quarta-feira, dezembro 30, 2020

2020

Bem vistas as coisas é apenas mais um ano que se vai apagando. Já lá vão dois mil e vinte anos na nossa Era. A civilização egípcia, que se aprende nas escolas com a pirâmide de Gizé como ícone principal, durou mais de três mil, três mil anos, caraças! Quantas epidemias terá suportado além das pragas que lhe rogou o deus dos judeus? O nosso deus.

A pandemia envenena os nossos sonhos? Os sonhos de quem, de quantos? Arruinou o futuro das crianças sírias? Empurrou para o mar vagas incessantes de pessoas que fogem do mundo para dentro dele? A pandemia veio pôr a nu fragilidades e incongruências do sistema capitalista? Alarma-nos para a evidência da decrepitude do nosso modo de vida? Valha-nos Nossa Senhora. Pode ser a dos Aflitos.

Bem vistas as coisas 2020 é apenas mais um ano de merda para a espécie humana e nem sequer podemos ter a certeza que tenha sido o pior. Decerto houve outros bem mais devastadores. A verdade é que a espécie humana não sofre como um todo. O sofrimento é um coisinha muito parcelar, muito parcial e extremamente privada.

Bom Ano Novo.

segunda-feira, dezembro 21, 2020

O acto de criar

Trago pinturas dentro da cabeça que não consigo espremer até à ponta dos meus dedos. São imagens fantasma, ideias perdidas na fronteira, coisas sem forma definida, coisas por nomear, pequenos querubins perdidos no limbo que imploram ajuda para virem até este mundo. Por favor!

Entre o que trago dentro de mim e este mundo existe uma fronteira implacável que é o meu corpo. Fronteira e presídio ou hospício, algo assim, é como me sinto. Impeço a beleza, não premeditadamente, antes por incapacidade de a compreender completamente. E ela fica dentro de mim, não consegue sair.

Trago pinturas dentro de mim que, com extrema dificuldade, vagamente vislumbro. Envoltas numa neblina (que nada tem de mística), as formas hesitam, as cores esbatem-se, peco-lhes o sentido. Para criar é necessário ser capaz de parir.


terça-feira, dezembro 15, 2020

Coisas monstruosas

Muito se preocupam as mentes brilhantes que governam o nosso futuro com as competências das jovens gerações no que à matemática diz respeito. Estão fraquinhos, os putos, no desvendamento dos segredos da linguagem numérica; não pode ser! Precisam de mais horas de aulas, mais tempo de trabalho nas grutas dos números, haja quem lhes martele o juízo com a complexidade das operações que lhes falecem. O resto não interessa muito. A literatura, a arte, a história, coisas menores, universos dispensáveis.

E cada vez mais as jovens gerações vão sendo cada vez menos... jovens? Receio que estejamos a fomentar comportamentos zombies entre a petizada. Absortos nos seus gadgets tecnológicos, imersos em mundos exclusivamente eléctricos e virtuais, com a cabeça atulhada de números: zero um, um um, zero zero, um zero. O mundo, assim descrito, perde a sua dimensão animal, confunde sensações e sentimentos. Ficam pobrezinhos, os jovens. Pobrezinhos que nem pedir sabem, sentados nas soleiras das portas das suas catedrais tecnológicas.

E são estes pobres-de-pedir quem escreve os algoritmos que depois se autonomizam e crescem como divindades absolutas que zelam pelo nosso quotidiano, os algoritmos que a cada dia que passa nos assustam um pouco mais. Tememos a autonomização das máquinas, a dificuldade que temos em ensinar-lhes o que é Ser Humano; tememos a substituição, tememos ser dispensáveis, descartáveis, tememos tornar-nos absolutamente inúteis.

Penso que, na verdade, devemos temer não os algoritmos mas aqueles que os criam. Penso que quem não compreende o Ser Humano somos nós. As máquinas reflectem aquilo que somos e tornam-se coisas monstruosas.

quarta-feira, dezembro 09, 2020

Do auroque ao santo de pau carunchoso (3.º episódio)

(no episódio anterior) A relação entre a nossa imaginação e a nossa capacidade plástica corporizou-se na criação de objectos sagrados ao ponto de precisarmos de construir espaços artificiais que servissem de habitação às representações das divindades. Imagino que tenha sido mais ou menos assim que surgiu a ideia do Templo. A escultura, com a sua tridimensionalidade, revelou-se a técnica mais capaz de revelar as formas divinas.

Adorar um pedaço de madeira ou um calhau transformados em figuras significativas é atitude que implica uma fé imensa. Temos milénios de treino e prática da imaginação para lá chegarmos, olhar um boneco e ver um deus! O esforço necessário para realizar tal transferência de poderes entre o dinamismo universal e objectos inanimados é feito digno de nota, não está ao alcance de qualquer macaco. É um acto de magia.

Curiosamente, os mágicos mais importantes desta história até nem são aqueles que criam os bonecos (os artistas/artesãos), os mágicos mais importantes são aqueles que criam as narrativas em volta dos bonecos (os sacerdotes/shamãs). Seja como for é espantoso todo o poder acumulado em redor de algumas destas figuras.

O boneco adorado é uma materialização do conceito que encerra, uma transposição de energia vinda directamente do cosmos para a nossa mesinha-de-cabeceira, parece-me fascinante. Uma oração ao boneco antes de ir para a cama e depois do chichi, eis uma actividade muito praticada por esse mundo fora.

