sábado, dezembro 30, 2023

Votos de Ano Novo

     Passeando por este blogue leio uns quantos textos escritos por estes dias, os dias do fim. Do fim do ano. É curioso verificar a variedade de tons com que foram escritos se bem que, sendo os dias do fim (do fim do ano) o tema principal, talvez fosse previsível que dissesse sempre mais ou menos a mesma coisa. Não é isso que acontece.

    Reflectir sobre o Ano Novo tanto pode acontecer nos últimos dias de Dezembro como nos primeiros dias de Janeiro. Por alguma razão não me lembro de o ter feito em qualquer outro mês dos doze que compõem um ano inteiro. É uma reflexão algo nostálgica, um pouco esperançosa. Tem a ver com aquilo que passou ou com a expectativa sobre aquilo que virá a passar; o passado e o futuro (poupo nas maiúsculas) enfiocados um no outro, como numa ilustração do Kama Sutra.

    Nunca me correram muito bem as profecias (e se gosto de as fazer!) embora me aperceba frequentemente de coincidências bizarras que poderia interpretar de uma forma de certo modo apocalíptica. Talvez por isso seja mais pessoa de aguardar do que de correr em direcção a algum desejo incontrolável.

    Assim sendo, aguardemos pelo que nos traz 2024. Com toda a serenidade possível.

sexta-feira, dezembro 29, 2023

Anjinhos

  Embrulhadas, mortas, como rebuçados amargos, são carregadas como se de penas fossem feitas; não doesse tudo isto, não doesse como doem pregos espetados nos olhos, pregos espetados nos ouvidos e nos pés, dir-se-ia que o embrulho transportava asas de anjo; os anjos não têm asas; asas têm os pássaros e os caças e os bombardeiros e os mísseis têm pequenas asinhas que lhes estabilizam o vôo trazendo a morte com a exactidão possível; no embrulho são transportados danos colaterais, já sem sonhos, já sem vida, já sem dor; os embrulhos trazem dentro pequenos corpos que nunca chegaram a imaginar o futuro. Nos embrulhos vão anjinhos.

sábado, dezembro 23, 2023

Não Natal

     Talvez seja esta a ocasião perfeita para desejar Bom Natal e dizer coisas fofinhas, como é de bom tom dizerem-se nesta quadra natalícia. Se não for agora quando poderei fazê-lo? Há a opção de não o fazer, de todo. Afigura-se-me uma bela opção.

    No meio da tormenta que é a existência da humanidade de um modo geral e da vida de cada sociedade, de um modo particular, torna-se, no mínimo, pouco correcto o discurso natalício. Soa mesmo a hipocrisia. Além do mais, a maioria dos seres humanos não faz a mínima ideia de quem seja o Menino Jesus ou, se faz, estará indiferente à personagem.

    Resumindo: a agitação que por estes dias nos faz correr mais do que o habitual e nos leva a amontoar nas filas dos supermercados é uma coisa muito nossa embora tenhamos a sensação de que todo o mundo sente o Natal. Não sente. E nós, sentimo-lo verdadeiramente?

sexta-feira, dezembro 22, 2023

Guito

     O dinheiro, vil metal, o guito! Vive-se sossegado enquanto a coisa é apenas horizonte e estrelinhas brilhando no imenso firmamento. Entra uma moedinha na ranhura que faz cantar o bonequito deslavado e logo a máquina começa a funcionar. A música até pode ser roufenha, os movimentos mecânicos e desconexos, mas é coisa paga, logo é coisa séria, coisa que vale a pena.

    O dinheiro, o guito, tem aquela estranha capacidade de nos fazer sorrir ao contrário. Endurece-nos o coração, faz de nós gente esperta. Até ali estávamos absolutamente descansados. Agora não. Agora há guito lá ao fundo, atrapalhando a linha do horizonte que deixa de ser recta.

