terça-feira, fevereiro 27, 2024

Saudade

     Por vezes sinto-me tão próximo de qualquer coisa semelhante ao que imagino que possa ser a verdade que a felicidade dentro de mim quase ocupa algum espaço. É difícil de explicar por se tratar de uma sensação cá muito perdida nas profundezas do meu ser mas sei que é uma coisa real, de outro modo não me aperceberia da sua presença, da sua fisicalidade.

    Isto acontece de surpresa. Não posso dizer que acontece quando menos se espera pois estaria a mentir e a mentira não faz parte da minha prática. Quando sinto necessidade de mentir costumo ficar calado. Omito. Ou tento omitir, nem sempre resulta. A mentira é um embaraço. Mas, dizia eu, isto acontece de surpresa.

    É uma coisa que não se força, não se busca, deixa-se acontecer e é uma felicidade. É fugaz, é transitória; na maior das parte das vezes, conforme vem assim se vai, sem deixar vestígio nem registo. Fica apenas uma espécie de saudade. Acho que é isto, a saudade. Que a saudade é isto.

sábado, fevereiro 24, 2024

Escuridão

     Há coisas que servem apenas para existir. Não têm aparente utilidade prática. Limitam-se a cumprir o seu papel. Por isso mesmo encontram-se frequentemente em vias de extinção.

    Incansáveis, procuramos o espírito da coisa embora saibamos que a coisa não tem espírito, que a coisa, na maioria das vezes, se esconde dentro de nós.

    Cercados por alcateias de monstros ávidos de riqueza assistimos impotentes à desolação da paisagem.

quarta-feira, fevereiro 21, 2024

Tempo é dinheiro

   Os debates entre os candidatos às próximas eleições legislativas e os respectivos comentários foram um espelho do estado a que chegámos. Assistimos a uma sucessão de programas televisivos encarados como se se tratasse de mero entretenimento, espartilhados por espaços comerciais. Aquilo que os "bonecos" pudessem dizer foi sempre acessório e utilizado apenas para alimentar os inacreditáveis espaços de comentário que se lhes seguiam. Os "comentadores" avaliavam as prestações dos candidatos como se fossem mestres-escola vigiando o conhecimento, a postura e a atitude de alguns fedelhos.  

    Veio-me à memória a ideia pré-histórica de que se vendem candidatos como se fossem sabonetes. Nos dias que correm os candidatos ajudam é a vender sabonetes. Desde que nos transformámos em consumidores, deixando de ser cidadãos, que a publicidade se tornou uma espécie de Inteligência Artificial de mercearia. Acéfala e indiferente aos destinos da Comunidade e do Ser Humano, como é de esperar de uma IA, a publicidade transforma tudo em negócio e determina o foco e a duração dos tempos de atenção e concentração a que temos direito. O que importa eleger A, B ou C? Desde que o tempo continue a ser dinheiro estará tudo bem.

terça-feira, fevereiro 20, 2024

Seja

     Não quero que eles sejam como eu. Só não gosto que sejam como são. Que vivam como lhes for mais confortável. Por mim, tudo bem. Mas não me venham dar ordens nem me venham impor as suas leis merdosas.

segunda-feira, fevereiro 19, 2024

Ser como o cuco

     Reflectir sobre o tempo é uma actividade perfeitamente dispensável. Para quê matar neurónios a tentar compreender os segredos do tempo quando temos o relógio incrustado no interior da cabeça, no interior do peito, nas palmas das mãos e nas solas dos pés? 

    Transformamo-nos em relógios. Desde o dia em que nascemos até ao dia em que vamos a enterrar trabalhamos laboriosamente nesse sentido, o nosso sonho é virmos a ser mecanismos complexos e exactos. Se virmos bem, a cegonha não traz os bebés de Paris mas sim algures do território suíço. 

    Somos como os cucos: cúcú, cúcú! Deitamos a cabeça de fora a horas certas e fazemos um sorriso de circunstância. Avançamos e recuamos, ensaiamos uma rotina diária ordenada. Cúcú, cúcú. Havemos de nos transformar em algo que não nos dê o trabalho insano de pensar. Cúcú, cúcú.

    Os cucos insinuam-se, põem os seus ovos nos ninhos alheios e vão meter nojo para outro lado. Os cucos são como os fascistas e os fascistas são como os cucos. Os cucos põem ovos nos ninhos alheios, os fascistas põem mentiras nos cérebros alheios. Ovos de medo que, quando eclodem, trazem ao mundo o terror.

    Nunca pensei poder pensar o que acima escrevi. Ou ter-me-ei limitado a escrever estas palavras, de um modo mecânico, quase automático, numa atitude surrealista? As ideias que ficam expressas não eram minhas, andavam por aí a pairar e, quando escrevi o texto, desceram à Terra na única forma possível: esta. Exactamente esta!

    As ideias são como ovos de cuco...

domingo, fevereiro 18, 2024

Tempo é dinheiro

     Muito se tem falado do facto de os debates entre candidatos às próximas eleições legislativas serem curtos e apressados enquanto os espaços de comentários que se lhes seguem são prolongados horas a fio. Aí, os comentadores discorrem sobre o que foi e não foi dito naquele intervalo de tempo no qual os candidatos ocuparam o ecrã. E atribuem notas, como se fossem mestres-escola.

