar os mais velhos. Num ambiente salazarista isto implicava também respeitar, sem questionar, os chefes, os poderosos, Deus, os apóstolos, o padre, o professor, enfim, toda uma legião de seres, reais ou imaginários, que pareciam investidos de um direito especial para ditar orientações, limites e rezar sentenças definitivas. A vida era simples como as botas do ditador. Se alguém ocupava um cargo de responsabilidade e chefia era porque, decerto, tinha capacidades que o habilitavam a desempenhar as suas funções de acordo com as necessidades do povo e a boa ordem divina. 

Depois cresci, deu-se o 25 de Abril e as coisas mudaram. Percebi que a credulidade tem limites e que o respeitinho não é nada bonito.

O direito dos poderosos deixou de ser vitalício, hereditário ou benzido pela nunciatura, agora era o povo que acreditava na sua capacidade para escolher os que governariam a coisa pública. Assim fomos andando até chegarmos aqui mesmo, a este preciso momento: 2014 a morrer.

Já não acredito que quem ocupa cargos de responsabilidade e chefia o faça por ter capacidades especiais para o desempenho das suas funções. Acredito que os governantes e os poderosos resultam de acidentes da História, más escolhas, jogos de influências, interesses inconfessáveis. 

Percebo também que a dimensão ética não tem que ter cabelos brancos, que há velhos bem vestidos e perfumados que mentem mais e com maior maldade que um puto que seja simplesmente estúpido e a cheirar a cócó. Já não aceito o exercício da autoridade sem o questionar e não confio em quase ninguém que ocupe um cargo de governação. De crédulo a céptico o caminho foi longo mas surpreendentemente fácil.

O panorama político do “centrão” é uma paisagem árida, povoada por arbustos ressequidos e seres rastejantes, de formas indefinidas, que se movem furtivamente em busca da sombra protectora. 

Em 2015 iremos votar outra vez. Terá o povo coragem para escolher governantes diferentes daqueles que nos trouxeram até aqui, à beira do abismo? Faço votos de que seja esse o caminho, ainda que desconhecido ou perigoso.

sábado, dezembro 20, 2014

Meninos, é hora da barrela!

As recentes notícias sobre o chamado “processo dos submarinos” confirmam que o principal problema do nosso país é a falta de qualidades daqueles que compõem as “elites” com poder de decisão sobre a coisa pública.

O caso de Paulo Portas é bem revelador da opacidade com que as coisas se processam. Das duas, uma: ou Portas agiu de boa-fé e revelou ser um idiota, ou agiu de má-fé, comportando-se como um vigarista vulgar.

O modo como as suas estranhas decisões foram caucionadas por Santana Lopes talvez comece a levantar uma pontinha do véu sobre as razões que levaram Jorge Sampaio a dissolver a Assembleia, mandando o governo destes senhores direitinho às urtigas, o seu lugar natural.

Idiota ou vigarista, Portas não tem condições para se manter no governo nem mais um dia. Suportando uma personagem deste calibre, Passos Coelho, outro figurante de 2ª categoria na farsa do poder que nos é servida diariamente, mostra, também, as suas qualidades extraordinárias para o exercício do cargo que ocupa. De Cavaco, o Magnânimo, nem vale a pena falar, coitado.

Sim, porque os figurantes de 1ª categoria como Ricardo Salgado, também se afirmam ignorantes da verdade e, sem querer, enchem a bocarra de mentiras. Neste país não há verdade que não seja mentira e vice-versa. Está na hora da barrela. 

domingo, dezembro 14, 2014

É agora!

A coisa parece impossível de resolver. Aparentemente não haverá nada que se possa fazer para contrariar tão nefasta maré, estamos condenados.

O céu esconde-se, envergonhado, atrás de uma espessa cortina de nuvens mais cinzentas que a cinza, nuvens gordas, promessas de tempestade. Os pássaros voam rápido e baixo, piando de um modo que arrepia os mais corajosos e experimentados nos mistérios do oculto. Uma brisa gelada lembra-nos que temos uma ponta no nariz.

De súbito tudo pára. O vento pára, os pássaros param, as nuvens não mudam de forma nem se mexem no céu, petrificadas, o mar ficou sem ondulação, como se fosse um espelho gelado reflectindo o cinzento do céu, tornando o mundo todo cinzento. Cinzento. Um silêncio opressor abafa tudo. É agora!

quinta-feira, dezembro 11, 2014

Momento fora do tempo

Ok, sou um gajo capaz de obedecer à mais rigorosa das rotinas tão depressa quanto posso deixá-la para trás em absoluto esquecimento. Fazer uma nova rotina da ausência de rotina. A verdade é que tenho uma mente errática e uma capacidade de reflexão muito difusa.

Isto seria agradável se o meu trabalho exigisse de mim que fosse um tipo criativo, um inventor, poeta, artista, coisas assim, daquelas que impressionam as senhoras sentadas em volta da mesinha tomando chá em adoráveis chaveninhas, mindinho espetado e lábios em bico de passarinho que o chá vem quente. Contar histórias de grande moral interpretadas por personagens de ética estratosférica, o sonho de qualquer mortal que tenha vivido por estas bandas lá para finais do século XVIII, a montar os primeiros anos do século XIX.

Pois, mas eu falhei essa parte, a parte de impressionar velhinhas sem ocupação às cinco de la tarde.

O problema é quando o trabalho exige de mim competências burocráticas e uma disciplina metálica. Ui, ui, nessas ocasiões faço um esforço tremendo, quero concentrar-me, fechar as ideias em gaiolas individualizadas para que não se influenciem mutuamente ou se infectem com algum vírus esquisito. Mas. qual quê!?

As pessoas são animais e há animais que são como pessoas. Obviamente.

terça-feira, dezembro 09, 2014

Impotência intelectual?

De cada vez que leio os trabalhos e os testes dos meus alunos sinto uma pequena vertigem, uma espécie de vento no interior do crânio. Fico arrepiado.

Não é apenas a escrita indigente, os constantes erros ortográficos ou a incrível dificuldade na conjugação dos tempos verbais mais simples, na maioria dos casos vejo um infinito deserto de ideias, uma apatia crítica extraordinária.

Por mais que os pique, por mais que quase os insulte, raramente obtenho mais que um ajeitar na cadeira, uma mudança da mão que sustenta o queixo ou mesmo a cabeça, que é coisa que parece estar sempre a cair-lhes abaixo do pescoço.

Será que o facto de terem todos os conteúdos escarrapachados no Google, ao alcance de um clic, lhes retira o entusiasmo pelo saber? Será que a superficialidade uniforme da maior parte dessa informação faz deles uma espécie de amálgama cultural, sem curiosidade nem opinião própria para lá do que lhes é impingido pela publicidade e pela informação mastigada e colocada à disposição no Google? Receio bem que assim seja.

O Google está a criar uma geração de cidadãos intelectualmente impotentes? Honra seja feita aos putos que, no meio de toda esta caca, conseguem inventar-se a si próprios e ao mundo que os rodeia.

quarta-feira, dezembro 03, 2014

Húbris para que te quero!?

"Aquele a quem os deuses querem destruir, primeiro deixam-no louco." A frase de Eurípides é terrível mas revela-nos uma certa perspectiva da existência humana.

Quantas vezes não pensamos para nós próprios que o mundo está louco, querendo dizer que toda a gente que pisa este mundo é completamente louca? Talvez seja obra dos deuses.

Indo um pouco mais fundo; sabemos bem quem é responsável pela existência dos deuses. Logo não é de admirar que, sendo os criadores loucos, as criaturas o sejam igualmente. A tendência suicida da espécie humana terá também passado para os deuses?

