quarta-feira, maio 30, 2012

Expor-se

 3 momentos de transformação de energia criativa até à suspensão exposta do objecto intitulado "Adeus Zé Augusto"


A palavra "exposição" tem muito que se lhe diga.

Diz o dicionário que "exposição" é mostrar algo a alguém publicamente. Mas não será necessário pensar muito para percebermos que a definição peca por redutora.

A exposição de crianças, vulgar na Idade Média, um pouco rara nos tempos que correm, confere outra dimensão ao vocábulo.

A relação com a fotografia está a perder-se nesta era digital. Até há bem pouco tempo atrás, exposição tinha a ver com a velocidade do obturador. Agora isso faz pouco sentido.

Também nas areias da praia (ou nas caminhadas sob a inclemência do astro-rei), exposição é outra coisa. Altera a cor da pele e provoca sensações potencialmente irritantes.

"Exposição" é uma palavra e, como tal, tem a plasticidade de uma pastilha elástica. Mastiga-se, sopra-se, volteia-se no céu da boca e cospe-se quando já perdeu o sabor.

Expor é mostrar. A natureza da exposição depende daquilo que se expõe. No caso de uma exposição de arte o que se está a mostrar?

Mostra-se o resultado de uma actividade, o trabalho transmutado em objectos. Mas, na verdade, o que está ali? Eu digo: energia!

Gosto de pensar que, quando expomos arte, oferecemos energia. Uma energia transformada, mas energia; do mais puro que possamos imaginar!

Essa energia gera força. Uma força tanto maior (ou menor) quanto aquela que o observador for capaz de cruzar com o objecto exposto.

A arte é energia, disso não tenho a menor dúvida, mas nem todos somos capazes de o compreender, embora todos estejamos aptos a exercer essa maravilhosa troca de energias invisíveis entre o que vemos e o que trazemos dentro de nós. O resultado é aquilo que designamos por "fruição".

Termino abruptamente (que o texto tende a alongar-se de forma complexa) dizendo que expor-se é como convidar alguém a colocar a ponta da língua numa tomada de electricidade. Nem todos estão dispostos a fazê-lo ou são suficientemente loucos para o experimentar.

No entanto todos somos capazes de perceber que enfiar a língua numa corrente eléctrica será, decerto, uma experiência fora do comum, apesar de, eventualmente, mortal.

É bonito.

terça-feira, maio 29, 2012

Pecados ligeiramente mortais

vários cidadãos exemplares durante a montagem da coisa

O título deste post é também o título da exposição de pintura e colagem da minha autoria que está, a partir de hoje, patente ao público no bar do Ivo, no Fórum Municipal Romeu Correia, em Almada.

 Quem conhece o local sabe que é do melhor (apesar das exposições que o Cidadão Exemplar ali organiza)  e que o ambiente é tão cool que até ofusca o espírito.

O bar do Ivo, só por si, merece repetidas visitas. Com esta exposição, passo a autopromoção, tens mais uma razão para por lá passar.

(ver mais aqui)


sábado, maio 26, 2012

Pequena Chave Negra

 Pequena Chave Negra
colagem em photoshop
2012

Quantas vezes pudeste olhar o outro lado desse muro? 
Quando quiseste tu fazê-lo?
Quantas vezes viste tu o gajo que não estava nesse espelho? 
Onde andas quando mais precisas de te encontrar?
Já encontraste a pequena chave negra?
É no chão que fica o que resta dos teus passos.

sexta-feira, maio 25, 2012

Velhos

Para que queremos nós mais tempo? Os avanços e descobertas científicas, nomeadamente no campo da medicina, têm permitido que a vida humana se prolongue muito para lá do que, à primeira vista, seria a vontade divina.

Somos cada vez mais velhos e o que ganhamos com isso? Esta capacidade anti-natura tem trazido uma mão-cheia de novos problemas de solução impossível. Vivemos mais tempo, logo consumimos mais recursos.

Consumimos mais recursos económicos, mais recursos alimentares, mais tudo, durante mais tempo. Por outro lado o nosso corpo consome-se também e surge o aumento sustentado da senilidade, da fraqueza dos ossos e dos músculos, da capacidade de visão que se apaga progressivamente.

Disparam as despesas médicas em direcção à estratosfera!

