sábado, março 31, 2012

Simplicidade

Afinal o nosso cérebro tem uma estrutura bem mais simples do que era imaginado. Um artigo científico recente mostra que as ligações nervosas dos nossos cérebros se organizam em estruturas reticulares e não como um confuso ninho de cobras, como muita gente poderia pensar e estaria bem mais de acordo com a nossa natureza.

Ainda iremos descobrir um dia que somos apenas máquinas, concebidas e desenhadas por outras máquinas, que as nossas vidas pouco mais são que jogos para divertimento dos nossos criadores, assim à maneira do jogo dos SIMS.

Ou talvez sejamos apenas personagens (nem máquinas chegaremos a ser?), projecções incorpóreas dotadas da capacidade de sonhar que possuem um corpo. Talvez não sejamos nada disso nem aquilo que imaginamos ser.

Sinceramente não sei bem se gostava mais de ser uma máquina ou uma personagem de um jogo de computador. Não sei bem se gostava mais de ser um animal que pensa que pensa ou uma coisa fabricada nalguma instalação industrial extra-terrestre, uma espécie de monstro horrendo aos olhos dos mais sensíveis de entre a espécie dos meus criadores.

Tudo isto porque, afinal, o nosso cérebro é parecido com uma pintura de Mondrian só que muito, mas mesmo muito, complicada. Mondrian disse um dia que a sua pintura pretendia revelar a verdade do universo, a essência das coisas para lá do véu que as cobre e oculta, o véu a que chamamos realidade.

Talvez a percepção plástica do velho pintor estivesse mais próxima dos seus objectivos do que ele jamais possa ter imaginado.

quinta-feira, março 29, 2012

Vergonha

"Vergonha" é título de filme. Filme para maiores de 18 anos, em Portugal, para maiores de 17, nos States, filme para gente em idade adulta.

Decerto nem toda a gente em idade adulta terá estômago para ver esta "Vergonha". Outros não terão coração, outros não terão cérebro, a outros faltarão tomates, enfim, "Vergonha" exige ao espectador um físico adequado e completo, é filme para gente com mente sã em corpo são, coisa próxima da divindade grega.

Trata-se da 2ª longa metragem de Steve McQueen, um artista plástico reciclado em realizador cinematográfico. Vencedor do prestigiado Turner Prize em 1999 com um filme de 4 minutos, a preto e branco, sem som, intitulado Deadpan.

"Vergonha" é, de facto, um filme especial que pouco tem a ver com a produção habitual de objectos para projectar em telas de cinema. Denso como uma carruagem de metro em hora de ponta e penetrante como um bisturi de cirurgião plástico, o filme pode incomodar as almas mais propensas a entrar no Paraíso.

Pessoalmente pareceu-me uma história muito bem contada, muito bem filmada e com actores num estado de graça quase beatífico. A banda sonora é colossal e, no final, cada espectador terá de fechar a narrativa. É ao espectador que cabe a última palavra, a derradeira reflexão. Como nas boas obras de arte.

sábado, março 24, 2012

Pregação

Nos últimos tempos tenho assistido, muito de fugida, à pregação de umas jovens pregadoras de alguma igreja evangélica, não sei qual pois elas não falam comigo. Elas pregam à minha vizinha do rés-do-chão, uma velhinha analfabeta, a palavra de um deus qualquer que conhecem bem porque hoje ouvi perfeitamente uma delas dizer "deus quer". As jovens missionárias sabem o que deus quer e não lhes treme a voz quando passam a mensagem a quem as ouve.

São duas rapariguinhas, muito jovens, vestidas com fatos de saia-e-casaco, que se encostam à parede do hall de entrada do prédio e conferenciam com a minha vizinha como se estivessem a segredar coisas secretas que toda a gente devia saber.

Já as tinha visto a deambular pelas ruas das redondezas, há muitos missionários por estas bandas, rapazes e raparigas com aspecto de andarem a cumprir uma tarefa um tanto enfadonha tal é o modo como arrastam os passos e parecem sempre tristes. Fazem-me lembrar urubus aborrecidos, a debicar um cadáver sem sal apenas porque não há mais nada para fazer nem outra coisa para comer.

