sexta-feira, novembro 27, 2020

Reunidos


As reuniões online são espaços de comunicação estranhos. Os intervenientes estão todos encaixados em pequenos rectângulos, alinhados como produtos de consumo nas prateleiras de supermercado. Falamos. Um de cada vez. Olhos baixos, olhos em riste, cada um parece navegar nos seus pensamentos. Estamos todos no écrã mas cada um no seu espaço particular. Somos cabeças, troncos, talking heads, tanto quanto posso imaginar alguns poderão nem ter pernas, nem ser pessoas.

O tempo alonga-se. Será consequência deste espaço virtual? Teremos nós uma existência alternativa quando nos enfiamos na rede? Como peixes, como pixels, como crianças largadas na floresta com migalhas de pão no fundo dos bolsos?

"Sua conexão com a internet está instável", o aviso surge num rectângulo cinzento translúcido, as vozes dos outros ganham tons metálicos, gorgolejam como se fossem aspiradas por um ralo virtual, levadas para o fundo deste mar de entulho onde mantemos os nossos pequenos botes a boiar. Temo que haja tubarões e monstros que comem tubarões.

As reuniões online não atenuam a incrível carga burocrática que nos pesa nos ombros como canga a amestrar o boi. Começo a sentir uma ligeira vertigem, uma súbita vontade de ir embora, levantar o cu desta cadeira e pôr-me ao fresco. Desligo a câmara, desligo o som. Fumo um cigarro.

Ir embora não implica sair do lugar.

quarta-feira, novembro 25, 2020

Pensamento perdido

Não terá também a Arte Contemporânea a sua componente mimética? Quero dizer, se até ao pós-modernismo a arte procurou mimetizar o mundo através da representação da forma, não estará agora a tentar mimetizá-lo interpretando outras dimensões da existência (dos objectos, do ser humano) que obrigam à aplicação de processos criativos diferentes? Certamente que a representação de um conceito político, por exemplo, obriga a um processo mental muito diverso daquele que decorre da tentativa de representação de uma natureza-morta. Entre representar artisticamente aquilo que vemos (a natureza-morta) e aquilo que apenas podemos intuir (o conceito político) espraia-se todo um universo criativo difícil de explicar porque, como todos os universos, se encontra em expansão permanente, para lá do infinito.

 

Talvez o pós-modernismo se baseie essencialmente numa tentativa de desmaterialização do objecto artístico mas, talvez, essa desmaterialização não seja completa pois a linguagem artística terá de estabelecer sempre uma espécie de forma material. Mesmo a arte conceptual raramente consegue abdicar de algum tipo de forma materializada uma vez que, de outro modo, dificilmente seria apreensível pelo espectador.

sábado, novembro 07, 2020

Do auroque ao santo de pau carunchoso (2.º episódio)

(no episódio anterior): "A hipótese mais arreigada na nossa tradição imaginativa é a de que os nossos antepassados fariam aqueles bonecos com a finalidade de mimetizarem a sua captura executando umas momices quaisquer com paus e lanças, tanto quanto a imaginação contemporânea nos permite imaginar que fizessem. Certamente dançando em círculos e soltando urros assim à maneira dos grandes símios. Seria aquilo que se chama uma arte propiciatória."

Essa interpretação mostra como é complicado percebermos o que quer que seja que tenha acontecido lá para trás (se no tempo histórico é muito complicado, que dizer daquilo que aconteceu no tempo pré-histórico?), o nosso olhar não alcança tão longe. Talvez possamos colocar uma única certeza: a arte tem sempre uma utilidade qualquer. Seja uma utilidade objectiva ou algo que não faça grande sentido ou que não tenha mesmo sentido nenhum, arte que é arte ajuda a resolver alguma questão, a endireitar um pouco este mundo, implica uma dose de magia, propicia bons augúrios ou ajuda a marcar um trilho em direcção aos infernos que virá a ser percorrido pelos nossos inimigos. A arte nunca é inútil.

Mais adiante, quando começámos a desenvolver a capacidade de relacionar a nossa imaginação com a capacidade de moldar materiais, fossem pictóricos ou escultóricos, os deuses ganharam forma e vieram habitar o espaço connosco. Surgiram estatuetas, espíritos de outros mundos trazidos para o nosso convívio, pedaços de magia absoluta, objectos sagrados, objectos tabu, objectos capazes de rivalizar com o Sol ou com cordilheiras imensas, bosques sagrados, florestas místicas, objectos capazes de ofuscar a Lua, impregnados pela sua magnífica beleza, objectos repositórios da fúria dos ventos, representações abstractas da foça do trovão ou da generosidade de Gaia. 