Nos tempos que correm, nos países onde existe liberdade religiosa, isto não é nada de mais. Mas nem sempre foi assim. Por estranho que possa parecer a adoração da bonecada foi motivo para lutas intestinas e muito boa gente bateu a caçoleta à conta de perspectivas diferentes em relação ao assunto.

(continua)

quarta-feira, dezembro 02, 2020

Até breve

É sempre assim, o aniversário destas 100 Cabeças passa sem eu dar por ele. 

É um aniversário sem festa nem convidados. É uma marca no tempo, sem calendário. Nasceu em 2005 e por aqui continua, em busca de uma idade que seja adulta embora não compreenda bem o que distingue uma idade adulta de outra idade qualquer.

Esta espécie de arquivo de ideias serve-me com rara frequência para resolver um ou outro problema que me vá surgindo no quotidiano. Noutras ocasiões perco-me um pouco em leituras avulsas, reencontrando-me em momentos esquecidos, pensamentos que, por vezes, me surpreendem: "fui eu quem escreveu isto?", surpresas nem sempre agradáveis, nem sempre embaraçosas.

E pronto, vou cortar aqui a raiz a este pensamento, não com um machado (pois a canção ensina que isso é impossível) mas com um até breve.

Até breve.

sexta-feira, novembro 27, 2020

Reunidos


As reuniões online são espaços de comunicação estranhos. Os intervenientes estão todos encaixados em pequenos rectângulos, alinhados como produtos de consumo nas prateleiras de supermercado. Falamos. Um de cada vez. Olhos baixos, olhos em riste, cada um parece navegar nos seus pensamentos. Estamos todos no écrã mas cada um no seu espaço particular. Somos cabeças, troncos, talking heads, tanto quanto posso imaginar alguns poderão nem ter pernas, nem ser pessoas.

O tempo alonga-se. Será consequência deste espaço virtual? Teremos nós uma existência alternativa quando nos enfiamos na rede? Como peixes, como pixels, como crianças largadas na floresta com migalhas de pão no fundo dos bolsos?

"Sua conexão com a internet está instável", o aviso surge num rectângulo cinzento translúcido, as vozes dos outros ganham tons metálicos, gorgolejam como se fossem aspiradas por um ralo virtual, levadas para o fundo deste mar de entulho onde mantemos os nossos pequenos botes a boiar. Temo que haja tubarões e monstros que comem tubarões.

As reuniões online não atenuam a incrível carga burocrática que nos pesa nos ombros como canga a amestrar o boi. Começo a sentir uma ligeira vertigem, uma súbita vontade de ir embora, levantar o cu desta cadeira e pôr-me ao fresco. Desligo a câmara, desligo o som. Fumo um cigarro.

Ir embora não implica sair do lugar.

quarta-feira, novembro 25, 2020

Pensamento perdido

Não terá também a Arte Contemporânea a sua componente mimética? Quero dizer, se até ao pós-modernismo a arte procurou mimetizar o mundo através da representação da forma, não estará agora a tentar mimetizá-lo interpretando outras dimensões da existência (dos objectos, do ser humano) que obrigam à aplicação de processos criativos diferentes? Certamente que a representação de um conceito político, por exemplo, obriga a um processo mental muito diverso daquele que decorre da tentativa de representação de uma natureza-morta. Entre representar artisticamente aquilo que vemos (a natureza-morta) e aquilo que apenas podemos intuir (o conceito político) espraia-se todo um universo criativo difícil de explicar porque, como todos os universos, se encontra em expansão permanente, para lá do infinito.

 

Talvez o pós-modernismo se baseie essencialmente numa tentativa de desmaterialização do objecto artístico mas, talvez, essa desmaterialização não seja completa pois a linguagem artística terá de estabelecer sempre uma espécie de forma material. Mesmo a arte conceptual raramente consegue abdicar de algum tipo de forma materializada uma vez que, de outro modo, dificilmente seria apreensível pelo espectador.

sábado, novembro 07, 2020

Do auroque ao santo de pau carunchoso (2.º episódio)

(no episódio anterior): "A hipótese mais arreigada na nossa tradição imaginativa é a de que os nossos antepassados fariam aqueles bonecos com a finalidade de mimetizarem a sua captura executando umas momices quaisquer com paus e lanças, tanto quanto a imaginação contemporânea nos permite imaginar que fizessem. Certamente dançando em círculos e soltando urros assim à maneira dos grandes símios. Seria aquilo que se chama uma arte propiciatória."

Essa interpretação mostra como é complicado percebermos o que quer que seja que tenha acontecido lá para trás (se no tempo histórico é muito complicado, que dizer daquilo que aconteceu no tempo pré-histórico?), o nosso olhar não alcança tão longe. Talvez possamos colocar uma única certeza: a arte tem sempre uma utilidade qualquer. Seja uma utilidade objectiva ou algo que não faça grande sentido ou que não tenha mesmo sentido nenhum, arte que é arte ajuda a resolver alguma questão, a endireitar um pouco este mundo, implica uma dose de magia, propicia bons augúrios ou ajuda a marcar um trilho em direcção aos infernos que virá a ser percorrido pelos nossos inimigos. A arte nunca é inútil.