A minha vizinha tosse, revira os olhos e responde ao meu "bom dia". As missionárias não tenho a certeza de que tenham respondido. Talvez tenha ouvido um sussurro qualquer, uma brisa de voz parecida com uma resposta, não sei, não posso ter a certeza.

Subi a escada e deixei, lá em baixo, a velhinha entregue às tarefas evangélicas daquelas crianças perdidas e tristes, afogadas nas profundezas da sua suposta fé e dos seus fatos grotescos que lhes escondem a juventude a as transformam numa coisa que só deveriam ser daqui a muitos anos, depois de terem morrido e sido enterradas.

Quando entrei em casa fiquei a matutar no termo "pregação" e como pregar a palavra de deus se assemelha tanto a pregar o seu filho na cruz.

terça-feira, março 20, 2012

Gramática

Recebi um e-mail com a seguinte lição: 
Curso Rápido de Gramática: 
- Filho da puta é adjunto adnominal, quando a frase for: ''Conheci um político filho da puta". 
- Se a frase for: "O político é um filho da puta", é predicativo. 
- Se a frase for: "Esse filho da puta é um político", é sujeito. 
- Porém, se apontares uma arma à testa do político e disseres: "Agora nega o roubo, filho da puta!" - é vocativo. 
- Finalmente, se a frase for: "O ex-ministro, aquele filho da puta, arruinou o país e não só" - é aposto. 
Que língua a nossa! 
Vejamos a seguinte frase: 
"Saiu de ministro e foi viver para França e ainda se acha o salvador da Nação." 
O "filho da puta" aqui é sujeito oculto...

Assim se aprende gramática.








quarta-feira, março 14, 2012

Olhos que não vêem, coração que não sente

Olhar nos olhos a pessoa que está à tua frente (na carruagem de metro, na esplanada do café, no meio da rua) pode ser algo estranhamente intimidatório.

Para ti, para a outra pessoa, pode erguer-se entre vós uma inesperada cortina que, não sendo de ferro, decerto será coisa suficiente para vos deitar os olhares ao chão.

Mesmo que, no súbito contacto com o chão, os vossos olhos não venham a partir-se, quando se levantarem de novo para a horizontal que dispara das vossas cabeças, vão evitar cruzar-se no embaraçoso contacto.

Os vossos olhares vão procurar outros poisos, saltitando, nervosos como pardalitos num dia de nuvens baixas. Nervosos e envergonhados.

Mas se, no regresso, os vossos olhares se fixarem e mantiverem firmes na contemplação do outro, um mundo inteiro poderá abrir-se.

sábado, março 10, 2012

Au revoir

Acabo de saber que morreu Jean Giraud, também conhecido por Moebius (ou vice-versa). Giraud foi um dos mais extraordinários desenhadores que o mundo já conheceu. Desde miúdo que acompanhei com admiração e reverência a sua obra extraordinariamente variada.

Giraud desenhava como se falasse. As suas personagens raramente repetiam um gesto, os seus cenários eram sempre de uma minúcia e de uma inventividade de cortar o fôlego. Tenho muitas das suas obras nas minhas prateleiras que vou lendo, relendo ou, simplesmente, admirando. Quantas vezes tentei copiar os seus desenhos!

Fiquei triste com a notícia. Foi como se tivesse falecido um amigo chegado. É uma sensação estranha.

Au revoir, mon vieux ami.

quinta-feira, março 08, 2012

Escalas de valor

Apercebi-me da facilidade com que os jovens de hoje (leia-se os meus alunos) amam ou odeiam todas as coisas do mundo circundante. Mais do que amar, eles adoram isto ou adoram aquilo tão espontâneamente como odeiam outra coisa qualquer.

Quando tinha a idade deles (que conversa tão paternalista!) eu gostava ou não gostava das coisas com que sentia necessidade de me relacionar. Também amava ou adorava ou odiava, mas resguardava um pouco estes sentimentos para situações muito específicas. Não os declarava com a leveza de espírito que julgo observar nos meus jovens parceiros de quotidiano.