Esta hipótese é inquietante. Talvez devêssemos pensar em retirar certos poderes às divindades que inventamos. 

terça-feira, dezembro 02, 2014

Vazio

O vazio é um espaço cheio de nada... mas que raio de coisa é essa: o nada!?
Se tem nome  é porque é alguma coisa embora pareça querer esconder-se ou passar despercebido.

O nada tenta fazer-se transparentemente camaleónico, confunde-se na paisagem, enrola-se na ausência de outras coisas, quer-nos fazer acreditar que não é o que, na realidade, é. O nada é um espião.

Tenta ser zero, ser vazio, tenta não ser nada, suprema artimanha, algo que tenta não ser aquilo que é.

Por vezes suspeito que o nada seja uma divindade maligna que se vai encostando nas dobras do nosso pensamento como quem não quer a coisa, à espera... eternamente à espera.

quinta-feira, novembro 27, 2014

Dúvida existencial

Hoje vi uma mulher que levava um puto pequeno sentado num carrinho de compras e falava muito alto com outra mulher que a acompanhava. Não dei atenção ao que dizia, falava de qualquer coisa banal, não me lembro. Registei apenas o tom de voz e a aparência desorbitada da senhora, um certo ar de louca com um sorriso estampado no rosto.

O puto conduzia as operações. Quando a senhora ia virando o carrinho para a direita, travou subitamente e voltou com brusquidão à esquerda, alardeando o facto de ter sido o pequenote a orientá-la. A senhora não ria, não mostrava qualquer expressão particular que pudesse desvelar-lhe o estado de espírito. Mantinha, apenas, aquele sorriso estampado no rosto como se fosse resultado de alguma cirurgia plástica e ela vá sorrir assim para todo o sempre. E falava alto (talvez exagerasse se dissesse que a senhora berrava).

Mais tarde, quando seguia ao volante do meu carro, dei por mim a olhar um sinal vermelho e a pensar que aquela senhora tinha fortes probabilidades de ser aquilo a que chamamos maluca. Se assim fosse (a senhora maluca) e o puto filho dela...será a maluquice hereditária? Quero dizer, uma criança nasce maluca ou fica maluca pela convivência e contacto directo com malucos encartados?

Seja como for, o que me confortou nesta situação e me levou a registá-la aqui, foi ter pensado como é estranhamente bela a loucura e como lhe reconhecemos o direito à vida. O que seria deste mundo sem os biliões de malucos que nele habitam?

quarta-feira, novembro 26, 2014

A doninha e a galinha

É complicado aceitar que não haja ninguém capaz de governar um país sem meter as mãos na merda. A rectidão e a honestidade são, cada vez mais, assuntos de fábula, coisas próprias de um tempo em que os animais falavam.

Como pode um homem honesto resistir às forças e tentações que lhe caem no colo mal senta o rabo na cadeira do poder? Como pode ele ignorar o canto insidioso das criaturas que pairam, sobrevoando nos ares, em volta da cabeça dos poderosos? Será necessária uma força de carácter apenas ao alcance de alguns heróis mitológicos.

Precisamos de um Ulisses ou de um Hércules para nos governar. Como podemos confiar numa doninha como Passos Coelho ou uma galinha como Paulo Portas?

quarta-feira, novembro 19, 2014

Luta

A ignorância é a mais grave das epidemias.
O surto de legionella ou a já esquecida ameaça apocalíptica do ébola vão produzindo efeitos mirabolantes dentro de certas cabeças. Imagino que dentro de muitas, muito mais que 100 cabeças.

Pessoas que não lêem jornais, que ouvem o noticiário televisivo  com ouvidos de burro ou se limitam a recolher informação vinda da boca do vizinho, criam imagens incríveis dentro da cabeça e não hesitam em dispará-las cá para fora com uma violência e um alarmismo dignos de prémio internacional. É inquietante.

Colocadas perante a evidência de que a sua opinião é uma coisa estúpida e sem fundamento essas pessoas, em vez de ficarem descansadas e aliviadas, tornam-se teimosas, quase agressivas: que ouviram, que lhes disseram, que vai morrer uma cambada de gente, que a coisa é gravíssima. Em última análise vamos todos morrer, eu, ele, ela, os nossos filhos, os nossos pais, os nossos amigos. Só ficam para semente aqueles de quem não gostamos e os nossos piores inimigos.

Fico descoroçoado. Não consigo acreditar. É como se a ignorância produzisse dentro de nós um indomável desejo de que as coisas corram mal, uma espécie de estranho ódio ao mundo e a nós próprios.

Todos os dias tento combater a ignorância mas raramente tenho a certeza de estar a ganhar a luta.

sexta-feira, novembro 14, 2014

Vampirices

Porque devemos nós preocupar-nos com a nacionalidade dos capitalistas que nos exploram?

Se uma noite destas for abordado na rua mal iluminada por dois sinistros vampiros, um originário da Transilvânia e outro, ali, da Bobadela, deverei  eu oferecer o pescoço e o sangue ao vampiro nacional? É claro que se o outro for mais agressivo é ele quem acabará por me cravar a dentuça no pescoço. É a Lei do Mercado.

Assim; porque devemos indignar-nos com o facto de haver cada vez mais chineses, brasileiros e angolanos a investir o seu dinheiro em empresas portuguesas? Uma empresa deixa de ser portuguesa se for gerida por um alemão? Desde que tenha emprego, salário certo e contrato de trabalho devo preocupar-me com a origem do meu patrão?

Tal como o capital, também a honestidade e a filha-da-putice não têm nacionalidade.

terça-feira, novembro 11, 2014

Noite e dia

O dia não acaba com a chegada da noite. Se tem 24 horas, dizer noite e dizer dia é coisa que faz pouco sentido. O relógio não se compadece com a luz. O relógio marca o tempo de forma implacável e o dia tem 24 horas. Nem mais nem menos um segundinho que seja.

Talvez estejamos precisados de uma outra palavra para significar esse espaço de 24 horas que o relógio marca e onde encaixamos as nossas existências independentemente da luz e da sombra, do calor, do frio, seja lá do que for! Tentamos organizar as nossas existências em função das 24 horas do relógio, é assim que acreditamos ser feitos e acreditamos fazer a vida.

O dia de 24 horas é uma coisa artificial; invenção humana. O dia tem a ver com a luz do sol e a chegada da lua. No dia de 24 horas não há lugar para o crepúsculo! Tenho saudades do tempo em que o dia era uma coisa viva.

quinta-feira, novembro 06, 2014

Ver habilitações

Diz o povo que "quem vê caras não vê corações" mas não diz que "quem vê caras não vê habilitações".

Há certas personagens que pelo seu simples aspecto parecem trazer estampado no rosto um carimbo de competência profissional em determinada área. Vem isto a propósito de Teodora Cardoso, essa aparente luminária das finanças nacionais.

O "boneco" desta senhora parece confirmar tudo aquilo que se poderia esperar da caricatura de alguém que, sendo mulher, tenha dedicado a sua vida ao estudo da obscura arte negra das finanças. Ela até pode ser uma nulidade, ter algum parafuso desapertado, alguma porca mal rodada mas que tem pinta de entendida na matéria, isso ninguém pode negar.

Teodora (até o nome tem um ressonância que impõe respeito mesmo num corredor de mármore, iluminado por janelas abertas sobre um jardim bem tratado por um jardineiro profissional) é a nossa presidenta: preside ao Conselho das Finanças Públicas e, olhando para ela, ficamos de imediato sossegados; acreditamos que uma mulher assim seja uma trabalhadora incansável que guarda apenas para os números todo o espaço que haja vago lá nas circunvoluções do seu cérebro cinzento.

