quarta-feira, julho 02, 2025

O mundo nunca foi o que era

     Acontece de cada vez que dou por terminado um desenho. É uma sucessão de ideias e sentimentos que desfila perante mim, como um comboio a partir do cais de embarque, a dirigir-se lentamente para fora da estação. Não sei se lhe acene se corra atrás dele na tentativa de saltar lá para dentro.

    Já o disse e repeti várias vezes em alguns dos dois mil seiscentos e tal posts deste blogue: um desenho, uma pintura, uma obra de arte, nunca estão verdadeiramente concluídos, são deixados em estado de suspensão pelo autor no momento em que este considera ter-se empenhado suficientemente no trabalho de dar forma ao objecto.

    Sei que isto é verdade inquestionável mas sei também que custa um bocadinho deixar a coisa entregue a si própria e a quem a possa ver a partir daqui, a partir do tempo em que passa a ser objecto de exposição e não objecto de criação.

    Tenho tantos desenhos que nunca foram vistos por ninguém, além de mim. Tantos desenhos (centenas, pelo menos) que têm um tempo de exposição exclusivamente virtual, vistos apenas através de ecrãs. E depois?

    Ainda esta manhã estive a pensar sobre a razão que me leva a desenhar e qual a utilidade dos desenhos que vou fazendo. Não obtive nem sombra de resposta. Entretanto concluí um desenho a que dei o título de Floresta Desencantada (o mundo nunca foi o que era).

terça-feira, julho 01, 2025

O monstro regressa

     Assistimos incrédulos ao ressuscitar do fundamentalismo cristão. É de sublinhar o papel arrasador desempenhado pelo cristianismo na destruição da sabedoria e do conhecimento logo que foi alcandorado aos lugares de governação no antigo Império Romano. 

    A História costuma sublinhar o papel dos mártires cristãos e obliterar em absoluto todos os que foram  martirizados em nome do Livro único e do cristianismo. Ainda hoje sentimos um tremor beatífico nos meios de comunicação ocidentais quando, lá para os orientes, uma igreja cristã é alvo de violência mas sobre a perseguição a filósofos e destruição de bibliotecas no passado longínquo e os ataques e ameaças a bibliotecas públicas na actualidade... népias ou quase nada.

    O cristianismo, na sua génese, foi uma onda de obscurantismo fundamentalista que varreu a Europa, o Próximo Oriente e o Norte de África, levando na enxurrada séculos de Saber e Conhecimento. Tudo em nome de Deus, da Salvação e da verdadeira Fé.

    O monstro pretende renascer, já começamos a ver-lhe um dedinho de fora. 

segunda-feira, junho 30, 2025

Impotência

     Repugnância. Sinto repugnância.

     Repugna-me  a falta de honestidade intelectual do mesmo modo modo que me repugna um monte de merda com moscas a esvoaçar em volta.

     Repugnam-me os sonsos que usam dois pesos e duas medidas fingindo  que é tudo a mesma coisa ou que não reparam ou que é assim a vida.

     Repugna-me  o uso imoderado da força. Mais me repugna quando é usada sobre os fracos ou sobre quem não tem a mínima possibilidade de se defender.

    Repugna-me a exibição da estupidez mascarada de grandeza. Repugna-me.

    Repugna-me o genocídio na mesma medida em que me repugna a falta de coragem para o condenar. 

    O que fazer com toda esta repugnância se mais logo irei jantar comodamente, se o meu maior problema são as elevadas temperaturas que tento combater com a ajuda de minha fiel ventoinha? O que fazer com toda esta repugnância, meu Deus, o que fazer?

    Talvez não dê para fazer nada ou, pelo menos, disso tenho a certeza, não dê para fazer grande coisa.  

sábado, junho 21, 2025

2 comentários (a artigos no Público online)

    Com o sofrimento dos outros posso eu bem. A globalização foi criada para facilitar as trocas comerciais e não para aplanar o mundo em termos culturais e políticos. A esperança é que os interesses monetários arrefeçam a vontade de matar, violar e saquear, instintos muito humanos, como sabemos. Aqueles que têm o azar de nascer em países que se alimentam da carne e da alma dos cidadãos que se amanhem. A vida é como Deus a concebeu e quem ganha são sempre os mesmos, como na quinta de Orwell. 