    Afinal de contas é tudo, debates e comentários, espartilhado por espaços comerciais opressivos que sufocam a palavra e o pensamento humanos.A Publicidade tornou-se uma espécie de Inteligência Artificial de mercearia, acéfala e indiferente aos destinos da Comunidade e do Ser Humano, que asfixia os nossos sonhos e os transforma em negócios, tabelas de Excel e outras coisas mais ou menos dispensáveis à nossa felicidade. O que importa eleger A, B ou C? 

    Desde que o tempo continue a ser dinheiro estará tudo bem.

sábado, fevereiro 17, 2024

A fronteira

     Ando um bocado desiludido. Que a decência não é o nosso forte enquanto sociedade, isso eu já sabia e, imagino, também tu já tinhas percebido. O que me deixa cabisbaixo é perceber, uma e outra vez, que a indecência não tem linha que lhe limite o nível mais rasteiro. Quando essa linha atinge o chão há sempre quem venha com a sua pá escavar o buraco que levará essa linha mais fundo e mais baixo e mais e mais e mais.

    Estará no Inferno a última fronteira da filha-da-putice?

sexta-feira, fevereiro 16, 2024

A dúvida

     Gostava de caminhar entre as pessoas. Gostava de as olhar discretamente. Uma vez por outra estabelecia contacto ocular mas desviava rapidamente a atenção para qualquer outra coisa, olhar era muito diferente de ser olhado.Talvez pudesse afirmar que amava os seus semelhantes, não tinha a certeza disso. Não absolutamente.

    

terça-feira, fevereiro 13, 2024

Um muro

     Para lá do muro havia uma multidão. Deste lado, seis ou sete guardas armados bastavam para manter as coisas no lugar. O muro era intransponível, estava-se em segurança. A vida podia continuar como habitualmente. A multidão não chegava a ser vista, era ignorada. Velhos, novos, bebés ou crianças, homens ou mulheres, multidão ignorada. Deste lado do muro havia muitos pobres e alguns ricos mas a fome era disfarçada, nalguns casos era até encorajada (como, por exemplo, entre os eremitas e os modelos de passerelle). Para lá do muro, muro coroado com arame farpado, a fome tornara-se um modo de vida.

    Rotina e desespero.

    O que fazer com aquela multidão? Ignorá-la. Sim, mas ignorá-la não faz com que desapareça. Não? Temo bem que não. Se olhar por cima do muro verá que a multidão não só permanece no local como aumenta a olhos vistos. (silêncio) Mande chamar o responsável pelos guardas.

quinta-feira, fevereiro 08, 2024

A arte de engolir sapos

    Já vi muita gente a engolir sapos. Uns gesticulam como marionetas e fazem estranhas caretas, outros vão largando impropérios incompreensíveis (pois quem consegue dizer algo que faça sentido com um sapo enfiado na boca?), outros ainda ficam hirtos como estátuas de mármore e vão metendo a coisa para dentro com ar de quem está aflito.    

     A arte de engolir sapos não está ao alcance de qualquer um. Para engolir um sapo e manter uma pose elegante é preciso estar-se bem seguro de si. É preciso saber que o sapo será digerido e, fazendo fé absoluta na Lei de Lavoisier, transformar-se-à numa outra coisa. A arte de engolir sapos implica ir pensando no futuro enquanto se digere o bicho. 

    E, mais tarde, o futuro chega e o sapo é já uma outra coisa.

  

quarta-feira, fevereiro 07, 2024

Notas soltas

     Começou o arraial dos debates televisivos da campanha para as eleições legislativas de 10 de Março. É um estranho espectáculo. 

    Tento compreender um pouco melhor a obra de Bosch. Quanto mais atento nela mais me convenço de que o mestre se divertiu muito, imaginando monstros patuscos num mundo habitado por monstros a valer. A pintura de Bosch é uma espécie de higiene. 

    Ter a percepção clara da grandeza de uma ideia deve ser um fardo pesado. Ou se guarda bem guardada, ou se perde ou, na pior das hipóteses, tenta-se partilhá-la. Feita a partilha resta a espera e, finalmente, o embate. Será coisa violenta? 

    Observo os velhos (os mais velhos, para ser preciso) na tentativa de perceber o que me espera num futuro não muito longínquo. Vejo-os mas não os sinto. O processo é lento. Talvez um dia lá chegue.

quinta-feira, fevereiro 01, 2024

Trabalhar como Adão

    Tenho a sensação que há em Portugal uma ideia perversa relacionada com o trabalho. Entre nós, trabalhar está associado a sofrimento. Se não sofres com a actividade que desenvolves, então é porque aquilo que fazes não pode ser considerado na categoria de trabalho. Trabalho é sinónimo de sofrimento.

    Estará esta perversão relacionada com o mito da expulsão do Paraíso? Afinal de contas Adão foi condenado a sofrer para o resto dos seus dias, regando o solo com o suor do seu rosto num esforço infinito para sobreviver. Ninguém o mandou trincar o Fruto Proibido. 

    Assim, quem não sofre com o trabalho não é flor que se cheire por não honrar o desgraçado que serviu de semente à espécie que somos. O verdadeiro descendente de Adão é aquele que pena neste mundo como se penasse no Inferno.