O povo bem poderia dizer, em honra de Dona Teodora, que "quem vê caras vê habilitações".

terça-feira, novembro 04, 2014

Da estupidez

A arrogância pretensiosa de um ignorante é dos espectáculos mais irritantes que a Natureza inventou para nos distrair. Aquela segurança vazia, aquele olhar indolente, o meio sorriso escondido no canto da boca... ha, a estupidez!

O mais espantoso é a forma como os ignorantes são incapazes de pôr em causa a sua visão imbecil sobre o que quer que seja. Para um estúpido a estupidez funciona no lugar da inteligência. Uma pessoa inteligente consegue desconfiar do que lhe vai na alma, um estúpido ignorante vive soterrado em certezas.

A maioria das pessoas passa por uma fase na vida em que patinha perigosamente no pântano da estupidez. Ninguém nasce ensinado, à partida somos todos ignorantes.

Não é um espectáculo bonito de se ver, um adolescente burro como uma porta, seduzido pela imagem que faz de si próprio. A paixão por nós próprios é uma das mais temíveis armadilhas da existência humana.

Narciso sem Eco olha-se numa poça de lama.

segunda-feira, novembro 03, 2014

Midas

A passagem mais famosa do mito do rei Midas é aquela em que ele consegue de Dioniso o dom de transformar em ouro tudo aquilo em que toca. O pormenor de Midas ser pessoa de raciocínio lento, um estúpido, se não estivermos com rodeios, nem sempre é devidamente salientado.

Após se ter apercebido da enormidade do dom que obtivera, Midas beneficia da compreensão de Dioniso (teve sorte!) e a coisa resolve-se com um mero banho na nascente de um rio. Mas a tacanhez de espírito de Midas vai valer-lhe as célebres orelhas de burro, presente de um Apolo irritado.

O mito é daqueles bem conhecidos mas o que me impressiona é a burrice da personagem. Como se a concupiscência decorresse de uma notória incapacidade para compreender o mundo. Midas, estúpido como um calhau, é a imagem da ambição desumana. As orelhas de burro o símbolo da sua glória.

quinta-feira, outubro 30, 2014

Paranóia ou nem por isso?


É impressão minha ou a paranóia descabelada provocada pelo Ébola nos países ocidentais está a diminuir?

Em muitos países de África sim, a situação é terrível. Já morreram milhares de pessoas. Deste lado do Mar Mediterrânico a contagem de casos ainda não ultrapassou a casa das unidades mas, no entanto, não fomos poupados a alertas desesperados avisando-nos sobre a proximidade do Apocalipse.

De onde vem este desejo masoquista de que um dia (esse dia virá!?) uma epidemia devastadora caia sobre nós e deixe a nossa sociedade  num estado tipo Walkingdead? Será isto resultado de um sentimento de remorso, um recalcamento católico que nos faz olhar ao espelho e ver uma sociedade merecedora de um novo Dilúvio ou coisa ainda pior?

Há certas personagens que nestas ocasiões vêm para os écrãs de TV fazer cara de cú, franzir a sobrancelha e explicar à populaça que eles bem tinham avisado; que a grande epidemia da nossa geração é esta (agora é que é!!!), que estamos lixados e o melhor é ir encomendando a alminha ao Criador.

Parece que esses caras-de-cú se enganaram (mais uma vez) e que, oh céus!, ainda não é desta que vamos andar a enterrar as nossas famílias em valas-comuns.

O risco de infecção existe, não haja dúvidas quanto a isso. Ninguém está livre do Ébola do mesmo modo que ninguém está livre do HIV ou do Influenza.

Resumindo: não fiques desatento, caro leitor, se pisares cócó na rua tem cuidado ao limpar a sola do sapato, o cócó pode estar cheio de vírus Ébola! O mesmo com chichi ou escarretas. Não mexas em escarretas de desconhecidos, nem em poças de vomitado por identificar. Tem cuidado leitor amigo. Já são poucos os que visitam Blogues, não queremos que o Ébola te leve.

quarta-feira, outubro 29, 2014

Dúvida existencial

Ir acordando todos os dias num lugar pacífico onde as regras vão sendo cumpridas com maior ou menor esforço desde que o sol brilhe lá no lugar dele.

Tomar banho de água quente, beber café com açúcar, ter a sorte de sair à rua de cabeça erguida sem precisar de procurar atiradores furtivos ou outras coisas explosivas que caiam do céu... será isto o Paraíso?

A mulher atarracada que sorri e dá os bons dias, o homenzinho gorducho que conta histórias insalubres por detrás do balcão e serve cafés, a rapariga elegante que passa como se os pés não tocassem o chão... serão anjos?

Estarei vivo ou serei apenas um fantasma? Fantasma no Paraíso.


terça-feira, outubro 28, 2014

Reflexão matinal

A missão do poeta grego na era clássica seria a de educar os homens livres. A ser assim haveria uma perspectiva utilitária da obra de arte? A arte com uma função didáctica ao serviço de um regime político e de uma ideologia? A democracia grega foi entretecida com a religião e com o mito numa estranha síntese que, depois de tantos séculos, está no estado que nós sabemos.

A democracia nasceu em Atenas, cidade orgulhosa da liberdade dos seus cidadãos. Cidadãos que, na sua esmagadora maioria, se não na totalidade, possuíam escravos.

Diz o povo que "o que torto nasce, tarde ou nunca se endireita". Talvez a democracia não dispense o trabalho escravo. Talvez o fundamento da liberdade de uns seja a prisão de outros.

Disse Proudhon que "toda a propriedade é um roubo". Haverá quem possa dizer que "toda a liberdade é uma prisão"?

Isto está complicado, já me perdi. O melhor é ficar por aqui e ir comer um  pão com uma fatia de queijo e uma pequena chávena de café.

domingo, outubro 26, 2014

Ser Humano

Os passarinhos sáo, sob um certo ponto de vista, uma coisa horrível. Não falo daqueles passarinhos azulinhos que auxiliam a Gata Borralheira a fazer o seu vestidinho para o baile do príncipe. Falo dos passarinhos reais que cagam sobre o meu carro e piam desalmadamente quando os primeiros raios de luz invadem a paisagem e um gajo tenta adormecer, apesar de tudo.

A Natureza é assim: brutal e desapaixonada, obedecendo a regras desumanas pois os humanos são, apenas, uma das espécies que habitam o planeta.As nossas regras não valem nada, nem para nós nem para os restantes filhos de Deus.

Quem diz os passarinhos diz os cães, diz os gatos, os bodes e os leões. Todo o bicho tem pele, tem barriga e aparelho digestivo. O lugar que cada um de nós ocupa neste mundo é construído apesar e contra uma série de coisas bonitas e uma série de coisas feias.

Hoje é Domingo. Sinto-me em estado catatónico após ter comido (comi coisas vegetais e coisas animais) e bebido mais do que um copo de vinho. Há em mim uma espécie de vertigem que me desapaixona e me faz amargo e cínico. É a vertigem de Ser Humano.

quinta-feira, outubro 23, 2014

Monumento e bibelot

São dois livros muito diferentes: As Benevolentes de Jonathan Littell e o Francoatirador Paciente de Arturo Pérez-Reverte dificilmente podem ser comparados; não nos sentimos impelidos a comparar a Sagrada Família com a estatueta de um menino a fazer chichi que a tia velhota tem na mesinha lá da sala onde tomamos chá quando vamos de visita.

