sábado, janeiro 26, 2019

Consumição

Não sei bem quando foi que aconteceu, quando foi que os electrodomésticos deixaram de ter arranjo para passarem a ter garantia? Quem diz electrodomésticos diz automóveis ou esse objecto-fetiche, tão recente, o smartphone (os inglesismos têm vindo a ser substituídos pelas expressões em inglês puro e duro).

A garantia é, por norma, de dois anos. Terminado esse período de tempo (tão curto!) nada nos garante que o objecto continue a funcionar de acordo com as características excepcionais que nos levaram a adquiri-lo. Diz-se por aí que os objectos já são fabricados de acordo com o tempo de vida mais curto, que os dois anos são uma espécie de velhice tecnológica, tão rápida é a evolução destas espécies. Talvez seja boato.

A verdade é que, nos tempos que correm, quando um objecto deixa de funcionar parece lógico depositá-lo num daqueles caixotes enormes que aparecem nos estacionamentos dos centros comerciais devidamente identificados para o efeito. Depois subimos nas escadas rolantes e vamos à loja comprar outro. É a lógica consumista.

Esta discreta alteração dos nossos hábitos trouxe consigo outra transformação insidiosa: a do cidadão que se torna consumidor. Os direitos de cidadania a serem substituídos pelos direitos do consumo. A vida a ser consumida mais do que a ser vivida?


quinta-feira, janeiro 24, 2019

Ser e parecer



André Ventura é uma daquelas personagens que não se acanham. O teor das suas afirmações públicas não coincide com o manifesto que juntou às assinaturas recolhidas com a finalidade de fazer aprovar o Chega, esse projecto de partido que gatinha graças à exposição mediática conseguida por Ventura nos espaços de debate futebolístico da CMTV. 

Perante os juízes do Tribunal Constitucional, Ventura faz luzir sobre a cabeça uma auréola de santinho respeitador da Constituição, cá fora, quando lhe é oferecido o espaço mediático, não se coíbe em mostrar os dentes e afirmar aquilo que não se atreve a registar no manifesto. André ora é bom ou mau, afável ou agressivo, tudo depende. Sendo contido numa certa comparação zoológica pode-se considerar que André é um camaleão.

A Democracia tem destas coisas, permite que germinem no seu seio personagens que a odeiam e que tudo farão para acabar com ela. Personagens como André Ventura chegam montadas em cavalos brancos, prometendo isto e aquilo, de acordo com o que lhes pareça ser o sentimento mais larvar e profundo que germine no descontentamento de certas tribos mais ou menos marginais à inteligência humana. 

Na maior parte dos casos, estes napoleões de pacotilha não conseguem desmontar do cavalo, não têm estofo para cavalgar outra coisa que não seja a desgraça e o descontentamento o que acaba por levá-los numa correria louca em direcção ao abismo do esquecimento quando o logro que é o seu completo vazio se revelar aos olhos de todos, correligionários incluídos. 

André Ventura quer ser uma coisa parecendo outra e vice-versa; Ventura é uma excrescência na Democracia. Pim.

quarta-feira, janeiro 23, 2019

Tweets, posts e likes

A perfeição sempre foi uma miragem mas, agora, neste "tempo detergente", quando as redes sociais exigem das figuras públicas uma correspondência absoluta entre o seu comportamento e as expectativas de todo o "Zé da Esquina" e respectiva "Zeza dos Ovos", a perfeição entrou definitivamente na categoria alegórica de "unicórnio".

A proximidade é tanta que podemos ouvir as pessoas mais distantes a pensarem dentro da nossa cabeça. São tweets, são posts, são likes, são emojis, são mensagens de todas as formas e feitios a caírem constantemente nas redes que cobrem todo o planeta como imensas spider webs. Falta saber com exactidão quem é a spider de atalaia nas webs que frequentamos e ajudamos a tecer.

A coisa é muito complexa. Somos, em simultâneo, as aranhas que tecem a rede e as moscas incautas que nela vão ser aprisionadas e transformadas em recurso alimentar para suprir alguma fome futura. Nem sei se o que digo faz algum sentido, de tal modo ando confuso.