Mais adiante, quando começámos a desenvolver a capacidade de relacionar a nossa imaginação com a capacidade de moldar materiais, fossem pictóricos ou escultóricos, os deuses ganharam forma e vieram habitar o espaço connosco. Surgiram estatuetas, espíritos de outros mundos trazidos para o nosso convívio, pedaços de magia absoluta, objectos sagrados, objectos tabu, objectos capazes de rivalizar com o Sol ou com cordilheiras imensas, bosques sagrados, florestas místicas, objectos capazes de ofuscar a Lua, impregnados pela sua magnífica beleza, objectos repositórios da fúria dos ventos, representações abstractas da foça do trovão ou da generosidade de Gaia. 

A relação entre a nossa imaginação e a nossa capacidade plástica corporizou-se na criação de objectos sagrados ao ponto de precisarmos de construir espaços artificiais que servissem de habitação às representações das divindades. Imagino que tenha sido mais ou menos assim que surgiu a ideia do Templo. A escultura, com a sua tridimensionalidade, revelou-se a técnica mais capaz de revelar as formas divinas.

 

(continua)

 

quinta-feira, novembro 05, 2020

Sísifo reinventado

Transformar a sociedade é um trabalho lento e penoso. Deus levou 7 dias a criar o Universo ou lá o que foi, mas nós, comuns mortais limitadíssimos nas nossas capacidades criadoras, andamos séculos para fazermos coisinhas de nada. 

Olhando para o mundo em que vivemos percebemos que vamos atravessando o "tempo do vinho e das rosas". Apesar de toda a fome, toda a miséria, todas as injustiças, nunca o mundo foi tão igualitário, tão rico e tão justo como é agora. É uma espécie de paradoxo mas é um paradoxo em construção. 

A Democracia é um bom exemplo para ilustrar o que tento explicar com este texto: diz-se que é um sistema político imperfeito mas é o melhor que, até agora, conseguimos engendrar. A Democracia nunca está completa, trabalha-se e constrói-se todos os dias, a toda a hora, na tentativa de encontrar um processo que permita melhor "distribuir o mal pelas aldeias".

A qualidade de uma sociedade mede-se pela sua capacidade de proteger as minorias que nela habitam seja no reconhecimento dos seus direitos, seja na capacidade de os fazer valer. Os sistemas democráticos tendem a evoluir nesse sentido. Trabalho complicado.

Custa-me perceber que, tal como aconteceu nos Estados Unidos sob a liderança do Donald, após décadas de lenta construção, baste um burgesso empoleirado no cadeirão do poder para que tudo venha por água abaixo. Faz parte do jogo democrático mas é duro, o todo social plasmado na figura de Sísifo, a pedra levada até ao topo a rolar de novo encosta abaixo. Recomecemos...

E é este o Sentido da Vida: recomeçar, continuar, subir a encosta na esperança de que esta vá crescendo, que o cume fique cada vez mais longe e descobrir o truque. O truque consiste em escavar, aplanar, inventar patamares ao longo da encosta que evitem que a pedra, quando rola, regresse à base da montanha. 

De cada vez que recomeçamos fazemo-lo num ponto mais elevado da encosta. É esse o nosso legado para as gerações futuras: uma encosta cada vez maior e menos inclinada, repleta de pontos de travagem e descanso. Sabemos que o trabalho nunca estará concluído mas não é essa a beleza da existência humana?

segunda-feira, novembro 02, 2020

Do auroque ao santo de pau carunchoso (1.º episódio)

Embora seja por vezes difícil de especificar, é mais ou menos pacífico para o senso comum que os objectos artísticos são criados com a intenção de satisfazerem algum objectivo concreto. Penso poder afirmar que acreditámos desde sempre na magia das imagens criadas pela mão humana. E essa terá sido a finalidade principal de uma infinidade de objectos artísticos criados ao longo dos tempos: a magia.

Esta crendice virá dos tempos pré-históricos, quando os nossos antepassados se esgueiravam para as entranhas da terra, enfiando-se em grutas e buracos, até encontrarem o spot ideal para a execução dos seus extraordinários grafittis.

Nos dias de hoje tentamos imaginar qual seria razão que os levava tão longe e tão fundo para a execução daquelas enigmáticas pinturas. Manadas de auroques à desfilada nos tectos das grutas de Altamira (?) deixam-nos extasiados e como a decoração de interiores estará, à partida, excluída, desatamos a colocar hipóteses para que aquelas coisas ali estejam e tenham acontecido.

A hipótese mais arreigada na nossa tradição imaginativa é a de que os nossos antepassados fariam aqueles bonecos com a finalidade de mimetizarem a sua captura executando umas momices quaisquer com paus e lanças, tanto quanto a imaginação contemporânea nos permite imaginar que fizessem. Certamente dançando em círculos e soltando urros assim à maneira dos grandes símios. Seria aquilo que se chama uma arte propiciatória.

(continua)

 

segunda-feira, outubro 19, 2020

Espiral demencial

Os americanos declaram a relação que imaginam ter estabelecido com Deus  através da célebre formulação "in God we trust" que espalham, principalmente, através das  notas de dólar. É uma cena um bocado à Moisés, na base da "cúnfia", acreditando que Deus, por via da confiança declarada, os beneficiará de algum modo. É uma cena que se estabelece mais num certo espírito mafioso do que propriamente evangélico. Os americanos imaginam Deus como uma espécie de padrinho. Eles confiam em Deus, falta saber se Deus confia neles. 

Os Estados Unidos constroem o seu imaginário numa base estranhamente beata. Os seus dirigentes (de Reagan a Obama) estão constantemente a encomendar a alminha pátria à divindade. Por vezes parece que os EUA são uma teocracia onde o lugar de Deus é ocupado pela notas de dólar. Será tanto assim?