As Benevolentes intimidam o leitor lá do alto das suas 896 páginas. Ao olhar o volume, que na edição portuguesa tem na capa vermelha uma reprodução de uma tela de Lucio Fontana, um gajo menos corajoso fica logo a pensar em coisas como: "que tijolo!" ou "ler isto é como ter um emprego". Mas não é pela escala do discurso, nas suas páginas de texto denso e compacto, que este livro pode ser considerado um monumento.

Do mesmo modo O Francoatirador Paciente, livrinho de 240 páginas bem polvilhadas por animados diálogos que lhe aligeiram o peso global, não poderá ser por isso considerado um bibelot poisado num naperon rendilhado. Até porque o tema de Pérez-Reverte é muito interessante e actual e a essência da sua história transporta uma certa mistura de melancolia e raiva, mistura, a meu ver, bem espanhola.

Não será por As Benevolentes me terem transportado para lá das fronteiras da imagem que eu tinha do Ser Humano e por O Francoatirador me ter parecido redondinho e rechonchudo no final da leitura. Não. Não é por nenhuma destas razões que um livro me parece um monumento e outro me sugere um bibelot.

A sensação que tenho é que Littell escreveu o seu tijolo exactamente da forma que tinha de fazê-lo. Aquilo é uma coisa em se acredita e é aí que reside o sublime desconforto de o ler. Já Pérez-Reverte dá a sensação de estar a escrever a sua renda de casa, o jantar com a família e a viagem de férias. O livro é bem escrito mas falta-lhe qualquer coisinha para descolar a sensação de estarmos a ler uma obrigação editorial.

Seja como for não dou por mal empregue nem um dos minutos que levei a ler um e outro destes livros. Não me interpretes mal, gentil leitor. Tanto me sinto maravilhado quando entro no espaço infinito da Sagrada Família como quando descanso o olhar no bibelot do menino que mija entre um gole e outro e mais um sorriso da minha querida tia, que é muito velhota mas gosta sempre de me ver.


terça-feira, outubro 21, 2014

Falar com as paredes

O mundo está repleto de sinais, o mundo comunica com cada um de nós de uma forma muito particular. A cena é sermos capazes de ler esses sinais e compreender o que o mundo nos quer dizer.

São pequenos sinais, mensagens mais ou menos subtis, normalmente repetições que é a forma mais evidente de nos apercebermos que o mundo está bem e disposto a contar-nos uma anedota.

Quando está zangado o mundo atira-se a nós sem aviso.

Para comunicar com o mundo precisamos apenas de acreditar... e estar atentos.

quarta-feira, outubro 15, 2014

Rei-coisa

Há um mar inteiro dentro da minha cabeça. Um mar onde se afogam as ideias e os desejos tentam aprender a nadar. Cardumes de coisinhas sem nome movem-se daqui para ali fugindo dos raios de luz, essa luz que penetra a fundura. São raios atirados à água, raios como farpas que perdem fulgor à medida que desistem de iluminar este mundo submerso, mundo sombrio, palácio de um rei monstruoso, forma negra, estática, que por mim espera lá no fundo do abismo. Um dia irei conhecê-lo. Por agora sinto-o mas não o vejo. É o rei-coisa, imperador deste mundo inexistente.

segunda-feira, outubro 13, 2014

Vida em diferido

Estou em Almada. Sento-me no café para beber um café. Na TV imagens de uma cidade de Lisboa alagada. Ruas que parecem mais o Tejo que o próprio Tejo. Automóveis submersos na Rua das Pretas, um deles com o condutor de gatas sobre o tejadilho.

Tampas de esgoto que saltaram permitindo fontes violentas de água que jorra alegremente num espectáculo surpreendente. Tudo isto aconteceu em Lisboa. Hoje.

Hoje fui a Lisboa. Para lá fui de barco, fui de metro. Como de costume viajei debaixo das ruas.De metro regressei ao cais, depois o barco. Balanço bom, chuvinha caindo, quase simpática. Nada daquilo que a TV mostra.

Tem acontecido isto. Já aconteceu, pelo menos, uma outra vez. Lisboa alaga-se, deixa-se enganar pelas águas que o céu lhe atira para cima com toda a força, eu vou a Lisboa e não vejo nada disto. Nadinha de nada. Vejo as cheias e as enxurradas na TV, em diferido.

É uma sensação estranha. Como se, para mim, houvesse apenas normalidade mesmo quando passo perto do acontecimento extraordinário. Como se, para mim, a vida fosse uma rotina segurinha, sempre longe das coisas espantosas que acabo por ver, apenas, em diferido, na TV.

sexta-feira, outubro 10, 2014

Socorro!!!

Socorro! Ai Jesus! Valha-nos Deus! Valha-nos Nossa Senhora! Chamem o exército, tragam os cães, fechem as portas e levantem muros. Socorro que vem aí o Ébola!

Começou a campanha de desinformação e exploração do medo. Haverá por aí alguém interessado em explorar a ingenuidade alheia?

A ignorância é importante e há quem trabalhe arduamente no sentido de a manter forte e actuante. Um ignorante está mais desprotegido perante o temido novo flagelo divino.

Quem pretende lucrar com esta nova paranóia colectiva? Ainda não percebi mas decerto irá surgir em breve algum negócio chorudo associado ao novo medo da década.

Cuidado, vem aí o vírus do Ébola!!!

quarta-feira, outubro 08, 2014

Espírito tuga

três destes gajos já voltaram para a sombra mas a maioria mantem-se no poder

Tenho alguma dificuldade em compreender o modo de pensar da maioria dos portugueses que ainda se dignam ir votar quando são chamados a participar em eleições. Ontem ao fim da tarde, quando fui, como é meu hábito, à tasca da esquina beber uma imperial e passar os olhos pelo jornal desportivo tive uma desconcertante conversa com um cliente meu conhecido e a senhora, do outro lado do balcão.

Foi o meu amigo quem puxou o tema de conversa: que o ministro da educação é um incompetente, a senhora sabia que eu sou professor e juntou mais uma ou outra acha para a fogueira que acendi alegremente e com alguma fúria à mistura.

Quem me conhece sabe que fervo em pouca água e que sou capaz de arrancar num discurso inflamado com uma velocidade estonteante, não preciso de ganhar embalagem. Deram-me os meios para fazer um pequeno comício anti-governo e não enjeitei a oportunidade, falando para quem quisesse ouvir.

Toda a gente concordou que estes governantes são péssimos, que o trabalho por eles desenvolvido cheira a vigarice, que a sua preocupação com o povo português soa a conversa fiada. Ainda assim, alguém trouxe a questão da eventual substituição do actual primeiro ministro e restante associação de malfeitores por outra gente. Foi aqui que voltei a deparar com o povo que somos.
Estava esquecido.

Embora todos estivéssemos de acordo quanto à falta de qualidade destes gajos, as dúvidas surgiram: mas, se eles saírem, quem colocamos lá? A vontade de mudar depressa se transformou em receio e conformismo.

A crítica desapareceu tão depressa quanto havia surgido. Confrontada com a responsabilidade de escolher uma alternativa toda a minha companhia preferiu encontrar razões para não mudar nada e manter a merda em que vivemos tal qual ela está. Ah, este bom e velho espírito tuga!

Fiz notar que a porcaria de governo que temos não surgiu por obra e graça do Espírito Santo (ou terá surgido?), que fomos nós, o povo, quem escolheu a malandragem que nos governa; a responsabilidade é nossa.