A relação entre a nossa imaginação e a nossa capacidade plástica corporizou-se na criação de objectos sagrados ao ponto de precisarmos de construir espaços artificiais que servissem de habitação às representações das divindades. Imagino que tenha sido mais ou menos assim que surgiu a ideia do Templo. A escultura, com a sua tridimensionalidade, revelou-se a técnica mais capaz de revelar as formas divinas.

 

(continua)

 

quinta-feira, novembro 05, 2020

Sísifo reinventado

Transformar a sociedade é um trabalho lento e penoso. Deus levou 7 dias a criar o Universo ou lá o que foi, mas nós, comuns mortais limitadíssimos nas nossas capacidades criadoras, andamos séculos para fazermos coisinhas de nada. 

Olhando para o mundo em que vivemos percebemos que vamos atravessando o "tempo do vinho e das rosas". Apesar de toda a fome, toda a miséria, todas as injustiças, nunca o mundo foi tão igualitário, tão rico e tão justo como é agora. É uma espécie de paradoxo mas é um paradoxo em construção. 

A Democracia é um bom exemplo para ilustrar o que tento explicar com este texto: diz-se que é um sistema político imperfeito mas é o melhor que, até agora, conseguimos engendrar. A Democracia nunca está completa, trabalha-se e constrói-se todos os dias, a toda a hora, na tentativa de encontrar um processo que permita melhor "distribuir o mal pelas aldeias".

A qualidade de uma sociedade mede-se pela sua capacidade de proteger as minorias que nela habitam seja no reconhecimento dos seus direitos, seja na capacidade de os fazer valer. Os sistemas democráticos tendem a evoluir nesse sentido. Trabalho complicado.

Custa-me perceber que, tal como aconteceu nos Estados Unidos sob a liderança do Donald, após décadas de lenta construção, baste um burgesso empoleirado no cadeirão do poder para que tudo venha por água abaixo. Faz parte do jogo democrático mas é duro, o todo social plasmado na figura de Sísifo, a pedra levada até ao topo a rolar de novo encosta abaixo. Recomecemos...

E é este o Sentido da Vida: recomeçar, continuar, subir a encosta na esperança de que esta vá crescendo, que o cume fique cada vez mais longe e descobrir o truque. O truque consiste em escavar, aplanar, inventar patamares ao longo da encosta que evitem que a pedra, quando rola, regresse à base da montanha. 

De cada vez que recomeçamos fazemo-lo num ponto mais elevado da encosta. É esse o nosso legado para as gerações futuras: uma encosta cada vez maior e menos inclinada, repleta de pontos de travagem e descanso. Sabemos que o trabalho nunca estará concluído mas não é essa a beleza da existência humana?

segunda-feira, novembro 02, 2020

Do auroque ao santo de pau carunchoso (1.º episódio)

Embora seja por vezes difícil de especificar, é mais ou menos pacífico para o senso comum que os objectos artísticos são criados com a intenção de satisfazerem algum objectivo concreto. Penso poder afirmar que acreditámos desde sempre na magia das imagens criadas pela mão humana. E essa terá sido a finalidade principal de uma infinidade de objectos artísticos criados ao longo dos tempos: a magia.

Esta crendice virá dos tempos pré-históricos, quando os nossos antepassados se esgueiravam para as entranhas da terra, enfiando-se em grutas e buracos, até encontrarem o spot ideal para a execução dos seus extraordinários grafittis.

Nos dias de hoje tentamos imaginar qual seria razão que os levava tão longe e tão fundo para a execução daquelas enigmáticas pinturas. Manadas de auroques à desfilada nos tectos das grutas de Altamira (?) deixam-nos extasiados e como a decoração de interiores estará, à partida, excluída, desatamos a colocar hipóteses para que aquelas coisas ali estejam e tenham acontecido.

A hipótese mais arreigada na nossa tradição imaginativa é a de que os nossos antepassados fariam aqueles bonecos com a finalidade de mimetizarem a sua captura executando umas momices quaisquer com paus e lanças, tanto quanto a imaginação contemporânea nos permite imaginar que fizessem. Certamente dançando em círculos e soltando urros assim à maneira dos grandes símios. Seria aquilo que se chama uma arte propiciatória.

(continua)