Tenho a sensação de que, nos tempos de crise económica que atravessamos, esta velhice toda começa a ser encarada como algum embaraço.

Se a Economia comanda a vida (e não o sonho, como diz aquela canção) qual a justificação que pode sustentar esta aposta, aparentemente descabelada, no prolongamento da vida até onde formos capazes de a prolongar, sem que isso signifique lucro de nenhuma espécie?

Há aqui qualquer coisa que não bate certo. A menos que, afinal, estejamos a cagar para a Economia e o amor pela vida humana ainda seja o valor supremo da nossa existência. Mais do que um Orçamento de Estado equilibrado e níveis interessantes no crescimento económico, estaremos nós empenhados em fazer da felicidade o objectivo primordial do tempo que andamos por este planeta?

Isto sou eu a sonhar, mas já não é o sonho que comanda a vida. Pois não?

sábado, maio 19, 2012

Suspensões



Tenho visto uns filmes.

Do chato ao banal, passando pelo estonteante, o perturbante e o extraordinário, de tudo um pouco tenho absorvido na escuridão luminosa do cinema.

Ontem fui apanhado de surpresa.
Fui ver Nana e Rafa, dois filmes, o primeiro mais ou menos longo, o segundo decididamente curto. O segundo passou antes do primeiro.

Quando Rafa segura ternamente o sobrinho e tudo está por desvendar (ou não?) o filme de João Salavisa, vencedor do Urso de Ouro para melhor curta-metragem na edição de 2012 do Festival de Berlim, fica em suspenso, o ecrã enegrece e... o espectador fica com muita história por contar, muita história para inventar.

Um filmezinho estranho que, tal como eu e tantos outros, vive nas costas do Cristo Rei e viaja para a sordidez das ruas da capital para ali não acabar.

Ainda o espectador não está refeito da súbita suspensão da narrativa de Rafa, já se encontra perante Nana, uma menina tão pequenina que mais parece um milagre a acontecer porque tem de ser.

Entrado no mundo rural do filme francês, senti-me a planar (não sei porquê, ou talvez saiba mas não diga, lembrei-me de A Árvore da Vida, de Terrence Malick) e por ali fiquei.

A narrativa é errática, a sequência das acções estrambólica, o filme desprende uma estranha magia que nos mantém expectantes até que... tudo fica em suspenso e, mais uma vez, dou por mim a tentar contar uma história a mim próprio.

Sinceramente, quando saí da sala, vinha meio anestesiado. Mais nada. Não sei se ainda estou sob o efeito da anestesia.

sexta-feira, maio 11, 2012

Banalidade extraordinária

Há coisas extraordinárias. Chamamos essas coisas de coincidências. Serão coincidências, mas, quando nos apercebemos delas, são coisas extraordinárias.

Há pouco, durante uma aula de desenho, uma aluna folheava um livro de História da Arte. Parou numa página que reproduzia A Última Ceia, de Leonardo da Vinci. Comentário para aqui, comentário para ali, lembrei-me de que, na minha infância, era muito comum haver reproduções dessa imagem. Todas as casas ou, pelo menos, a maioria dos lares, tinham uma dessas reproduções pendurada na parede da sala onde se tomavam as refeições.

Na minha memória formou-se a imagem de uma reprodução em baixo relevo, de latão. Não me recordo exactamente onde estava o quadro dessa minha memória (seria em casa dos meus avós paternos?) mas senti uma certa nostalgia. Apesar da sua singeleza extrema e absoluta vulgaridade, recordei o objecto com alguma saudade. Apercebi-me de que terei passado muitos minutos, horas, decerto, a contemplá-lo.

A conversa derivou para outros temas, a aula terminou. Quando saí da escola desci a rua, como faço quase todos os dias. Lá mais ao fundo, no passeio do outro lado da estrada, um casal debruçava-se sobre um objecto rectangular de razoáveis dimensões. Apercebi-me que se tratava de um quadro.

O homem arranjou maneira de lhe pegar e o casal retomou o passo, dirigindo-se para a passadeira. Eu vinha do outro lado, em direcção ao mesmo local de atravessamento e, quando finalmente consegui estabelecer contacto visual com o pesado objecto que o homem transportava, caraças, era uma daquelas últimas ceias, como a da conversa e da minha memória!!!