Tentei argumentar a favor da possibilidade de deitar tudo fora e começar de novo: se isto, assim, não funciona, é tempo de experimentar algo completamente diferente.

Nada a fazer, todos os presentes falaram para dentro, abanaram as cabeças e balbuciaram qualquer coisa acerca de com este governo, ao menos, já sabermos o que nos espera. Inacreditável! Inacreditável? Nããããããooo, qual é a surpresa!? Isto é portugal.

Saímos dali exactamente da mesma forma que havíamos entrado: com o rabo entre as penas e a nossa condição animal pura e intocada.

domingo, setembro 21, 2014

A pele e os sapatos

Em Portugal (não sei se a expressão é válida noutros países lusófonos) quando pretendemos compreender ou explicar sensações ou atitudes de outra pessoa dizemos: "não lhe queria estar na pele" ou "é preciso estar na pele dele"; "estar na pele" é uma expressão muito forte.

Tentamos expressar a dificuldade extrema de compreender o que vai na alma alheia, assumindo que a única forma de podermos ter uma ideia aproximada do que é o outro seria estar-lhe na pele, habitar o seu próprio corpo.

Os ingleses têm uma expressão vagamente equivalente. Trocam a pele pelos sapatos do outro. "To be in someone's shoes" será, para quem fala esta língua, o suficiente para trocar de lugar com outra pessoa. Quererá isto dizer a mesma coisa?

Convenhamos que as expressões idiomáticas são pistas tortuosas mas significativas daquilo que nos vai na alma... e debaixo da pele.

segunda-feira, setembro 15, 2014

Romantismo

Para compreender melhor esta imagem procurar aqui 

Os artistas românticos tinham aquele jeito especial de ligar o estado de espírito dos seus heróis e personagens às condições climatéricas e meteorológicas que os envolviam. Personagem e cenário eram um só, o mundo sob o olhar de forças superiores, o homem joguete das forças cósmicas, ok, ok, a gente sabe.

Hoje é o 1º dia de trabalho mais a sério na escola. Embora ainda não haja aulas está a fazer-se a recepção aos alunos. Lá fora chove como já não me lembrava que pudesse chover. Chove a cântaros, chovem cães e gatos, o céu desaba sobre o espaço de recreio que, ao contrário do que seria de esperar num 1º dia de aulas, está completamente vazio. Ninguém no seu perfeito juízo iria meter a cabecinha de fora com um dilúvio desta magnitude.

Ora, se o mundo responde aos estados de espírito dos heróis (ou o contrário, também serve), então hoje há no universo humano uma tristeza de tal modo insuportável que obriga este mundo a chorar baba e ranho sobre si próprio. Deve haver tantos alunos e professores com o coração  destroçado por voltarem ao espaço escolar que o céu chora como uma Madalena arrependida.

Só pode ser isso! Esta é uma explicação perfeitamente plausível para esta chuvada inesperada.

sexta-feira, setembro 05, 2014

100 cabeças num outro lugar

No último mês dediquei grande parte do meu tempo à execução de 5 pinturas em superficíes quadrangulares de 1 metro de lado. Se tudo correr conforme o previsto irei expor estes trabalhos num bar/oficina de bicicletas que fica em Cacilhas, o Mundofixie. O título da coisa será 5m2; óbvio. A organização do evento tem o selo do Cidadão Exemplar.
Aqui ficam imagens dos trabalhos a apresentar nessa exposição que ainda não tem data marcada.




De cima para baixo: "Escravos do Dever"; "Marilyn"; "Nightmare in Escola Primária Street"; "O Mundo Morreu na Guerra" e "Canção de Embalar".

quarta-feira, agosto 20, 2014

Guerra Mundial?

Síria, Gaza, Iraque, Ucrânia, Líbia, Somália, assim de repente, sem puxar muito pela cabeça, nomeio 6 países em guerra; Próximo Oriente, Europa, África.

Isto deixa-me a pensar: o que é necessário para estarmos perante uma guerra mundial? Que as grandes potências estejam directamente envolvidas nos conflitos? Que haja um ditador desvairado com pornográficos sonhos de conquista?

Talvez seja necessário que exista um conflito generalizado com dois blocos em confronto e não vários conflitos espalhados e com motivações diferenciadas. Talvez seja isso.

No entanto, embora não chamemos Guerra Mundial à carnificina que vai evoluindo em diferentes continentes, temos o Mundo em pé de guerra, lá isso temos!

domingo, agosto 17, 2014

Paradoxo

Já não tenho paciência para a bondade "standard" esse cancro idiota que grassa nas redes sociais. Irritam-me as frases bonitas que, dizendo tudo, soam vazias quando escritas nas "paredes" do Facebook e acabam por não significar nada.

Serei mau carácter, bicho-do-mato, uma merda qualquer; mas tanta bondade empacotada provoca-me vertigens terríveis. O Mundo, desde que é Mundo, está a desfazer-se em caca. Eu preferia acreditar nessa tais frases mas a verdade é que não sou capaz.

Esforço-me por ser bonzinho, sorrio, mostro os dentes amarelados pela nicotina e pela cafeína, sinto o coração fraquejar a cada batida mas a náusea instala-se quando me dizem coisas que soam vazias, plastificadas.

Mas, mas, mas... raio de coisa, esta dúvida, esta ânsia, esta falta de confiança na Humanidade. É que, no fundo da minha alma, estou apaixonado pela Humanidade. Amo-a mais do que a odeio e, no entanto, tenho-lhe um ódio de morte.

domingo, julho 20, 2014

A grande aventura

A questão anda a ser discutida: Portugal tem uma das mais baixas taxas de natalidade do mundo. Que fazer para contrariar este facto embaraçoso?

A Oposição acusa o Governo, o Governo acusa... as cegonhas? As cegonhas não têm voto na matéria e, sem aparentar ligar muito à conversa mediática, o povinho vai fazendo cada vez menos filhos. A população envelhece a olhos vistos.

Prometem-se incentivos fiscais, melhoria nas condições de acesso das criancinhas às creches e jardins de infância, tentam inventar-se modos de entusiasmar as pessoas a ter mais filhos. Mas, será que tudo isto faz algum sentido? Há 50 anos atrás, quando nasci, a população era miserável, as condições de vida da maioria quase animalescas e os portugueses constituíam famílias numerosas que criavam com dificuldades enormes, é certo, mas não deixavam de ter filhos por isso.

Mais do que as condições de vida o que parece influenciar o desejo de alargar a família será o modo como cada um de nós entende o seu lugar particular neste mundo.

Na sociedade actual o individualismo e o desejo de viver uma vida plena de aventura e acontecimentos extraordinários faz hesitar os mais jovens quando se trata de encomendar uma criança aos próprios sonhos. Mais do que problemas económicos, penso eu, a questão é cultural.

Enquanto o mundo for olhado como uma espécie de objecto de consumo colocado à nossa disposição para dele usufruirmos como se fosse uma viagem de férias a um resort na costa mexicana, os filhos serão sempre encarados como empecilhos.

A questão económica é, decerto, importante mas o principal problema é, a meu ver, andarmos apaixonados por nós próprios o que não deixa grande espaço para a possibilidade de nos apaixonarmos por um bebé que nem sequer conhecemos, caraças!

Talvez a solução passe por uma campanha publicitária que venda a ideia de que a paternidade é a maior aventura a que cada um de nós poderá alguma vez aspirar.

sexta-feira, julho 18, 2014

Ser ou não ser (arte)


Avaliar é tarefa complexa. Pretender classificar com um valor numérico o objecto da nossa avaliação é praticamente magia.