Voltando ao princípio: a perfeição moral e o comportamento impoluto passaram para a esfera do Divino; literalmente. Já nenhum de nós pode aspirar à admiração geral pois a forma como coçamos a cabeça ou o modo pouco humano como nos referimos às focas bebés podem provocar uma onda de rejeição que não conseguimos antecipar.

Cada um de nós é, à sua maneira e escala, uma figura pública. Estamos sujeitos a um policiamento implacável feito por entidades virtuais, trolls sem face, policiamento esse capaz de gerar sofrimento a qualquer momento. A violência dos ataques à personalidade de cada indivíduo (tal como as manifestações de admiração e de amor) é directamente proporcional à sua popularidade e visibilidade social.

Pode ser um like mal interpretado, um emoji desajustado ou a partilha de alguma cena menos recomendável. Andamos por este mundo como cegos que não têm capacidade de perceber quão próxima está a escarpa que se  precipita na garganta do inferno.

segunda-feira, janeiro 21, 2019

Estupidez

As tristemente célebres fake news são como vírus que infectam os seres humanos e, consequentemente, empestam as relações sociais degradando por completo a coisa pública. A doença contrai-se com surpreendente facilidade. Basta aparecer uma atoarda qualquer  numa rede social e... zzzzzzt, propaga-se como incêndio num palheiro.

Na maioria das situações a notícia falsa é fácil de desmontar. Bastaria uma busca um pouco mais transversal ou ligeiramente mais profunda e a verdade viria ao de cima. Mas dá algum trabalho, o Saber não é completamente gratuito. É muito mais fácil ser-se estúpido. E está na moda.

É assim que participamos com um misto de alegria e indignação na corrupção do corpo social a que pertencemos: deixamo-nos infectar pela estupidez e, ficando estúpidos, passamos à acção agressiva, praticamos a maledicência, explodimos em indignação, as mais das vezes injustificada. Somos agentes infecciosos.

As designadas redes sociais contribuem em grande parte para esta embaraçosa desorganização do pensamento humano. Os computadores, por si sós, não fazem de nós animais mais inteligentes. Isso é que era doce!

É este o nosso admirável mundo novo. Um mundo em que as máquinas nos ajudam a ser muito mais burros do que seríamos capazes sem a sua colaboração.


sexta-feira, janeiro 18, 2019

Expor

Eu próprio junto a "Le Philosophe" desenho com canetas de gel sobre papel Fabriano, 210X150cm

Inaugura hoje uma exposição de desenhos da minha autoria. Poderia dizer que é "mais uma" mas, para ser sincero, uma nova exposição nunca é "mais uma". Antes de mais, apesar dos meus 56 anos de idade e de uma produção razoável de objectos com pendor artístico, a minha actividade expositiva é notóriamente modesta em número.

Um certo acanhamento e uma espécie larvar de modéstia (também em termos de influência) aliados a uma razoável dose de preguiça terão contribuído para que os anos tenham passado e a minha capacidade de expor trabalho publicamente se tenha revelado tão limitada. Quando penso nisso noto apenas como a intensidade dos sonhos se altera com a idade. Não me sinto injustiçado nem reconhecido. Na verdade não sinto nada de especial.

A coisa que mais me preocupa é quando perco instinto criativo, quando fico algum tempo sem sentir vontade nem impulso para voltar à ilusão de fazer um desenho ou uma pintura ou escrever um texto que me anime.

Para já tenho uma selecção de trabalhos (posso dizer que sou comissário de mim próprio) criteriosamente colocados sobre as paredes do Quarteirão das Artes, em Almada. São trabalhos realizados com esferográfica e canetas de gel sobre papel com dimensões que variam entre 50X65cm e os 210X150cm.

Quando li "Narciso e Goldmund", de Hermann Hesse, interiorizei uma possibilidade relacionada com a criação artística que me faz reflectir com frequência  sobre a hipótese de tudo isto não passar de mera exibição de vaidade. A minha educação católica faz-me envergonhar, corar um pouco, a minha experiência de vida como agnóstico leva-me a perguntar: Sim... e depois?

Fica bem que eu também.

terça-feira, janeiro 15, 2019

Reciclagem

Os miúdos são barulhentos, confusos, desorganizados; quando se encontram numa sala de aula, quando estão no recreio. Imagino que sejam assim na maioria das situações que vivem. Reproduzem constantemente a javardeira que os rodeia na cidade que habitam. 