    Ah, o guito, o guito.

terça-feira, dezembro 19, 2023

Noite

     Porque raio, porque carga d'água, por que displicente tempestade haverias de deixar cair os teus queixos a seus pés! Princesa nocturna. A chuva fazia cócegas no dorso da montanha, navalhas geladas enchiam-te as mãos com vontade de morrer. E matar. Sonho nenhum poderia resgatar-te, nada neste mundo seria capaz de aplacar o fogo que te consumia o pássaro fechado na gaiola. No teu peito. Esta vida não é nada. O amor não vale tudo. Terrível princesa, noite tenebrosa.

quinta-feira, dezembro 14, 2023

Coisas boas

    As coisas boas ficam sempre no futuro que o presente é vivido com alguma dor e um pouco de amargura. "Amanhã é que vai ser!" pensavas tu antes de te roubarem o que é teu. Agora, amanhã já não vai ser, amanhã já foi, amanhã irá sempre fugir-te um dia à frente daquele que tu vives. Eu fui ver o Futuro e já lá não estamos.
 

quarta-feira, dezembro 13, 2023

Gente do meu bairro

     Ficam coisas velhas, com paus espetados para dentro e panças rotundas que lhes balançam sobre as pernas finas. Fomes antigas permanecem, fomes que não morrem, pequenos mundos, minúsculos pensamentos. Imaginam ser homens. E têm desejos confusos, desejos como coisas vivas, desejos viscosos que serpenteiam entre os prédios, que deslizam pelas ruas e acabam, cansados, deitados na noite escura.


segunda-feira, dezembro 11, 2023

Desenhar

     Admito que a distinção entre passado, presente e futuro seja ilusória, como afirmou Einstein. Tudo bem, regemos a nossa vida em função de uma ilusão. Isso faz da nossa existência algo que se enquadra na categoria do maravilhoso.

    Acreditar no tempo como algo contínuo, algo que se perde e não repete, que se alcança e se espera, é como acreditar em Deus. O que nos leva ao lugar de Cronos, que sempre lá esteve, está e estará, provavelmente com Einstein sentado ao seu lado.

    Admiro o esforços dos cientistas (ah, os físicos!) na sua tentativa de encontrar modelos capazes de nos oferecer um vislumbre que seja dos mecanismos que regem o Universo. Talvez a inteligência artificial venha a permitir que se perceba alguma coisinha mais. Ou então não. 

    Fascinam-me as tentativas dos poetas de encontrar uma ordem na disposição de palavas capaz de nos oferecer uma emoção suficientemente forte para gerar em nós a sensação de existência.

    Pessoalmente, faço desenhos.

domingo, dezembro 10, 2023

Expedições maravilhosas

     Procuro coisas belas nas páginas de livros que releio. Encontro o que procuro embora não fosse capaz de antecipar o que encontro. Não tenho memória para lá dos títulos. As páginas que folheio são como selvas, como desertos, são como montanhas cujos picos escondidos pareciam inacessíveis antes de escalá-los. As maravilhas encontradas lá estavam, lá continuam enquanto o tempo não desfizer aquelas páginas.

sexta-feira, dezembro 08, 2023

2 comentários

  1 - a propósito da crónica de Ana Cristina Leonardo no Ípsilon (suplemento do Público) do dia de hoje com o título "Isto não vai acabar bem".


    Lá no fundo, tudo na vida se reduz à transmutação. Transmutamos qualidades humanas em palavras ou conhecimento em números, Tudo tem uma equivalência qualquer que pode ou não depender de uma verdade específica. Este mundo é uma confusão, repleto de narrativas mais ou menos globais, verdades mais ou menos pessoais, ideias e ideais, tudo disparado de todos os lados e nós, cada um de nós, constantemente apanhados neste fogo cruzado, tentamos perceber se a realidade existe. Ou se poderá ser, também ela, transmutada. Isto não vai acabar bem

https://www.publico.pt/2023/12/08/culturaipsilon/cronica/nao-vai-acabar-bem-2072541

    2 - a propósito da crónica de António Guerreiro no Ípsilon (suplemento do Público) do dia de hoje com o título "Infelizmente «radical»".   