Analisamos um texto, forma e conteúdo, comparamos o que vamos compreendendo com uma tabela onde estão definidos os critérios segundo os quais devemos orientar a nossa leitura... ou então observamos atentamente um desenho e aplicamos à nossa alma esse tratamento que consiste em acreditar que podemos seriar de forma justa e sistemática uma quantidade maior ou menor de objectos, artísticos, nos casos acima referidos. Escrita e desenho, artes.

Se olharmos bem para os desenhos na parede e depois para a pauta onde se alinham os valores que lhes atribuímos estamos a ver coisas muito diferentes que se referem ao mesmo objecto. Temos o desenho e uma sua representação abstracta, a nota atribuída. Temos na parede uma natureza-morta (um faisão e duas esferográficas) e na pauta temos 16 (dezasseis). Isto é alquimia!

Poderemos substituir a exposição de vinte desenhos por uma simples pauta afixada na parede? Vinte desenhos com características específicas, muito diferentes uns dos outros, resumidos e retratados assim, de forma sintética, por uma coluna de números e algarismos.

Ou, no lugar de um caderno de contos, uma pauta colada à parede, a prosa e a poesia reduzidas à condição de uns e dois e três e por aí adiante, sem nunca atingir, sequer, o infinito.

Se uma pauta afixada na parede não é arte conceptual então não sei o que possa ser arte conceptual.

segunda-feira, julho 14, 2014

Uma paixão infinita

Um jogo de futebol tem 90 minutos (120 se for num jogo a eliminar). Depois acaba.

Tenho dificuldade em compreender as pessoas que ficam exasperadas quando perdem, principalmente se a frustração não lhes sai do pêlo, no máximo, meia hora após o apito do árbitro que manda terminar o jogo. É para mim impossível compreender aqueles que perdem o apetite, os que batem na mulher e nos filhos ou os que, simplesmente, perdem a vontade de viver quando a equipa dos seus amores é derrotada.

Ok, dependendo da profundidade da paixão de cada um, a coisa poderá prolongar-se por uns minutos, algumas horas... um dia já me parece exagerado mas sei que há malucos para tudo. Dois dias? Já me cheira mal.

Do mesmo modo mas em sentido contrário, gostaria de compreender o que fica realmente dentro do peito dos vencedores, passada a euforia da vitória.

Resumindo: merecerá o futebol, na sua qualidade de fenómeno desportivo-que-o-já-não-é, a atenção mediática doentia que lhe é dedicada? Merecerá o futebol a paixão desmedida que por ele é nutrida por um número estonteante de pessoas espalhadas por todo o mundo?

Nos próximos posts gostaria de ajuda para reflectir sobre as razões que nos fazem cair, tão perdidamente, de amores por um ex-desporto como aquele.

quarta-feira, julho 09, 2014

Da ganância

Um fato, uma gravata e uma cara de pau que até mete medo. Ou então um sorriso fácil e uma simpatia sem fronteiras; estes são tão perigosos como os outros. São os banqueiros, senhores do dinheiro, guardiões dos nossos sonhos, conhecedores dos nossos desejos, eles regulam o mundo.

Os dias passam, a crise permanece. Compreendemos melhor o significado de insignificância e a rapidez da nossa cavalgada pela vida quando percebemos o tempo de recuperação que uma coisa destas necessita. Dizem-nos que a economia levará 20 anos a recuperar, 30 anos a recuperar, tempo demais, na minha humilde mas particular perspectiva. Quando a crise passar e regressarem os tempos do vinho e das rosas, o mais provável é eu já ter batido as botas.

Antes de mim haverão de patinar os mais velhos destes tais banqueiros que, no entanto, agem como se fossem viver eternamente. A sua ganância é lendária, a sua capacidade de amontoar dinheiro e distribuir miséria parece coisa divina. De todos os bichos, o bicho Homem é o que tem maior capacidade para amealhar aquilo de que não tem necessidade.

Sinceramente não compreendo estes seres vivos, estes banqueiros. Não compreendo para que querem mais dinheiro, mais poder, mais miséria. Isto vai muito para lá da minha capacidade de compreensão. Mas as coisas são assim mesmo. Também não compreendo Deus. A única diferença entre os banqueiros e Deus é que os banqueiros existem de facto, sem margem para dúvidas.

segunda-feira, julho 07, 2014

Crescimento

Quando ouço a palavra "califa" a primeira coisa que me vem à cabeça é a imagem de Iznogoud aos pulos, furioso, gritando que quer ser califa no lugar do califa. Quero dizer: "ERA" esta a primeira coisa que me vinha à cabeça, reminiscências da infância e da Banda Desenhada (ainda tenho um ou dois livros de Iznogoud na prateleira).

De há um ou dois dias para cá, quando ouço a palavra "califa" a primeira coisa que me vem à cabeça é a guerra no Iraque e na Síria, a confusão com o Curdistão, a questão turca e os receios do Irão e da Arábia Saudita relativamente ao poder do ISIS e a forma angustiada como os ocidentais olham para tudo isto sem saber nem ter grande coisa para fazer.

Como é que uma coisa tão simples (a imagem de Iznogoud) pode ser substituída por outra tão complicada (aquela baralhação sobre a situação política e militar no Próximo e Médio Oriente)? A resposta é simples: cresci como o caraças!

Como agora sou crescido e tenho uma perspectiva muito mais ampla do mundo que me rodeia consigo compreender as coisas com outra profundidade, não me deixo impressionar com a primeira tolice que me sopra o espírito. Não, agora sou capaz de pensar pela minha cabeça e não me deixo enganar com facilidade.

"Califa" é muito mais do que um bonequito de Banda Desenhada que me fazia rir e proporcionava momentos de puro prazer quando me levava para fora deste planeta. "Califa" agora é Abu Bakr al-Baghdadi o autoproclamado sucessor de Maomé, aquele que vem impor a sharia a todo o mundo, para glória de Alá.

Para quem não tinha compreendido, crescer é sinónimo de complicar.

sexta-feira, julho 04, 2014

Ser feliz

A felicidade é volúvel, tem mais formas que todas as formas deste mundo. Como definir Felicidade? Em que poderemos basear essa definição? O conceito de Felicidade muda conforme cada um de nós, muda com o espaço, com o tempo, com o local, com a ocasião. Um dia estamos felizes por isto, outro dia estamos felizes por aquilo.

A Felicidade sente-se, persegue-se, é sonhada. Procurar a Felicidade é perder-mo-nos num labirinto de estímulos e emoções. Quantas vezes nos perguntamos: o que é a Felicidade? Podemos viver uma vida inteira sem encontrarmos as resposta.

Por isso precisamos de ajuda. Há quem nos indique o caminho a seguir: os líderes, as religiões, as ideologias, os profetas...

No mundo Ocidental e consumista em que vivemos, associamos Felicidade à posse de coisas que, em princípio a proporcionam ou, na mais fraca das hipóteses, a potenciam. Neste mundo a publicidade e a manipulação da informação são processos de orientação dos cidadãos/consumidores nos caminhos que conduzem à Felicidade.

E nós ouvimos, acreditamos e vamos.

quinta-feira, junho 26, 2014

o grande ecrã

Pronto, lá se foi a selecção portuguesa, malas aviadas, fora do Campeonato do Mundo. A nossa equipa deixou uma imagem estranha: jogadores cheios de estilo (penteados, barbas, tatuagens, roupas e sei lá que mais) mas a cair como tordos. Perdi a conta aos jogadores lesionados ao longo destes 3 jogos.