Tantos anos sem me lembrar daquilo e, logo hoje... estas coisas acontecem, são parte da banalidade, eu sei. Mas, quando acontecem, a banalidade transforma-se em algo extraordinário deixando de ser o que era, passando a ser outra coisa. Só não sei que coisa é essa.

Senti um arrepio e uma leve vertigem, quando me cruzei com o casal e a sua última ceia, a meio da estrada. Agora a coisa já perdeu o significado. Mas, penso, perdeu-o porque não fui capaz de perceber o que significa uma situação deste género. O mais certo é não significar nada de especial, ou então... não.

terça-feira, maio 08, 2012

Mais filosofia de tasca

 Natureza-morta da autoria de Goya

Há coisas que não consigo perceber se estão vivas ou apenas mais ou menos. Porque será que os falantes de língua inglesa designam por "still life" aquilo a que nós, em Portugal, chamamos "natureza-morta"? A pergunta pode ser colocada na ordem inversa que se mantém a estranheza da situação.

"A minha pátria é a língua portuguesa"; Fernando Pessoa aparece sempre que me apercebo dessa inquestionável realidade: somos muito mais aquilo que dizemos que aquilo que comemos. Isto porque dizemos aquilo que comemos e não comemos aquilo que dizemos.

Posto isto estou exactamente na mesma, a reflexão sobre os assuntos acima registados não me traz nada de novo. Sinto-me como um cão que tenta morder a própria cauda apenas porque não lhe parece haver nada mais interessante para fazer.

Assim sendo fico por aqui. Até breve.

sábado, maio 05, 2012

Como de costume (uma pequena esperança)

 Mundo maravilhoso (colagem que podes ver aqui)

Após a pequena caminhada que me leva até à porta da escola (hoje a pairar ao som de Frank Zappa, "Peaches en Regalia") tomo o café do costume, no balcão do costume. Nas mesas as velhinhas do costume que já me cumprimentam e a quem retribuo o "bom-dia", mais mecânico que simpático.

Sentados junto à porta os alunos do costume, fazendo tempo para chegarem atrasados à aula, mais daqui a uns minutos, como de costume.

Vou à papelaria ao lado comprar o jornal, como sempre. Entre a porta da papelaria e a da escola tenho tempo apenas para ver as letras gordas e a foto da capa, uma foto a cores, bem escolhida, como de costume.

"Número de empresas em incumprimento aumentou em 2011", "Neonazis gregos prometem "varrer" os imigrantes", "Atrasos na medicina legal estão a parar processos judiciais", "Jardim empresta 25% das verbas de resgate a sociedades falidas". Só notícias de merda.

Na aula os alunos parecem meio lá, meio cá, como alices hesitantes entre beber o liquido que faz encolher ou mastigar um pouco do biscoito que faz aumentar. Vem-me à memória a frase da canção de A Naifa que diz "vivo do que me dão, nunca falto às aulas de esgrima, todos os dias agradeço a Deus esta depressão que me anima". Tenho de sorrir. Mais tarde saio para o intervalo.

Levo o jornal mas não me apetece abri-lo. Isso não é costume. Dou por mim a pensar que,se calhar, fazia melhor se não lesse o jornal. As notícias são deprimentes, dão a impressão de que o meu mundo se está a desfazer lentamente, a dissolver-se mais no tempo que no espaço, como açúcar numa chávena de café tão amargo que não há nada capaz de o adoçar.

Seria eu mais feliz (e eu imagino-me um gajo muito feliz) se dedicasse mais tempo à literatura? Seria eu mais feliz (eu sei que sou um gajo, pelo menos, medianamente feliz) se dedicasse mais tempo a produzir imagens que têm o condão de me levar daqui fora, que me fazem viajar nem sei bem como? Acabo sempre por regressar aqui, regresso agora.

E se me alhear do mundo e daquilo que imagino ser a realidade? E se me desinteressar da narrativa oficial que me intoxica com notícias venenosas? O que poderá acontecer?