Este voraz deus americano (o dólar) é implacável para com os "loosers" e indecentemente complacente para com os "winners" tornando aquele país (os EUA são um país?) uma imensa esterqueira moral e ética que, por ser o "farol do mundo livre", exporta a sua porcaria para quase todo o mundo.

Nos tempos que correm o "sonho americano" vai perdendo fulgor. O deus dólar esvazia-se perante os nossos olhos como se a democracia americana fosse produto de uma gravidez histérica. A China aguarda o seu momento, placidamente sentada na penumbra da História. E nós? Nós pessoas, nós Humanos, o que podemos fazer além de esperar na sombra, juntamente com a China?


terça-feira, outubro 13, 2020

Manter a coisa simples

Tenho a nítida sensação de que Deus não morreu (shame on you Friedrich Nietzsche). Quanto a mim está vivinho da silva. Só não sei se desapareceu por não Lhe terem renovado o contrato, se meteu os papéis para a reforma. Foi à vida Dele, foi o que foi.

E fez muito bem. Ele sabe melhor que ninguém que a vida (a Existência) é muito mais do que aquilo que experienciamos através dos sentidos se bem que não nos tenha explicado suficientemente em que consiste (estou a falar da vida, da Existência).

Isto de Ser Humano é complicado. Pode ser uma tristeza. Tem-se aquela sensação de orfandade, de abandono... enfim, vou beber um copito de tinto e tasquinhar uns panadinhos de frango enquanto leio qualquer coisa edificante. Daqui a nada vou dar uma aula. São crianças, o meu público, convém que não me estique nas reflexões que lhes proponho.

Manter a coisa simples, eis o segredo do negócio que é viver.

terça-feira, outubro 06, 2020

Como se fôssemos ladrões

Sinto-me estranho nesta condição de professor mascarado perante turmas de alunos, também eles, de cara tapada. Bem posso sorrir, ninguém vê. A comunicação é engasgada, falta a leitura das expressões faciais, agora reduzidas a olhares. Quando um aluno fala sem levantar o braço torna-se difícil perceber qual deles foi. A sala é como um arquivo de pastas com etiquetas (cada aluno tem na mesa uma "placa" com o nome).

Não é fácil trabalhar nestas condições. A verdade é que ser professor nunca foi propriamente fácil. Após alguns anos de experiência, ser professor torna-se natural mas fácil, isso nunca. Seja como for estar na sala com a presença dos alunos, mesmo mascarados, como se fôssemos todos ladrões, é reconfortante após meses de confinamento e ensino a distância.

Deus nos guarde e permita que as aulas se mantenham nestes moldes.

segunda-feira, outubro 05, 2020

O próximo episódio

Não sei bem, sinto-me dividido. Entre optimismo e pessimismo, o meu coração esfrangalha-se. Por um lado tenho fé na Ciência, por outro não acredito que este modo de vida dure muito mais tempo. Decerto morrerei antes do colapso fatal, a derrocada absoluta do sistema capitalista, mas sinto já o leve perfume da desgraça.

A Ciência tem limites? Poderá ser a Ciência a coisa mais próxima da Divindade, caso a Divindade seja mesmo uma invenção gerada no espírito humano pelo terror absoluto que é o da sensação de solidão cósmica? Pode a Ciência criar a Divindade?

Não sei bem, por vezes tenho a sensação de que a vida é coisa de laboratório, que os sentimentos que me animam são de origem artificial, que a História não é mais que um argumento criado por laboriosos escritores nem sempre brilhantes. Por vezes tenho a sensação que cada um de nós é inventado e que o Destino é apenas o próximo episódio.

terça-feira, setembro 29, 2020

Vanitas

 A t-shirt nem era particularmente bonita mas tinha a marca estampada no peito. A marca sim, representava algo glamoroso, era coisa de prestígio. O preço pareceu-lhe inflaccionado mas trazer aquele símbolo no peito, escrito e desenhado em letras garrafais, valia bem o dinheiro a desembolsar.

E lá veio ele para as ruas cobertas do centro comercial, impante no seu passo estudado, mostrando a todos o valor da sua pessoa. 

É um achado, um truque de marketing absolutamente genial: o cliente paga caro o direito a fazer publicidade gratuita à marca que ostenta nas proximidades do coração, qual pequeno outdoor ambulante. A vaidade tem parte de leão nas circunvoluções do sistema capitalista e nós somos como patinhos.

domingo, setembro 13, 2020

Mascarada

 Os dias que faltam para regressar à escola vão caindo no calendário. Não sinto nada de muito especial, nem receio, nem anseio, nem uma expectativa particularmente forte que me ponha o coração a bombar de modo especial. Mas tenho alguma curiosidade em relação às aulas com máscara.

Pelo que pude verificar nas reuniões preparatórias, em aproximadamente 100 alunos que irei ter este ano lectivo, conheço apenas um pouco menos de 10. Todos os outros serão meus alunos pela primeira vez e estarão com a cara tapada por uma máscara desde o primeiro dia. Imagino se os reconhecerei sem máscara.

Este é o factor mais estranho e potencialmente transformador da minha experiência como professor. Enquanto escrevia este post recordei a polémica que estalou aqui há uns anos em França, relacionada com o uso de burca nas escolas. Não é a mesma coisa mas anda lá perto, só que ao contrário.Exige-se agora uma coisa que, à partida, era anteriormente recusada e proibida. 