Mas que raio!? Porque caíam os nossos jogadores e os outros não? Não foi do calor, não foi o temido dengue, tiveram todas as mordomias, porque saíram tantos dos nossos agarrados às penas, a chorar, como bons portugueses?

Mas já me estou a desviar daquilo que queria dizer, o assunto que queria referir: o grande ecrã!

Decerto reparaste, futebolista leitor, nos olhares vagos que todos, jogadores e treinadores (nos árbitros não reparamos que não são assim tão focados pelas câmaras de filmar) vão lançando para o alto no decorrer das partidas. Eles olham para cima, não para Deus mas para si próprios. E o mais interessado na imagem que exporta (se não O mais, pela certa um dos mais) é o nosso craque, o maior do mundo: Cristiano Ronaldo.

Adoro aquele jogador enquanto atleta. Não nutro por ele grande simpatia enquanto pessoa, embora possa compreender que para vingar ao nível que ele atinge num mundo tão merdoso como o mundo do futebol seja necessário um ego do tamanho de um continente. O de Ronaldo é, deveras, enorme.

Nota tu, amigo meu, que em 3 jogos o considerado melhor jogador do mundo apresentou 3 cortes de cabelo/penteados diferentes. Olhou-se, mirou-se e remirou-se, sobrancelhas arranjadinhas, milhões de teenagers a suspirar pelo seu corpo de estátua... bom, nem as estátuas gregas são tão perfeitas como Ronaldo (o Cristiano, não o Fenómeno). E marcou apenas um golo.

O rapaz não tem tempo para pensar em futebol enquanto evolui no relvado ou, pelo menos, tem de distribuir a sua atenção entre a bola, as chuteiras dos adversários, a baliza e o tal grande e famigerado ecrã.

Decerto não terá sido isso a única razão da nossa triste passagem pelo Brasil. Mas lá que as nossas vedetas parecem personagens de telenovela venezuelana... por favor, retirem aquela coisa dos estádios. Serve apenas para distrair toda a gente do essencial.

quarta-feira, junho 25, 2014

Manifesto escondido?

O caso tem todos os contornos de uma coisa infinitamente estúpida. Quem terá decidido que a obra "Portugal Enforcado", um trabalho escolar da autoria de um tal Élsio Menau, era merecedora de censura por parte do estado? Fazendo uma pesquisa breve na Net compreendemos tratar-se de um trabalho inofensivo e pueril.

O que me surpreende mais até é a nota de 18 valores com que o objecto acabou por ser avaliado. Eu sei que nessa avaliação está também considerada a dimensão conceptual da proposta plástica mas, tendo em conta a redundância da coisa, é precisamente por isso que me parece uma avaliação exagerada. Decerto os avaliadores estão lixados com a forma como o governo tem apertado o nó na garganta de cada um de nós, aqui representados por uma bandeira de algum modo colocada numa forca.

Decerto que não foi a discordância com a nota atribuída que levou um cidadão deste país a acusar de desrespeito ao símbolo nacional o "Portugal Enforcado" e, por arrasto, o seu autor. A motivação pidesca e rasteira de tal denúncia diz tudo o que haja a dizer sobre o seu autor.

Há, no entanto, uma possibilidade que ainda não foi considerada: e se o denunciante for um artista plástico (assumido ou que ainda não tenha compreendido a sua vocação artística) e a denúncia for a sua obra? E se este caricato caso de justiça não for mais do que um manifesto artístico escondido que reflecte sobre a vacuidade da justiça em Portugal? Se o artista pretender insinuar que os tribunais são uma das traves que sustentam a forca em que Portugal vai dependurado?

A Arte Conceptual leva-nos para territórios verdadeiramente selvagens.

quinta-feira, junho 19, 2014

Curva cega

Há sensações que brotam do nosso corpo, que rebentam, que vêm, que se revelam através das mais variadas manifestações. Saem disparadas como gritos, poemas, borbulhas, erupções cutâneas, desenhos, canções, palavras doces, palavras tôlas, azedas e nem por isso. Palavras redondas ou cortantes como lâminas que reverberam na escuridão, produzindo uma lúgubre canção de embalar.

Falamos, gritamos, cantamos desalmadamente; tentamos explicar este aperto, esta secura, a tontura, a falta de ar, o súbito calor que de tão forte desorienta e provoca vertigem, logo um frio de rachar vem ocupar o seu lugar. Rilhamos os dentes e desejamos fazer mal, infligir dor. Estamos desorientados, perdidos nos nossos próprios sentimentos que já não nos pertencem, que agora são esta ansiedade, esta coisa que se mexe e nos aperta o peito do lado de dentro, este bicho que nos quer consumir à força de lambidelas.

Ok, ok, chega. Mas que raio de coisa estou para aqui a tentar escrever?

A verdade é que isto não significa nada, é escrita vazia, curva apertada e cega que não sei para onde vai nem quer ir para lado nenhum. A verdade, verdadinha, é que estou a ficar impaciente pois a minha filha regressa amanhã após seis meses em Bratislava onde esteve no âmbito do programa Erasmus. Neste estado não escrevo, não desenho, pouco penso... mas aquela cena do aperto no peito ali mais atrás, olha, se calhar até nem é totalmente vazia de sentido.

quarta-feira, junho 18, 2014

Da Razão e do Vazio

Disse para aí um poeta, se não erro, que "há razões que a Razão desconhece". Concordo perfeita e absolutamente. Pobre Razão! Ela não compreende a maior parte das coisas, como poderia?

A própria palavra "razão" soa estranha. Assim isolada parece-me referir a trajectória de algo que passa muitíssimo perto de outra coisa, algo que passa tão a rasar, tão a rasar, que faz um razão!!! Ora, como pode algo assim atingir o âmago da questão?

Não, a razão não me parece resposta que se procure como se dela dependesse o entendimento do mundo ou a compreensão da lonjura das fronteiras que confinam a alma humana. A razão, quando muito, poderá proporcionar agradáveis discussões na tasca, sempre que discutimos Filosofia com um belo copo à frente do nariz; copo que vem e vai, despejado e logo recarregado daquilo que nele faz falta quando vazio fica.

Mas, se me esquivo a aceitar a Razão, o que resta?

Se formulaste esta questão mereces resposta, aveludado leitor. O que resta, queres tu saber? Pois, na minha estrábica perspectiva, parece-me que não resta nada mas apenas o Vazio (que não tenho a certeza que seja alguma coisa).

E quem quer viver no Vazio? Impacientas-te tu com uma certa dose de... razão.

Pois olha, amigo meu, isso não te posso responder porque, tal como o outro, "só sei que nada sei" embora, cá no fundo, que sou pessoa um tanto convencida e vaidosa, não acredite em tanta ignorância nem esteja tão convicto das qualidades extraordinárias do Vazio e nem dos defeitos impraticáveis da Razão.

Já ia fechar a loja quando encontrei isto algures aí pelo espaço virtual. Pareceu-me a propósito embora não subscreva.


terça-feira, junho 10, 2014

Selvajaria

Terá o primeiro ser humano pressentido a felicidade? Tê-la-á sentido, de facto, em alguma ocasião? Talvez essa sensação, esse pressentimento, essa coisa instalada no peito, talvez tenha servido de motivação para que os nossos antepassados mais remotos tenham começado esta infindável luta pela sobrevivência da espécie.

