terça-feira, maio 29, 2018

O "A"

A Arte com "A" maiúsculo é coisa de gente especial. Vejo tanto pedantismo intelectual, tanta gente armada em fina, de olhar carregado, rugazinha inteligente a enfeitar-lhe a testa, gente que parece que está a cagar pedra-mármore, como diz uma fala da personagem Mozart na peça de Peter Shaffer. São os donos da coisa bela.

Não nego o direito à arte erudita (seja lá isso o que for), rejeito a menorização de certas formas de expressão artística desconsideradas porque se dirigem a públicos com pêlos no cu, que arrotam e batem palmas de forma entusiástica.

A arte é muito maior que o "A" com que alguns pretendem isolá-la do povão. A chamada arte popular não deve nada aos senhores de falas mansas com óculos de massa e corte de cabelo à escovinha.

domingo, maio 27, 2018

Pedido sincero

Talvez um dia eu precise de ser salvo mas, por enquanto, não me sinto lá muito perdido. Agradeço a todos aqueles que se preocupam tanto comigo que são capazes de perder tempo decidindo por mim.

Mas, sinceramente, não se preocupem com a minha vida (nem com a minha morte). Talvez devêsseis preocupar-vos mais com a vossa. Deixai os vizinhos em paz, a menos que eles vos peçam para lhes chateardes o toutiço.

terça-feira, maio 22, 2018

Alma e cérebro

Continuar a sonhar apesar de certos pesadelos é obrigação que temos para com a nossa consciência. Estou a falar de sonhar acordado (os pesadelos são coisas más do nosso quotidiano), continuar a querer mudar o mundo. Ou, pelo menos, mudar um bocadinho.

Sonhar acordado provoca frequentes lutas entre o cérebro e a alma. Por vezes, para continuar a sonhar, é necessário tomar medidas burocráticas que ponham o nosso cérebro na ordem.

É possível que, mais logo, releia estas frases e pense: que grande pimpineira!!! É bem possível que isso aconteça, que esta conversa me pareça lamechas, que sinta até uma pontinha de vergonha por ter escrito estas coisas. É quando isso (se) acontecer que terei de mandatar a alma no sentido de ir meter juízo no cérebro.

Ser cerebral pode revelar-se uma valente seca.

domingo, maio 20, 2018

Calma, gente!

Manter a compostura durante uma discussão quando nos apetece morder ou dar uma canelada no interlocutor é coisa que requer muita experiência. Apercebo-me que vou conseguindo dominar (a custo, reconheço) este requisito de civilidade.

Ser educado quando tudo dentro de nós parece queimar e prestes a incendiar-nos as palavras, é obra de arte. Agradeço a Deus o facto de me permitir imaginar ser um artista.

segunda-feira, maio 14, 2018

Três graças

Força, alegria e convicção. Três condições essenciais à construção de uma narrativa contundente e significativa. Não há que recear o vazio se imaginarmos ser capazes de o preencher.

Força na definição dos volumes, na marcação das formas, na vibração das cores ou na acentuação dos contrastes; alegria na desenvoltura do gesto, na definição dos ritmos, na velocidade com que nos afastamos deste lugar e vamos chegando mais adiante; convicção na abrangência daquilo que temos para dizer e afirmamos, convicção na bondade dos ideais que nos animam.

Tenhamos nós a felicidade do amparo destas três graças e teremos realizado um trabalho honesto  ao fim  do qual poderemos dormir um soninho descansado.

domingo, maio 13, 2018

Aparição

Hoje é dia de celebrar um milagre dos antigos.

Quantos anos faltarão até que a Virgem Maria se lembre de visitar o pessoal outra vez? Agora é que era! Com todos os telefones espertos que por aí andam não haveriam de faltar imagens em directo no Facebook nem selfies com a Senhora a brilhar levitando uns quantos palmos acima do chão.

Sim, sim, agora é que uma aparição havia de fazer autêntico furor! Convenhamos que os pastorinhos nos deixaram uma narrativa pouco eficaz. Coitadinhos.

A Virgem não teve sentido de oportunidade, faltou-lhe couching. Impõe-se uma aparição digna dos tempos que correm.

quinta-feira, maio 10, 2018

Imaginar

Não sei se alguém alguma vez se terá dado ao trabalho de compilar uma História da Imaginação. Imagino que sim, que alguém o tenha já feito. Há Histórias de tudo e mais alguma coisa, decerto haverá uma dedicada à Imaginação. Desconheço, apenas posso imaginar.

Veio-me isto à cabeça hoje de manhã ao ter um flash da minha mais tenra infância, uma imagem fugaz que de vez em quando se me acende cá dentro. Vejo uma fileira de pequenas pedras muito alinhadinha num chão que é o da Sernada (ou será Cernada?), um lugar onde ia frequentemente em criança, acompanhando o meu avô paterno. As pedrinhas são soldados. Falam: uma delas dá ordens, outras conversam entre si, temem o inimigo emboscado; continuam a marchar.