O bicho humano é um animal que se adapta.

domingo, setembro 06, 2020

Um anseio

Comunicar com exactidão aquilo que nos corre na cabeça é um objectivo impossível de alcançar. A nossa visão, a nossa sensação, a nossa pele, tudo se constitui em ruído que confunde a mensagem, tudo dificulta a percepção, tal como a visão, a percepção e a pele do receptor. A comunicação é uma coisa "suja", podemos apenas aspirar à transmissão de algo vagamente semelhante ao que pensamos.

O mal-entendido  é a base da comunicação humana. Para que haja alguma qualidade na transmissão de informação é necessário que exista vontade de perceber, uma espécie de amor pela comunicação, interesse genuíno, interesse humano. Isso não está ao alcance de qualquer um, exige inteligência emocional. Precisamos de apostar nisso, na aprendizagem das emoções tanto como apostamos na aprendizagem das ciências "exactas", tento quanto apostamos na aprendizagem das línguas; a emoção humana é uma linguagem complexa.

Precisamos de apostar na redução da intensidade do mal-entendido que está inerente a qualquer tipo de comunicação estabelecida entre seres humanos. O primeiro passo é fazer com que os responsáveis pelo estabelecimento dos planos de ensino/aprendizagem acreditem nisto e encontrem espaço no meio de toda a tralha curricular para a inteligência emocional. Não vai ser fácil.


segunda-feira, agosto 17, 2020

Saudade

Dizem por aí que a palavra "saudade" não tem tradução, que é a expressão de um sentimento muito português, uma exclusividade nossa, uma bizarria. Tretas! Quem ama e sente a distância sabe bem o que é "saudade". 

O coração mingua, a garganta aperta-se um nadinha, o peito parece ficar um pouco louco, o corpo atrapalha-se. Estas são algumas das sensações físicas provocadas pela saudade. Explicar a coisa no campo psicológico é mais estranho, mais arriscado. Será a saudade uma sensação física?

Talvez; talvez a saudade seja coisa física, talvez não haja explicação possível em termos... digamos... termos médicos. Penso que a poesia seja o meio mais eficaz para tentar explicar a saudade, penso que a saudade seja coisa do campo de uma medicina poética, coisa do universo da magia. 

Que digo eu? Na verdade a saudade não se explica, sente-se. E eu sinto uma grande, enorme, profundíssima saudade.

sábado, agosto 15, 2020

Sossego

Desejar sossego é como esperar um fantasma que nos visite ao pequeno-almoço. Um fantasma simpático, sentado à cabeceira da mesa, todo ele apenas um sorriso. O fantasma não vem, o sossego também não. O lugar prometia silêncio e isolamento. Contas furadas. Começam a chegar carros a este fim do mundo, com pessoas dentro. Pessoas faladoras e bem dispostas, ao menos isso. Ao que parece vão reunir-se para uma celebração religiosa na capela que fica ao lado da casa onde viemos parar desejando sossego. Seja feita a vontade do Senhor.

Trás-os-Montes é um território portentoso. Belo, a prometer selvajaria, montes a perder de vista, um céu azul enfeitado por nuvens muito brancas a perder de vista. Para aqui chegarmos percorremos auto-estradas, itinerários principais, itinerários complementares, estradas nacionais e, finalmente, estradecas esconsas, ladeadas por pinheiros e carvalhos, aldeolas de ruas desertas, finalmente a casa de xisto onde nos instalámos. Uma bela casa, lugar perdido, lugar isolado a prometer sossego. Até que começam a chegar carros, dos carros vão saindo pessoas, pessoas faladoras, pessoas bem dispostas. Ao menos isso.

Ouço dizer que o Senhor Padre chegará por volta das seis e meia. Caramba, nem aqui, no fim do mundo, Deus deixa um gajo em paz e afugenta o fantasma do sorriso. Da capela sobe um cântico a fazer-me recordar a igreja da minha aldeia beirã. O catolicismo é massa unificadora deste portugalzinho rural, perdido dentro de si próprio.

Está visto que desejar sossego é pedir demais a Deus Nosso Senhor.

sexta-feira, agosto 14, 2020

Sonhar não sonhar

O meu sonho seria não os ter, não ter sonhos, quero dizer. Poder não ambicionar nada de especial, apenas não provocar desastres. Sim, penso que se um génio saído de um garrafão me dissesse para eu expressar um desejo a ser magicamente atendido, só um, nem mais nem menos, eu diria: "desejo não causar desastres" e pronto, acho que teria criado as condições necessárias à minha felicidade e, decerto, teria poupado algumas outras pessoas a certas dores existenciais.

Isto aconteceria se, além de o garrafão ter um génio esquecido lá dentro, eu não tivesse sonhos. O problema é que não os consigo evitar, aos sonhos, quero dizer. Sim, porque evitar génios que habitam garrafões já eu sou capaz de evitar há muito tempo. Perderam muita magia embora não os tenha renegado para todo o sempre. Além disso é cada vez mais difícil encontrar garrafões, vem tudo em "boxes". Evitar sonhos implicaria viver em permanente estado de alerta e eu durmo como um anjinho, ou como uma pedra, depende da expressão escolhida para explicar que mal encosto a cabeça à almofada desligo imediatamente e durante umas horas. Quem dorme assim sonha de certezinha.