Talvez a felicidade seja a principal razão pela qual todos os animais se esforçam por sobreviver. Talvez devêssemos chamar instinto à felicidade; e não sentimento, ou lá o que chamamos a isso. E os animais que mais lutam, os que mais se esforçam no desespero de prevalecer, os reis da selva, talvez sejam os que mais sentem (ou pressentem) a felicidade na sua forma mais pura, quase, quase, a felicidade tal como ela é.

Talvez lhes venha daí a agressividade extraordinária, a capacidade de trucidar e matar, despedaçar os outros animais, seja à dentada, seja à força de patadas violentas. Talvez o desejo de felicidade nos transforme em feras.


Entre nós, seres humanos, felicidade e amor parecem vir amiúde emparelhados, uma coisa a permitir a existência da outra e vice-versa. Talvez a violência seja o resultado de uma certa necessidade de amor. Talvez o amor seja a sublimação da mais absoluta selvajaria.

quarta-feira, junho 04, 2014

O Mundo muda bué

Muito barafustamos nós com os chineses por eles não serem como nós dizemos que somos nem respeitarem os princípios que nós imaginamos respeitar.

Que não há Democracia na China, que não há Direitos Humanos. Ora bolas... os chineses que se lixem? Isso é que era doce!!!

A Democracia e os Direitos Humanos são invenções nossas, coisas surgidas no Ocidente, criaturas da nossa civilização, porque carga de água haveriam de dizer o que quer que fosse aos habitantes do Império do Meio?

Pois é mas... segundo rezam recentes previsões de encartados bruxos, o Produto Interno Bruto da China será maior que o dos Estados Unidos já em 2016, faltam dois anitos! A China será a maior economia do mundo em 2021, a sua moeda substituirá o dólar como reserva mundial em 2027 e, trema-se de pavor, será a potência militar mais poderosa do universo em 2030. Com alguma sorte ainda por cá andarei para assistir a algumas destas mudanças, com algum azar ainda por cá andarei para assistir a todas elas.

Quererá tudo isto dizer que, muito em breve, o mundo começará a estudar as línguas faladas na China para, dentro de um ou dois séculos, esquecer o inglês? Irão os Direitos Humanos tornar-se ainda mais deslocados e desprezados quando nós, os orgulhosos e petulantes ocidentais nos voltarmos de mão estendida para a imensa China?

Eu sei que o Mundo muda bué, que não há Valores Universais, que os Valores (com "V" maiúsculo) são muito parciais mas, caramba, isso não me ajuda a aceitar os valores de outros povos e de outras civilizações assim, de monco caído.

Irá o Ocidente praticar a secular arte de engolir sapos vivos?

segunda-feira, junho 02, 2014

Cauda de lagartixa

A nossa necessidade de atenção e compreensão é uma coisa de dimensão cósmica.

Ao terminar a frase registada acima reparei como poderia ter escrito "cómica" no lugar de "cósmica" e o discurso seguiria por caminhos bem distintos... ou não?

Bom, este é um bom exemplo daquilo que os meus professores classificavam como um "espírito disperso". A facilidade com que mudo de direcção deveria preocupar-me caso fosse um profissional de ciência exacta. A verdade é que, na maior parte das actividades que desenvolvo, este pensamento errático serve bem enquanto ferramenta de trabalho.

Repare, caríssimo leitor, como estou já longe da ideia inicial. É isso um problema? Diga-me você.

Voltando atrás: necessidade cósmica? Sim, isto porque imaginamos um Deus omnipresente e omnipotente que, no entanto, hesita nos sinais que envia para nos ir informando dos seus objectivos, orientações e reprovações. Na verdade, quem acredita em Deus, vive para tentar compreendê-Lo e, desse modo, justificar os próprios actos. Não há Livre Arbítrio para esta facção da Humanidade.

Ora, para um gajo como eu, cuja capacidade de concentração é como um pássaro que se esqueceu do lugar onde fez o ninho, Deus é uma presença ocasional; posso estar a tentar contactar com Ele através da oração e, por exemplo, distrair-me com o "agora e na hora da nossa morte", do Pai Nosso. Sim, a frase poderá sugerir que, quando eu morrer e os restantes pecadores baterem a bota, Ele morre também.

Ok, estou a forçar a coisa para poder continuar a derivar e a contorcer o discurso, justificando o título deste post provando a minha capacidade de perder o fio sem perder a meada e vice-versa. Isto serve-me às mil maravilhas para dar uma aula ou fazer um desenho (nunca, ou muito raramente, faço um esboço) mas, imagine o leitor, as dificuldades que se colocam quando tenho de cumprir os deveres burocráticos que infernizam a existência dos professores mais capazes de organizar o pensamento.

Voltando atrás: dimensão cómica? Sim, quando era criança achava tanta graça às contorções de uma cauda de lagartixa que estropiava alegremente os animaizinhos. Sabia bem que o irrequieto apêndice haveria de crescer outra vez, milagre de regeneração de tecidos. Tal como as ideias, tal como os pensamentos...

terça-feira, maio 27, 2014

Não ter medo

Eles chegaram. Os fascistas regressaram em força à ribalta da política europeia. Parece impossível mas é verdade.

Como podemos nós, europeus, ressuscitar o mais terrível monstro da nossa História comum e trazê-lo desta forma para dentro de casa? O que faz com que, num país como a França, os eleitores votem maioritariamente num partido assumidamente nazi?

Muitas vezes tenho aqui expressado o meu descontentamento com "o estado a que isto chegou" mas era incapaz de imaginar uma coisa tão abjecta.

Muitas vezes penso: será que um nazi olha para mim, por ser de esquerda, com um asco equivalente ao que sinto por ele? Imagino que o sentimento dele seja mais forte do que o meu.

Esse é o problema com esta gente; desenvolvem uma incrível capacidade para odiar aquilo que receiam ao ponto de se animalizarem. Com os nazis não há discussão nem debate: há porrada! Estaremos nós a caminhar para uma Europa onde grandes as decisões se vão decidir segundo o método nazi?

Não há que ter medo, há que estar preparado.

sexta-feira, maio 23, 2014

Vislumbre

Hoje de manhã, ao ouvir o locutor a debitar notícias na rádio, tive uma visão muito sombria. Não pelo conteúdo das notícias, nem sequer me lembro do que o gajo dizia, a sombra toldou-me o espírito quando me concentrei no tom com que o locutor debitava as palavras.

A voz era morna e bem torneada, como são sempre as vozes dos locutores, mas a forma como dizia as coisas que tinha para dizer era de uma inexpressão, de uma frieza distanciada, que me fez recordar os tempos em que, miúdo, ouvia certos colegas a ler nas aulas de Português. Sabiam ler, é certo, mas davam a sensação de não compreender nem um bocadinho o conteúdo das suas leituras. A máquina funcionava mas produzia ruído e pouco mais.

Assim fiquei; estático por momentos, sem dar atenção ao texto, focado exclusivamente no tom. Tive um vislumbre daquilo que (compreendo agora) se está a transformar a nossa sociedade Ocidental: uma coisa vazia e ôca, travestida, uma falsidade que se afirma genuína constantemente, uma beleza horrível de tão perversa (que a beleza pode ser horrível sem ferir mais do que a susceptibilidade de alguns ou apenas da maioria).

Saí do carro como um zombie. Subi a rua sem me aperceber dos passos que dei, levava a cabeça perdida no tal sítio, a cabeça perdida num lugar que é apenas uma visão.

Quando dei por mim estava encostado ao balcão da pastelaria a beber um café. Fui trazido de regresso à realidade pela voz de flauta esganiçada de uma senhora que costuma tomar o pequeno-almoço naquele lugar e fala sempre como se estivesse a discursar sem microfone num comício. Que senhora tão irritante.