    Deus, pátria, autoridade. O deus é Jeová recauchutado como Jesus Cristo; a pátria é uma mistificação beatífica de uma chusma de heróis sanguinários (o mundo não é um mar de rosas) que se foram safando à força da bordoada que é como se traçam as fronteiras que definem as nações; a autoridade é a perspectiva fascista da coisa: ódio, violência e repressão de tudo o que não vai conforme os ditames do chefe. Quem não vê isto é porque está a dormir e precisa de ser acordado. 

sexta-feira, junho 20, 2025

Comunicação

     Há poucos livros de Stanislaw Lem editados em Portugal. Sendo que um deles é um dos livros da minha vida: Solaris. Já devo ter escrito alguma coisa sobre essa obra-prima (a opinião está longe de ser minha) algures por aí, no 100 Cabeças. Escrever este post foi um impulso que senti após ter terminado a leitura do 2º conto de "A máscara e outros contos", editado em Maio deste ano pela Antígona. O título desse conto é "O rato do labirinto" e foi escrito em 1956.

    E senti o impulso de escrever estas frases por ter encontrado aqui uma situação narrativa que me fascinou em Solaris; as personagens vêem-se confrontadas com o surgimento inexplicável de duplos. Não vou estar para aqui a perorar sobre o alcance filosófico da coisa. Surgiu-me a ideia de que este "rato" possa ser a semente de Solaris. A ideia de que estabelecer contacto com algo que nos é absolutamente estranho possa gerar situações delirantes parece-me absolutamente lógica.

    Não sei se alguém, em algum laboratório bafiento, algures nas caves de um departamento científico esquecido nas estepes russas, tenta estabelecer contacto com um grupo de amibas. Partindo do princípio que tal experiência está a acontecer, sonho. 

sábado, junho 14, 2025

Exactamente aqui

     Este mundo deprime-me talvez até mais do que a perspectiva de vir um dia (mais cedo que tarde) a mudar a minha morada estabelecendo-me no outro. No outro mundo. Não, não estou a falar do continente chamado "amaricano", estou mesmo a falar do dito Além, para lá do Estige, não sei se estás a visualizar. Pronto, ok, simplificando: o mundo dos mortos... "I see dead people", esse tipo de coisas. Dizia que este mundo me deprime talvez mesmo mais que essoutro. 

    Não tendo cão sinto-me desabilitado a parafrasear aquele gajo (não me lembro bem a quem me refiro) que elogiava o canito ao mesmo tempo que cagava um pouco nos Homens, assim, com "H" grande querendo referir-se à Humanidade. Isto de tomar a Humanidade pelos Homens é uma cena bué machista ou patriarcal ou o caralho (nestas circunstâncias não fica mal abusar da virilidade lexical) e deixa o universo feminino à beira da contracção. E com razões para barafustar, sejamos justos.

    Enfim, perco-me, como é meu hábito, e tenho de meter travões, parar, reler e perceber onde pretendia chegar quando comecei a escrever este texto. Reflicto um pouco e concluo que pretendia chegar aqui. Exactamente aqui. 

quarta-feira, junho 04, 2025

Desengano

     Já não tenho a mínima dúvida, estamos a regredir a olhos vistos. Regredimos individual e colectivamente. Vejo muitos jovens penteadinhos, dos que raspam o trombil com lâminas de barbear para puxar a penugem, que começam a assemelhar-se a chimpanzés - regredimos.

    Fala-se em ideologias de extrema-direita mas duvido que o vocábulo seja adequado para descrever o amontoado de incongruências patéticas que por aí vão brotando, verdadeiras ervas-daninhas. Aquilo não são sistemas de ideias, aquilo não podem ser considerados valores, aquilo não orienta uma maneira de estar, antes pelo contrário, aquilo desorienta o mais pintado. 

    Quando o ódio é a nossa razão de existir, quando o que nos move é estar contra: contra o outro, contra o mundo, contra o bem e contra o mal, quando não somos capazes de encontrar dentro de nós uma semente de esperança, um vislumbre de felicidade por muito distante que seja, quando somos negativos do nascer ao pôr do sol, quando não somos capazes de ser a favor de nada, incapazes de imaginar construir, quando temos prazer na proibição, no encarceramento, no sofrimento alheio, então temos o caldo entornado.

    Muitas vezes pensei que a qualidade de uma sociedade se mede pela forma como trata as minorias. Esta sociedade é uma desilusão infinita.

    Muitas vezes pensei que a Humanidade vive em constante evolução; afinal somos amibas que se transformaram em macacos que aprenderam a falar. Também aqui me enganei redondamente. Não fui capaz de perceber o que muitos antes de mim escreveram e pensaram e voltaram a escrever. Estamos convencidos de que somos superiores aos nossos antepassados só porque temos telemóveis e computadores quânticos. Que tolice, pobres imbecis.

    Inventámos Deus na esperança de conseguirmos um modelo ideal que orientasse a nossa caminhada futuro adentro. O resultado? É a merda que se vê.