Está bem, eu confesso: perdi o foco do meu raciocínio, isto já dificilmente poderá fazer algum sentido. Ou, o caminho que estava a seguir levou-me para lugares que prefiro manter secretos e não dá para desenvolver mais esta historieta da treta. Ou ainda, um texto que começa com a frase que abre este texto não poderia nunca acabar de outra forma.

quinta-feira, agosto 13, 2020

Férias

Preparar a viagem, fazer as malas. 

Livros para ler, cadernos para desenhar. Canetas, lápis, aguarelas um pincel. Colunas de som, convém poder ouvir música caso esteja para aí virado. Ler, desenhar, ouvir música. Olhar a paisagem. Para pensar não esquecer de levar a cabeça.

Imagino dias suaves com o tempo a passar calmo e desinteressado. Espero que assim seja.


domingo, agosto 09, 2020

Rugas no cérebro

Ver a idade transformar-se em velhice: o corpo a curvar-se perante a imensidão do tempo, a mente perdida na lonjura da memória. Abandonamos o corpo, perdemos o espírito, tornamo-nos outra coisa, invólucros cujo conteúdo perdeu o prazo de validade. Envelhecer parece ser duro. Pelo menos presta-se à construção de frases tão pomposas como as que atrás ficam escritas. 

Pondero seriamente apagar este post, esquecer a coisa, mas não, que fique. Sempre poderá servir-me de memória quando começar a esquecer-me de mim e funcionar como marco ou fronteira. Para lá ficam os desertos do pretensiosismo. Para cá... para cá estou eu, perigosamente próximo de coisas que preferiria evitar.

quarta-feira, agosto 05, 2020

Antimania

Falar sem parar deixa marcas. No que fala, em quem ouve: zumba, zumba, zumba, blá, blá, blá, golpe sobre golpe, conversa ininterrupta, toma lá, dá cá, palavras, palavras, ficam marcas, com o tempo serão cicatrizes. Falar sem parar exige quem ouça o tempo todo?

E que dizer quando se dispõe do tempo todo para falar? Como ter assunto, zumba, zumba, zumba, sempre assunto de conversa, conversa inesgotável, blá, blá, blá, os ouvidos sangram de tristeza, os olhos desorbitam no espanto. A boca torce-se, contorce-se, como um verme guloso sobre a podridão de um cadáver, zumba, zumba, zumba, a conversa não pára, é como um rio, um ruído, um zumbido, um vento perdido que nunca encontra o fim do seu caminho e sopra, sopra, sopra.

Falar sem parar tem de deixar marcas, marcas no que fala, marcas em quem ouve. A mensagem é repetitiva e repetida até à exaustão, todo o dia, o mesmo tema, uma vez, outra vez, vai mais uma, sobra tempo que é preciso tapar. Tapar o tempo com palavras, blá, blá, blá, palavras como argamassa na betoneira, palavras como lama na torrente, como caranguejos no tsunami, vrrrrrrruuuummmm! Palavras que te invadem e violam, palavras que te ferem mas não matam, assim é.

De tanto ouvires a mesma merda acabas por acreditar na merda que te dizem todo o dia, zumba, zumba, zumba, ficas tonto, ficas sem saber se já acreditavas naquilo ou se te enfiaram aquilo pela cabeça dentro, pela alma abaixo, blá, blá, blá, por favor não deixes que te matem a razão, não emprenhes pelos ouvidos, não deixes crescer dentro de ti esse monstro da estupidez. Desliga: zumba, zumba, zum! Volta as costas, vai-te embora: blá, blá, blá... bl... á... á... á... não aceites esses golpes, não queiras essas cicatrizes.

Ausência

Acontece de cada vez que regresso à cidade onde vivi até aos meus 18 anos de idade. Venho com muito tempo de intervalo entre cada visita e, como seria de esperar, não percorro todos os trajectos que preencheram o meu passado. É por isso que, de vez em quando, me acontece esbarrar com lugares que, estando ali mesmo, à minha frente, são lugares que já não existem.

Hoje vi o lugar onde já não existe a casa onde habitou o meu avô. Já lá não está o gradeamento, nem o portão, nem as escadas gémeas que subiam até ao patamar da porta com o batente de ferro em forma de mão. Já lá não estão as japoneiras, nada resta do meu passado. Agora há um prédio em construção com operários a suar sob um sol abrasador, tudo isto produz um estranho silêncio dentro de mim.

Fiquei estúpido, a olhar. Tirei uma foto com o telemóvel que enviei ao meu irmão com a legenda: "A casa do avô Mário!"

O meu irmão não respondeu.

domingo, agosto 02, 2020

Os bichos

Cada vez mais sinto que a espécie humana é uma espécie usurpadora deste mundo em que vivemos. Tomamos tudo o que podemos violentando a natureza, assassinando outras espécies animais, alimentando-nos delas com prazer; pretendemos acreditar que estamos no nosso direito, que Deus criou o mundo para proveito da Humanidade fazendo do planeta Terra uma espécie de reserva natural para o Ser Humano. Talvez Deus nos visite de tempos a tempos para nos observar como fazem as nossas crianças em visita ao jardim zoológico.

A nossa dimensão animal é, de todas as que compõem o espírito, a mais expressiva. Sensibilidade e inteligência são meros adereços; somos bichos. O senso comum acredita que somos os únicos bichos inteligentes mas já percebemos que isso não é verdade. Então, se não temos o exclusivo da inteligência, justificamos a nossa existência com o conceito de civilização: somos os únicos civilizados, o que é, igualmente, muito discutível. De cada vez que percebemos ser impossível olharmo-nos ao espelho sem ver um monstro tentamos uma nova maquilhagem que nos dê um aspecto menos odioso. Trabalho árduo e inglório.