 
    A propósito do Livro de Recitações de hoje, uma palavra: alquimia! Ou talvez outra: magia! Ou ainda... como expressar numa palavra a capacidade de espremer dados recolhidos com a finalidade de proceder à avaliação de algo, espremê-los bem espremidos de modo a que deles brote um número? O mundo contemplado do alto de uma folha de excel é um mundo muito mais ordenado. Retire-se-lhe o mistério e a poesia, só os números poderão salvar-nos.

https://www.publico.pt/2023/12/08/culturaipsilon/cronica/infelizmente-radical-2072638

     Bom feriado (Hoje é feriado porquê? Tem qualquer coisa a ver com a Virgem...?)


quinta-feira, dezembro 07, 2023

Eternidade

     A Eternidade parece-me um período de tempo cada vez mais escasso. Quando tento pensar em Eternidade projecto no futuro a minha pequena capacidade de a imaginar. Não sei como é contigo mas, na minha cabeça, a Eternidade existe para a frente, o que ficou para trás parece já não lhe pertencer.

    "Para a Eternidade", dizemos. A Eternidade que se amanhe e arranje tempo e espaço para tudo o que a Humanidade lhe oferece. Não lhe cobiço a tarefa, oferecemos-lhe muita porcaria misturada com coisas boas. 

    Tento imaginar uma figura alegórica para a Eternidade. Decerto será uma mulher a representá-la do mesmo modo que mulheres representam a Liberdade, a Justiça, a Esperança e por aí fora. Decerto que uma busca no deus-google me mostrará exemplos numerosos. Mas não me apetece fazê-lo. Se tiver que ser imaginarei uma Eternidade muito minha, só minha.

    Por falar em Eternidade, noto que a minha "play-list" começa a parecer-se seriamente com um cemitério.

segunda-feira, dezembro 04, 2023

Garrafas nas ondas

     Com o Tempo a passar-me por cima da cabeça (de mãos dadas com as nuvens) olho o horizonte. Uma linha perfeitamente recta separa o céu do mar que lhe reflecte a cor, fazendo com que a translucidez solidifique, cinzenta. Não há barcos nem navios nem baleias nem golfinhos. Apenas aquela imensidão abruptamente interrompida pelo limite do que a vista alcança.

    Deixo vogar as ideias, garrafas atiradas às ondas com secretas mensagens de amor, de desespero, mensagens que são sonhos, outras pesadelos. Ali fico a vê-las que se afastam levadas pela força do mar. Imagino-as a vogar mar alto adentro, perdidas, para os confins do mundo. Irão elas juntar-se ao Sétimo Continente?

    Assim é. Sentado na areia húmida imagino-me diferente do que sou mas não consigo retirar esse outro eu deste mundo sujo. Olho distraído as ondas que desenham rendas de frol a dois metros dos meus pés. É o mundo a hipnotizar o que aqui está sentado na esperança de libertar o outro que nem ele nem eu sabemos se existe realmente.

    É claro que não! É claro que sim! É evidente, talvez.

sexta-feira, dezembro 01, 2023

Simulacro

     O pato tinha muita personalidade. A bengala ajudava a compor o figurino e, quando passou por mim, tirou o chapéu educadamente desejando-me: "Tarde:" Falou baixinho, naquela voz de cornetim, e lá passou. "Tarde." - sussurrei eu. Não sei para o pato se para mim, sussurrei.

    Mais adiante pairava o que me pareceu ser um dos fantasmas de Buzzati. Resolvi passar de largo. Não que tivesse medo da coisa, apenas um certo respeito desconfortável. Como se levasse na alma botas apertadas. Lá segui. O vento sibilava um certo friasco aos meus ouvidos. Continuei deslizante.

    Este mundo é bem melhor que o outro. Bichos vestidos, fantasmas sólidos, humanidade ausente e eu por cá, a passear-me. Não fosse a chuvinha persistente, o ventinho desagradável e uma cadela velhinha que agora habita no andar de cima, diria que isto aqui é o Paraíso. 

    Mas não é.