Se eu não ler o jornal como será a capa de amanhã? Talvez as letras gordas tragam escritas coisas simpáticas. Se não ler não vou saber e pode ser que as coisas aconteçam de outra maneira. Há sempre uma pequena esperança que, como suspira o povo, é sempre a última a morrer. Mas morre.

quarta-feira, maio 02, 2012

O bom e o bonito

Já foi na semana passada, se bem me lembro, que assisti à projecção deste filme. Uma experiência muito reconfortante, posso dizer sem que me trema a alma nem se me descaia a postura intelectual. A fotografia a preto e branco cria sempre em mim a sensação de estar a assistir a cinema verdadeiro, mais do que o incomodativo 3D da moda, dos óculos de plástico e da bela pipoca. Talvez seja como diz Paul Auster em O Livro das Ilusões, talvez o preto e branco crie a sensação de estarmos perante algo que recria a realidade ou lhe confere uma outra dimensão, algo que não a imita simplesmente, como acontecerá com a cor e (acrescentamos nós em pleno século XXI) com o 3D da moda, dos óculos de plástico e da bela pipoca. Ao invés de pretender trazer a realidade para dentro da sala de cinema, Tabu oferece-nos cinema. É tão simples! E essa oferta é feita com tal plenitude e de modo tão sincero que damos por nós mergulhados num imaginário de tremenda beleza. Muito sinceramente, recomendo a todos os que tenham a oportunidade. Ver Tabu, o filme de Miguel Gomes, limpa muita porcaria que possamos ter agarrada aos olhos. Vão por mim, caríssimos, acreditem e vejam para poderem acreditar naquilo que vêem.

terça-feira, maio 01, 2012

Um comentário a um comentário

A propósito do post anterior o Rui Sousa deixou um comentário que me pareceu digno de passar para este lado do 100 Cabeças (não é a primeira vez que o Rui deixa um comentário com esta qualidade mas é a primeira que eu faço isto) . O Rui comentou assim:

Esta onda que se levantou de proximidade ao Miguel Portas tem-me feito pensar numa coisa que já me venho apercebendo há alguns anos a esta parte. Na vida existem dois tipos de pessoas, os que ficam e os que partem. Os que ficam são a estrutura e os pilares do edifício, aqueles que acreditam nos valores da “construção” e lutam pela sua eternidade. São conservadores e reacionários ao que é novo porque é uma forma de preservarem as estruturas do edifício. Fazem trabalho de sapa, são repetitivos na sua forma de vida e por isso cinzentos e sem magia, fazendo da sua força, determinação e teimosia, as suas armas. Depois, do outro lado estão aqueles que partem, que não suportam a repetição da vida, a rotina e vivem a vida num constante vai e vem. Aparecem quando menos se espera para desestabilizar as almas bem comportadas e conservadoras e desaparecem na primeira oportunidade quando estão mais próximos da vitória e da conquista. São recorrentemente amantes à solta que espalham a sedução e contaminam os que se aproximam com o seu doce veneno, que é no fundo o seu fascínio. Os primeiros erguem, os segundos derrubam, os primeiros acreditam no “fazer”, os segundos acreditam no “viver”, os segundos precisam dos primeiros, precisam das suas almas carentes para incendiá-las com a sua paixão e para legitimar a sua vida, os primeiros precisam dos segundos para se convencerem a si próprios das razões da sua convicção. Uns desestabilizam, outros estabilizam. Uns vivem uma vida cinzenta, outros espalham a cor pela vida e nós, ávidos que estamos sempre de cor, nunca resistimos ao glamour nem ao fascínio de quem vive em detrimento de que faz. Os irmãos Portas são a incarnação real deste exemplo. Será que se fosse o Paulo a morrer o país se emocionaria tanto? E se fossemos todos como o Miguel seria possível construir um país? E se fossemos todos como o Paulo seria possível viver neste país?

Na minha perspectiva das coisas, quando alguém falece logo se nos revela diferente daquilo que foi enquanto esteve vivo. Como diz uma canção dos Stranglers, "everybody loves you when you're dead". Fico com a sensação de que tememos mais a presença do corpo físico do que a permanência das ideias, o que não será uma atitude particularmente avisada. 


Nem Paulo Portas é o diabo nem Miguel se transmutou subitamente em anjo. A vida é para ser vivida e, quando morremos, a nossa memória poderá ter alguma utilidade para os que cá ficam. Talvez seja neste ponto, após a nossa morte, que a vida ganha algum sentido.