Parece-me evidente que a escala de valor que os miúdos aplicam às coisas é mais vasta e extremada do que aquela que era usual utilizar quando vivi os intervalos de tempo em que eles agora se encontram. Fiquei a pensar por que razão isto poderá acontecer (se é que, na realidade, acontece).

Cheguei a uma leve conclusão. Talvez a minha educação católica esteja relacionada com a dificuldade em declarar amor, adoração ou ódio. Ensinaram-me que se adora a Deus acima de todas as coisas. Adorar outra coisa seria pecado próximo do mortal, logo era enfiar um pézinho no inferno.

Assim sendo, o ódio era coisa para sentir quando o diabo andasse por perto. Era preciso ter muito cuidado com esse tipo de sentimento.

O tempo passou e a minha adoração pela divindade esfumou-se por completo, mas aquilo que me entrou pelos miolos abaixo cá ficou. Os putos agora não passam pelo crivo da cataquese e não sentem qualquer prurido em declarar adoração por um cantor da moda ou ódio por uma marca de jeans.

Não só a escala deles é muito mais vasta e extremada, como as coisas parecem ter todas um valor aproximado. Deus é colocado na balança dos amores e dos ódios juntamente com um penteado ou um jogo de consola e, à partida, todas as coisas podem ser pesadas em conjunto, chegando-se a um resultado perfeitamente aceitável.

Será que esta facilidade de adorar e odiar está relacionada com a banalização do sagrado? Mmmmmh, pode ser isso... pode ser isso.

domingo, março 04, 2012

Arte improvável

As formas de manifestação artística são tão variadas quanto a nossa capacidade de as aceitar e, quem sabe, de as compreender. Muitos de nós continuam a ver arte apenas quando ela está pendurada nas paredes ou assente nos soalhos de locais certificados pela Academia ou pela crítica. Mesmo aí, muitas obras causam polémica e provocam sorrisos trocistas e expressões, no mínimo, jocosas. A Arte Contemporânea não é fácil de "engolir".

Vem esta introdução a propósito de uma notícia publicada no P3 sobre um tal Ben Wilson que, entre outras coisas, anda há sete anos a pintar... chicletes esmagadas no chão de várias cidades por esse mundo fora.
Segundo o The Telegraph, Ben terá produzido mais de 10.000 (sim, dez mil!!!) exemplares desta sua bizarra forma de expressão plástica.

Ao contrário do que acontece com outras estranhas formas de arte, perante esta pintura sobre chicletes poucos dirão a frase do costume: "Isso também eu fazia."

as hiperligações conduzem-te a lugares onde podes admirar alguns exemplares da espantosa pintura de Ben Wilson

quinta-feira, março 01, 2012

Da arte da espionagem

Esconder dos outros pedaços da realidade é uma tarefa que me dá vontade de rir. É como espantar migalhas para debaixo de um tapete estranhamente colocado sobre o tampo da mesa, deixando o chão abandonado à indiferença das solas de sapatos e botas.

Tentamos agir com uma naturalidade exagerada, como se a colocação do tapete sobre a mesa fizesse algum sentido e a existência de tão sossegadas migalhas não nos interessasse nem um bocadinho. O gesto de as pôr a andar para debaixo do tapete deve ser executado com a elegância de uma distracção indiferente.

Em momento algum podemos comportar-nos como um adolescente que tenha rapado o cabelo e tatuado um 3º olho bem no meio da testa e, ainda assim, pretenda agir com naturalidade na presença de outras pessoas. Seríamos imediatamente notados e a nossa inocente tarefa de esconder pedaços da realidade havia de diluir-se no espaço em volta, tornando-se parte dele e, logo, respirável por olhares alheios.

Manter os nossos gestos ao mesmo nível das nossas intenções, fazer do movimento do corpo uma coisa mental e automática, não está ao alcance de qualquer um. A coisa exige uma cabeça descomunal, uma cabeça que possa armazenar suficiente espaço vazio.

Misturar o gesto com a reflexão abstracta, a impureza do gesto com a pureza da sua ausência, é a alquimia dos grandes espiões, o combustível que lhes alimenta a máquina da sobrevivência.