Que nos resta senão aceitarmos que somos bichos?

sábado, julho 25, 2020

Irritação e fúria

Não sei se a ti também te acontece, caríssimo leitor, não sei se te irritam profundamente os noticiários incendiários, literalmente incendiários, nos quais se fala do medo, da tragédia, do terror causados pelos fogos de Verão. De súbito um Portugal anónimo, perdido dentro de si próprio, surge em nossas casas na moldura da TV.

São aldeias esquecidas, habitadas por pessoas curtidas pelo sol e pelo frio; mulheres rijas e homens de boné com as faces semelhantes a cascas de árvore; aldeias invadidas pelo fumo, pelos bombeiros e por aqueles que me irritam à quinta casa: os repórteres de TV incumbidos de nos falar em directo. Não consigo aturá-los nem um bocadinho. Se tenho o comando na mão salto imediatamente para outro lado, se alguém insiste em assistir a esses directos, saio da sala o mais depressa que me é possível.

Os directos irritam-me, de um modo geral, mas os dos incêndios enfurecem-me. Sinto ali a marca do vampiro. As pessoas embasbacadas, atordoadas, tentando encontrar uma forma de combater a adversidade e um caramelo qualquer, de microfone em punho a fazer aquela excelente pergunta: como é que se sente? Foda-se! Isso é coisa que se pergunte, em directo, a uma pessoa desesperada?

Quando não estão a perseguir desgraçados fazem eles o papel de desgraçadinhos. Plantados defronte à câmara de filmar com fumo e fogo no enquadramento, ao fundo, debitam tolices e informação, as mais das vezes, redundante, desinteressante, caninos cravados na jugular da catástrofe a chupar, a chupar, a chupar. Não consigo aguentar tanta nojeira.

domingo, julho 19, 2020

Mitologia de taberna

A Dúvida é meia-irmã da Consciência, geradas na união da mesma mãe, a Verdade, com pais diferentes, ambos incógnitos e arredios, como tantas vezes acontece, pais que um dia foram comprar fósforos para acenderem o cigarro no fim da refeição nocturna e nunca mais voltaram. A Verdade é assim mesmo, enganada uma e outra vez por parceiros sedutores e pouco honestos. Cabrões aproveitadores.

E lá cresceram juntas, as miúdas, num lar problemático, discutindo amiúde, discordando por tudo e por nada. A Dúvida sempre insegura, a Consciência descobrindo a cada passo princípios orientadores do pensamento mas nunca capaz de os demonstrar de forma inequívoca. Pobre mãe, a Verdade, hesitante na educação das suas crias, amando-as por igual, eternamente.

Esta abstrusa mitologia de taberna é, toda ela, protagonizada por personagens femininas e quase sempre discutida e enriquecida por homens bêbados que se distraem e confundem, observando o Mundo através de lentes distorcidas, mais propensas a produzir cegueira que capazes de definir os contornos das coisas com um mínimo de rigor e clareza.

terça-feira, julho 14, 2020

O futuro até pode já ter acontecido

O futuro começa a tomar forma. O "sonho americano" revela-se "notícia falsa" e o "pesadelo chinês" parece ganhar força, alastrando no mapa planetário. Onde se encaixa a União Europeia nesta ordem mundial que se redesenha? Seja qual for o modelo onírico prevalecente será sempre o dinheiro a ditar os contornos definitivos da coisa social.

Deus reaparece em força. Ele sempre andou por aí. Já se sabe que os americanos confiam nele (afirmam-no nas notas de dólar), que os iranianos obedecem à sua lei, que os turcos são um povo devoto e os brasileiros acreditam que Deus é natural do Rio de Janeiro. Sabe-se também que Paulo Portas é confidente da Virgem Maria, que Putin se vem convertendo em ícone russo e que Israel é o povo escolhido e tudo o que faz é mero reflexo da vontade inquestionável e inatingível de Jeová. Esta acumulação patética de hipocrisia e agressividade moral tem muita influência na definição dos traços carregados que contornam o futuro.

As coisas acontecem num determinado momento, o ponto exacto da quebra, da transformação de algo numa outra coisa. Pode ser amanhã, daqui a dez anos, pode ter sido agora mesmo ou até, algures, no passado sem que nos tenhamos apercebido da importância radical de um qualquer acontecimento que desviou o futuro daquilo que imaginávamos que viria a ser. O tempo do comboio a vapor acabou há muito. Hoje dirigimo-nos para o nosso destino a bordo de um comboio-bala desenfreado. A chegada à estação não se adivinha auspiciosa.

À medida que vou escrevendo estas palavras uma pergunta vai-se formando no meu espírito inquieto: e se o futuro já tiver acontecido?

quarta-feira, julho 08, 2020

Pretensão e água-benta

Ai, as palavras (suspiro). Como podem elas enredar-nos o entendimento e pescá-lo como se fosse carapau do gato! A comunicação feita assim, à distância de um teclado, na solidão de um ecrã, ganha muitas vezes a rigidez de uma estátua de mármore plantada num jardim, a imitar vagos ecos de uma antiguidade desconhecida.