O silêncio incomoda-os, fá-los sofrer, quando o ambiente fica silencioso os miúdos sentem-se inquietos como se fosse um mau presságio. Na ausência de ruído fica a sensação de que algo perigoso se aproxima. Talvez um monstro tenha chegado às portas da cidade, não tarda o silêncio agoirento será rasgado por gritos desesperados, o horizonte recortado pela silhueta de um Godzilla patudo a destruir tudo a cada passo. Imagino que seja algo assim, talvez pior.

Há uma cada vez mais complexa fusão entre o Inferno e o imaginário infanto-juvenil, o que gera personagens estranhíssimas: coisas fofinhas com dentes afiados como facas ou coisas horrendas com cauda de coelhinho lãzudo. 

Se pretendemos manter abertas as vias de diálogo com a putalhada precisamos de reciclar profundamente as nossas galerias de heróis e respectivas correspondentes de vilões. 

domingo, janeiro 13, 2019

Humanidade

Os olhos, por si sós, não vislumbram a alma das coisas; como fariam os cegos para poderem saber? Falta o coração, junta-se-lhe a mente, de tudo junto se constrói a máquina que vê, com mais ou menos peças, um ou outro método de funcionamento. Eis a poderosa possibilidade de haver deslumbramento.

As coisas mais banais, as aparentemente simples, as artificialmente complexas ou afectadas, o mundo abarca tudo com as nossas almas lá dentro. O mundo é constituído pelas coisas que podemos perceber e por aquelas que, sem o sabermos, nos escapam. Nessas coisas também estamos nós.

Compete-nos viver.

terça-feira, janeiro 08, 2019

Tecnologia de estimação

O meu telemóvel não é dos mais faladores, por vezes passa dias inteiros que está calado. Como um rato. Mas isso não impede que me sinta ligeiramente angustiado caso me esqueça dele poisado algures, entregue à suavíssima queda do pó que encobre o mundo.

Estranha relação esta, que estabelecemos com certos objectos tecnológicos. É quase como se fossem bichos, animais de estimação. Como se tivessem caprichos, sonhos, necessidades. Como se respirassem o mesmo ar que respiramos.

No outro dia resolvi deixar o telemóvel em casa de forma premeditada. Só para ver como seria. Foi bom. A verdade é que me senti muito mais leve. Não me roeu aquela sensação de culpa pois desta feita não me esquecera dele. Também me sossegou saber que não estava a abandoná-lo, que iria voltar a casa e ele lá estaria, fiel, à minha espera. Enfim, umas horas de liberdade sabem bem.

Certos objectos tecnológicos têm uma irritante capacidade de nos tiranizarem o dia, como se fossem animais de estimação que estragámos com demasiado mimo. Nada que uma martelada não resolva.

segunda-feira, janeiro 07, 2019

Naufrágio

A Europa afoga-se todos os dias um pouco mais nas águas do Mar Mediterrâneo. O projecto europeu confunde-se com um negócio feito na sombra de gabinetes luxuosos por tipos engravatados sem pingo de sensibilidade social. Vendem-se vistos "gold" que garantem a cidadania europeia a centenas de ricaços que nem precisam de justificar a origem da sua riqueza; paga-se a bandos de facínoras no norte de África para que impeçam os que tentam alcançar a Europa de meterem, sequer, os pés num barco onde arrisquem a vida mais uma vez; é assim que se alimenta a alma da União Europeia?

Velhos aliados mudam de face e tornam-se vagas ameaças. A Europa democrática vê-se inesperadamente deixada a sós pelos EUA e começa a voltar a cabeça na direcção da China(?). Os Direitos Humanos também são bens transaccionáveis.

Não há nada que una os países da União a não ser o amor e a reverência que lhes merece o deus-dinheiro. Vivemos zombificados, arrastando as nossas convicções pela lama, penosamente.

A Europa afunda-se todos os dias um pouco mais no mar das suas contradições.

sábado, janeiro 05, 2019

Magia de Ano Novo

O dia 1 de Janeiro é, afinal, um dia como outro qualquer. O calendário não tem propriedades mágicas. Se, porventura, alguma coisa muda com a passagem de ano, isso fica a dever-se a uma eventual vontade de mudança que trazemos dentro de nós.
A haver alguma magia nesta coisa, a magia somos nós.