É só isto. Não consigo recordar a sorte da coluna de pequenos soldados-pedra; se foram assaltados por uma horda de pinhões vindos detrás de uma moita, se foram simplesmente abandonados, esquecidos em benefício de outro brinquedo, alguma imaginação maior ou, pelo menos, diferente.

Era muito assim.
Um pau tanto podia ser uma espada como uma espingarda ou um stick de hóquei ou uma bengala, caso decidisse envelhecer subitamente. A brincadeira era um bocado dadaísta, os objectos ganhavam conteúdos mais ou menos adequados, conforme as circunstâncias. Era assim que um gajo exercitava a imaginação, retirando conteúdos, espremendo significados, manipulando o sonho numa tentativa alquímica de o sintetizar em realidade.

Bem vistas as coisas um gajo imaginava o mundo, literalmente, no ar. Daí sermos apelidados de "cabeças-no-ar". Gostava de ser criança outra vez para voltar a inventar as coisas todas, para ver como se faz agora, uma vez que já poucos brincarão com pedrinhas e quase nenhuns brincarão, sequer, na rua.

Estamos perante as primeiras gerações que sonham quase exclusivamente sonhos eléctricos, fechados em ecranzinhos. Jogos, filmes, vídeos, fotos disto, fotos daquilo, selfies, selfies, selfies, crianças que aprendem a fazer sorrisos horríveis desde que têm dentes para os fazerem (tão depressa estão a sorrir para um telemóvel na sua própria mão como imediatamente fazem a maior cara-de-pau, depois do clic).

Isto tem de de influenciar a forma como se imaginam as coisas, como se perspectiva o mundo que nos rodeia, as relações que estabelecemos com a realidade (seja lá isso o que for).

segunda-feira, maio 07, 2018

Esbracejar

Trabalhar é o melhor antídoto contra a fantasmagoria. Ter que fazer ou, quando não tenho que fazer, inventar o que fazer, só assim consigo manter o nariz à tona do lamaçal. É como se estivesse sempre a esbracejar. Sim porque, para mim, trabalhar é desenhar ou pintar ou escrever ou falar para uma pequena plateia, sempre a dar aos braços, na verdade.

É como se nadasse na realidade. A realidade como piscina, como mar, como tanque; a realidade líquida, impossível de prender, de meter numa gaiola, impossível evitar que nos escape e fuja e se estenda infinito adiante.

Mesmo que naufrague salvo-me agarrado a um pedaço do mastro, a um patinho amarelo, agarrado a uma lasca de madeira. Não me afogarei pois aprendi a esbracejar. Não me afogo tão depressa. Enquanto esbracejar (pintar, desenhar, escrever, discursar) não me verão desaparecer entre este lugar e a linha do horizonte.

Enquanto esbracejar eu permaneço. Enquanto permaneço eu sobrevivo.

Quando acabei de escrever a palavra "sobrevivo" recebi um SMS de alguém que me dava a notícia da morte de um seu familiar. Este mar é estranho, esta piscina que não tem escadas, este tanque sem fundo que mais se assemelha a um poço. A realidade é demasiado mesquinha, tem curvas demasiado apertadas, coincidências tão exactamente coincidentes que parecem ser coisas inventadas à pressa.

quarta-feira, maio 02, 2018

Presidente-criança

Há aquele filme (aquele conto, aquela história) em que uma família inteira se encontra refém de uma criança caprichosa que detém estranhos poderes para moldar a realidade de acordo com os seus desejos infantis.

Não interessa de que forma o monstrinho adquiriu tão inquietantes poderes, é a situação que importa focar e explorar em termos narrativos.

Neste conto (neste filme, nesta história) os adultos e os irmãos do fedelho vivem em estado do mais puro terror, indefesos que estão perante os poderes absolutos que  a criança detém sobre o espaço que habitam. Ou bem que lhe agradam e satisfazem todos os seus caprichos, por muito grotescos que sejam, ou arriscam-se a ser castigados. Os castigos assumem proporções entre o previsível e o inimaginável. É uma criança-deus!

Quanto mais poder amealha, mais embirrenta, imprevisível e perigosa se torna a criança. Já não me recordo como acaba esta narrativa mas tenho cá a impressão que não acaba bem.

Pode a metáfora desta história (deste conto, deste filme) aplicar-se à realidade actual da nossa cidade? Está Almada a ser governada por uma presidente-criança? Uma presidente a quem ofereceram inesperadamente um brinquedo com o qual não lhe apetece brincar mas que se vê a isso obrigada para não desagradar aos mais velhos?

Até ver, não tem sido particularmente agradável viver dentro da realidade manipulada pela presidente-bebé. Tem sido aborrecido.