A frase anterior, por exemplo, que coisa pomposa e, temo bem, confusa como o caraças. Na minha cabeça faz sentido, a metáfora até funciona, mas tenho a sensação que para ti, amigo leitor, possa não se parecer com nada. Ou talvez ganhe um significado inesperado, o seu sentido a escorregar-me da ponta dos dedos como uma enguia furtiva. São palavras.

Queria eu dizer que a comunicação a distância, sem presença física, se presta a parecer algo que não passa de cópia farsola de uma conversa verdadeira e que, ainda por cima, quando rebuscamos as palavras, poderá tornar-se pretensiosa.

Lá no fundo é o que este post é: pretensioso. Mas não era para ser, garanto-te, quando comecei a escrever o texto não fazia a mínima ideia de que iria acabar, precisamente, aqui.

terça-feira, julho 07, 2020

A Fé e as máscaras

Estou confuso. Não sei se estou confinado ou antes pelo contrário. Saio de casa com a máscara sempre à mão, esguicho gel na entrada das lojas (já me caiu num pé, já por várias vezes falhei o alvo) e também à saída. Chego a casa e descalço-me, lavo as mãos e pronto. É tudo. Novas rotinas.

Fico sempre com a sensação de que estes hábitos que se vão entranhando têm uma eficácia limitada mas, seja como for, evito ignorá-los. É como aquele dito de quem não acredita em bruxas.

O distanciamento social vai funcionando. Agora há em todo o lado marcas no chão. "X" vermelho - não passar; seta verde - avançar por aqui; linhas amarelas - stop, é fronteira intransponível, muro imaginário, limite a respeitar. Tudo isto me parece um tanto apatetado mas respeito. Socialmente sou um tipo atreito a regras, mesmo aquelas que me deixam na dúvida.

Acredito piamente que tudo isto irá acabar um dia. Tenho fé.


quarta-feira, julho 01, 2020

Complexo da avestruz

Enquanto os sinais de desmoronamento civilizacional se adensam à nossa volta nós ansiamos regressar à normalidade, um novo "Ó tempo, volta pra trás" sem a Severa na história mas com o desejo de que o sol nos ilumine a paisagem que se estende para o lado de lá da janela. É o "novo normal".

Mas, para um "novo normal" terá de existir uma nova anormalidade, como é óbvio. É o Yin e o Yang, o Tom e o Jerry, Deus e o Diabo, a velha história da beleza do mundo, o equilíbrio entre luz e treva, o risco de habitar na penumbra. Será a existência da vida enformada naquela merdice do "eterno retorno"?

Resta-nos a velha táctica da "fuga para a frente"? Fugir para trás, ao que parece, está fora de questão. Há ainda imensos areais com muito espaço para enterrarmos as nossas cabeças.

domingo, junho 28, 2020

Haja saúde

Ele há coisas que acontecem, outras coisas, nem por isso. Há perguntas que me apetecia mesmo, mesmo, mesmo fazer mas que, por razões tão obscuras que me envergonham, prefiro calar e esquecer. Esquecer o quê? De que perguntas estaria eu a falar? Está esquecido.

Não sei se é sinal de crescimento e, sendo, crescimento do quê? A cada dia que passa, cada semana, cada mês, desde o início do confinamento, sinto uma espécie de desencanto que me vai pavimentando o coração até o aplanar e endurecer com uma crosta de descrença. Descreio da nossa capacidade de regenerar a sociedade, da nossa capacidade de assinar um armistício com o planeta, descreio da nossa marcha em direcção ao futuro de tal modo estamos encerrados nos preconceitos que nos construíram o passado.

Será isto um reflexo de aproximação à terceira idade? Esta pergunta atrevo-me a fazê-la mas a resposta é iludida por uma outra questão: o que é a terceira idade? Olho para a terceira idade como um reflexo da idade de reforma, a cada ano que passa ela avança mais uns meses, mais uns anos e nunca mais chega. Mas, o facto indesmentível, é que estou cada vez mais próximo dela (da terceira idade, da reforma), assim Deus me dê saúde e não me interrompa o contrato antecipadamente nem me ponha em lay off com alguma doença daquelas que, não nos matando, nos incapacita por tempo indeterminado.

Esta coisa da pandemia veio confundir a minha alegria de viver, aumentar as dúvidas, azedar certezas. A única coisa que não consegue incomodar é o amor que sinto pelas pessoas que me são mais próximas. Haja saúde!

terça-feira, junho 23, 2020

Discurso indirecto

Há gajos a quem se dá um bocadinho de corda e vão por aí fora: falam, falam, falam, principalmente se o tema forem eles próprios. Falam do que sabem e do que não sabem desde que isso lhes sirva para polirem um bocadinho mais a ponta do seu nariz. Há gajos deslumbrados consigo próprios. Emproados, vaidosos, convencidos de que há dentro deles um poço sem fundo prestes a ficar pleno de sabedoria. Mas, não o somos todos? Deslumbrados com a imagem que fazemos de nós próprios? Sábios incompreendidos? Sei que alguns têm baixa auto-estima mas esses são uma minoria. Serão? Espera aí, paciente leitor, que faço eu? Estou com a corda toda! E falo, falo, falo, pouco dizendo que se aproveite. Ainda por cima o tema não sou eu próprio... ou serei? Escrevo estas coisas para me convencer de que há algo de substancial no meu pensamento? Isto é o meu pensamento? Se não me ponho a pau dou tal polimento à ponta do meu nariz que ainda fico ofuscado pelo reflexo da luz a incidir sobre ele. Calo-me. Paro de escrever. O melhor será reflectir sobre o assunto. Calado.